quinta-feira, 13 de maio de 2010

E.S.P.E.C.I.A.L
O DIA EM QUE MORRI (III)


Dedicado à médica Liliana Diniz

Aviso: não é ficção. Tudo que será contado foi real!
Capela do Hospital São Camilo

O DIA EM QUE MORRI

De repente, você olha para as paredes do quarto de um hospital, às vésperas de uma delicada cirurgia do coração, e lhe vem na cabeça uma constatação da qual é impossível fugir: aquela pode ser sua última semana de vida. Pânico? Sinceramente, tirando aquele desconforto do primeiro dia na UTI, não senti nenhum. Apenas resignação e uma certa tristeza ao pensar nas tantas coisas que ainda poderia fazer, principalmente aqueles planos há tanto tempo acalentados.

Foi a mais dura experiência da minha vida. E olha que fui preso político num centro de torturas, o medonho DOI-CODI, cujo prédio ainda existe, ali na rua Tutóia, em São Paulo, hoje ocupado por uma delegacia convencional.

Nunca fumei. Praticava exercícios todos os dias, durante uma hora, na Academia Corpo e Ação, a duas quadras da minha casa. A alimentação era frugal, com ênfase nas saladas, frutas e sucos naturais. Nadava, andava de bicicleta, caminhava. Dançava horas, com muito pique. E, na época, com 55 anos (hoje tenho 64), orgulhoso da saúde e do corpo bem definido, não sabia o que era médico, muito menos hospital. Pois, o espartano aqui descobriu na marra que os desígnios da vida nem sempre são aqueles que traçamos e nos propomos a cumprir com disciplina e determinação. Contra qualquer previsão, uma microscópica gota de colesterol resolve obstruir dutos absurdamente estreitos, as vias coronárias, e isso é suficiente para interromper bruscamente sua vida, ou alterá-la com profundo impacto e de forma irreversível.

O infarto (ou enfarto, as duas formas são certas), foi pesado, como já contei no primeiro capítulo. A duas coronárias, esquerda e direita, estavam completamente obstruídas. Imagine isso como dois canos entupidos, onde não passa uma gota de nada. Um dos vários livros que tenho sobre o assunto, para leigos, explica que “as artérias coronárias, os primeiros ramos da aorta, carregam sangue oxigenado para o músculo cardíaco, assegurando que o coração receba sua “nutrição” antes de qualquer outro órgão. Quando as artérias coronárias estão comprometidas, o coração é afetado, ocasionando um ataque cardíaco”.

Se eu fosse fumante, sedentário e obeso, com certeza não teria resistido. Artérias secundárias, estimuladas pela prática do esporte (que os médicos chamam de coração de atleta), abriram caminho ao sangue e, literalmente, salvaram minha vida. Sem entupimento por nicotina, o pulmão teve vaga para o oxigênio, apesar da terrível sensação de asfixia. Acrescento com absoluta certeza que não fumar também salvou minha vida. Isso tem amparo em teses médicas. Não é sem razão que mais de 300 mil pessoas por ano morrem de infarto no Brasil, um número assustador. Se você é fumante, comece a pensar nisso já!

O dia em que morri foi 24 de novembro do ano 2000. Durante a cirurgia que começou de manhã cedo e durou seis horas e meia. Se a morte ocorre com a paralisação do coração, então morri, por cerca de um minuto e alguns segundos, quando meu coração e o corpo todo foi congelado e literalmente paralisado, para fixação de duas pontes de safena e uma mamária. Eu mergulhado no mais profundo sono da potente anestesia, um apagão total e absoluto, onde o cérebro sequer consegue produzir sonhos.

Sem acreditar em espírito e vida após a morte, sem a mais remota convicção religiosa, sem crer na existência de Deus (mas respeitando e defendendo o direito à fé), permito-me hoje dizer que suponho que a morte seja exatamente isso que senti, ou seja, nada.

Se me perguntarem se gostaria que fosse diferente, é claro que concordarei. Torço muito para estar enganado. O que não me permito é a tola ilusão e perda de tempo durante a vida. Não vou prestar tributos a divindades que não povoam meus sentimentos mais autênticos. Não consigo acreditar, mas torço para que realmente exista espírito e reencarnação. Oxalá, vocês que investem suas energias neste campo, estejam certos. Iria adorar voltar ao mundo, que é belíssimo; ter outra vida; ser novamente feliz, como hoje sou. E que o apagão seja mero e gostoso descanso, não a eternidade.

--------------------------------------------------------------------------------

*Milton Saldanha é jornalista e escritor.

-------------------------------------------------------------------------------

Não percam, amanhã, o quarto e último capítulo de O DIA EM QUE MORRI - A alegria de renascer. E na próxima sexta-feira, 21, o artigo quinzenal de J. Morgado.