quarta-feira, 6 de outubro de 2010


O meu reencontro com a Eva, a mulher do primeiro casamento, ocorreu 28 anos após o nosso rompimento, que, aliás, não foi nada amigável. Na despedida, ela me pediu, irada e aos gritos, que a partir daquele dia eu jamais lhe telefonasse ou lhe escrevesse. Eu cumpri à risca o seu pedido. Nosso reencontro pode ser considerado um ardil das casualidades. Um dia, ao abrir a caixa de entrada do meu computador, um e-mail me chamou a atenção pelo título: sou amigo do seu filho... A mensagem era assinada por Marciel Zonta, farmacêutico e psicólogo de profissão. No início, ele me parabenizava pelo Prêmio Esso e depois, escrevia, romântico: “Namoro e espero me casar com Priscila Gusmão Carvalho, o amor de minha vida, irmã de Danyelle Gusmão Carvalho de Marqueiz, esposa de Marcelo de Marqueiz... seu filho.”

Ao ler essa frase final, fiquei estático. Quase três décadas sem ouvir falar de Marcelo e, agora, graças à informática, soubera um pouco de sua existência. Dizia mais: “Sou muito amigo do Marcelo, uma pessoa maravilhosa, carismático, adora passarinhos, trabalha em uma loja de tintas, em suma, um grande concunhado”. Fiquei extasiado com a notícia e, na mesma semana, procurei uma das tias da Eva e comuniquei o ocorrido. Essa tia, a Claudina, também ficou satisfeita que nós estávamos começando a viver como civilizados. Aproveitando, me deu o número do telefone da casa onde a Eva residia, na Vila Velha, em Vitória, Espírito Santo. Fiquei de telefonar, mas não tive coragem, ou melhor, considerava não ter moral para tentar uma aproximação com a mulher que eu abandonara com um filho com menos de três anos de idade.
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Num sábado à tarde, dia em que completava mais um ano de vida, estava sozinho em casa, quando o telefone tocou. Atendi e uma voz masculina, serena, perguntou, educadamente: É da casa do Sr. José Marqueiz. Respondi positivamente e, só então, ele completou: Aqui é o Marcelo, pai. Senti que o mundo desmoronava. Fiquei sem pronunciar palavra e ele continuou e disse que eu tinha sido muito importante em sua vida. Tentei pedir desculpas, explicar o porquê o deixara e a sua mãe, mas não consegui. Ele me deixou o número dos telefones de sua residência e do seu local de trabalho. Fiquei de telefonar, mas até hoje ainda não tive coragem.
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Não demorou muito depois do contato com Marcelo, outro telefonema. Desta vez, era uma voz feminina. Disse, apenas: Sou eu. De imediato, reconheci a voz da Eva e, quase instintivamente, falei: Oi, amor. Uma expressão que saiu natural, como se eu nunca tivesse me separado dela, como se eu houvesse permanecido sempre junto com ela. Conversamos por alguns minutos e ela me avisou que viria para Santo André visitar seus parentes, principalmente uma tia que estava muito doente. Ficamos de nos ver.

Não demorou nem quinze dias, e a tia Claudina me perguntou se eu teria disponibilidade para buscar a Eva no Aeroporto de Congonhas. Prontifiquei-me a buscá-la e ela me deu o dia e a hora em que estava previsto o desembarque. No dia marcado, peguei o meu carro e segui em direção ao aeroporto, com duas horas de antecedência. Não queria chegar atrasado. Estava, no entanto, apreensivo: como eu iria, depois de quase trinta anos, reconhecer a Eva? E ela, me reconheceria?

Fiquei de olho nos avisos eletrônicos do saguão e quando vi anunciarem a chegada do vôo previsto, rapidamente fui para a sala de desembarque. Não demorou muito e começaram a descer os passageiros. Eu, atento, não perdia a saída de nenhum deles. E nada de ver a Eva. Teria ela já passado sem eu perceber? Sim. Só quase uma hora depois vi uma senhora sentada em um dos bancos, ainda na sala de espera, e, chegando mais perto, tive a certeza de que era ela. Quando Eva me viu, procedeu como se nunca tivéssemos nos separado, e, mostrando que ela em nada havia mudado, me repreendeu pelo atraso, sem me dar nenhuma chance de explicação.

Como ainda era hora de almoço, convidei-a para comer alguma coisa, explicando que eu não poderia participar, a não ser se fosse servido sopa. No caminho para Santo André, viemos conversando – e ela quase nada falou de sua vida. Mostrava mais interesse em saber como eu estava. Nesse dia, ela comeu peixe e, eu, engoli um pouco de sopa. E tomei cerveja, para surpresa dela, que achava que, por ter parado de beber, não ingeria nada de bebida alcoólica. Só cerveja, justifiquei. No começo da tarde, a deixei na casa de sua tia, com a promessa de nos encontrar no dia seguinte. Tínhamos muito o que conversar, ela avisou. Num desses dias, na residência da tia, ela me mostrou o álbum de nosso casamento, com destaque para uma foto: ela, de véu e grinalda, e, eu, de terno completo e de bigode. Ela, com 20 anos, eu, com 22 – dois jovens, dois sonhos que não se realizaram.
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Saímos outras vezes e a levei para passear por Santo André. Fiz questão de passar defronte às casas onde morávamos quando casados. A primeira, agora se transformara em um salão de cabeleireiros; a segunda, um sobrado, virara um pequeno escritório; e, a terceira e última, em um conjunto de sobrado, continuava como antigamente, apenas com um muro mais alto. Numa dessas saídas, ela me pediu para parar o carro e, olhando bem nos meus olhos, disse com uma sinceridade jamais percebida por mim: Apesar de tudo o que aconteceu entre nós, eu continuo apaixonada por você. Estupefato diante da confissão, só fiz acariciar seu rosto, seus cabelos e a olhei com doçura, como se olha um anjo, como se olha a imagem de uma santa.
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Depois, fiquei sabendo as demais razões que a levaram a deixar Santo André e a viver com outro homem. Na casa onde vivia com os tios, ela sentira não ser mais benquista. A tia encontrava-se doente e, o tio, lhe dera sinais de que ela deveria encontrar um local para viver e criar o seu filho, então com menos de três anos de idade. Sem alternativa, deixou-se levar por o único homem que lhe havia prometido uma casa e a promessa de ajudá-la a cuidar do Marcelo.

Assim, disse ela, mesmo sem sentir amor por esse homem, ela aceitou – em nome do pequeno menino adotado em Manaus e que levava o meu sobrenome. Pouco mais de um mês depois desse encontro, ela regressou. Levei-a até o aeroporto e esperei que ela subisse para a sala de embarque. Antes de entrar e desaparecer de minha vista, ela olhou para trás e me acenou e, depois, colocou a mão direita nos lábios e, sorrindo, me enviou um beijo de despedida.
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo sexto capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50. (Edward de Souza).
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