sábado, 28 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Exclusivo
*
Curandeiro promete trabalho
para broxar repórter
Parte XI

*
Milton Saldanha
Memórias
Capítulo III
***
Terminei o segundo capítulo falando sobre as nossas dificuldades em buscar rolos de cópias de carbono dos telegramas das agências em São Paulo, com uma velha Rural Willis, dirigida pelo motorista Pelé. Quanta insensatez e inexperiência, gente. Já havia o telex, a sucursal do Estadão tinha um, era um caminhão barulhento, mas tinha. Bastava pedir na Embratel, ligar numa linha telefônica, e pagar o aluguel. Sairia muito mais barato do que a gasolina mensal da Rural, fora o estresse a que nos submetia. Por exemplo, em dia de chuva. Sempre havia enchente na divisa de São Caetano com São Paulo. A Rural tinha que ir e voltar pela Via Anchieta, dando enorme volta. Lembrem-se de que não havia a Catequese com o traçado de hoje, nem aquelas avenidas expressas. Chegar lá era percorrer um labirinto de ruas. E a gente na redação, parado, xingando, esperando uma notícia que, de repente, poderia nem chegar. Era duro. A oficina também arcava com a burrice, pois dependia da redação para encerrar seu trabalho. O Pedro Martinelli, sempre com mala de fotografia pendurada no ombro, era também motorista, quando Pelé faltava. Bom ouvido também valia. Soava alguma sirene, se mais forte indicando ser dos bombeiros, e Lázaro berrava o nome do repórter mais próximo, de Pelé e Pedrão, e saiam em desabalada carreira, como se dizia na antiga linguagem de clichê, seguindo a viatura pelas ruas, furando semáforos, tudo pela notícia. Manter um plantonista no QG dos bombeiros? Impossível, seria um luxo, todos faziam falta na redação. Fazer um acordo de informação com o comando? Imagine, éramos todos focas, ou quase focas.
Cada nome aqui lembrado renderia um longo capítulo de episódios, a maioria divertidos. Nenhum de nós escaparia, a começar por este escriba. Em rodas de bar é gostoso lembrar, como aquele dia em que Dirceu Pio fez uma matéria descendo o pau num charlatão curandeiro. O cara era um guarda-roupa. Ficou esperando Pio ao lado do portão da casinha. E a gente lá dentro, morrendo de medo, em vez de chamar logo a polícia. Quando Pio chegou só achou uma saída: tentar convencer o sujeito que a matéria só tinha elogios. É mole? O personagem, ignorante, ficou confuso. Não sabia se acreditava. Por via das dúvidas, deu um abraço de urso no Pio, girou com ele no ar e devolveu ao solo. Retirou-se não sem antes prometer um “trabalho” para ele broxar. Nessas alturas era até uma boa barganha, né. Depois disso Pio teve quatro belos filhos, prova de que o cara era mesmo charlatão.
Quando chegou ao jornal a primeira Nikon, o Pedro Martinelli aposentou sua maquininha e parecia uma criança com um brinquedo ansiosamente sonhado. Ficou enlouquecido, só falava sobre a máquina. Iniciando, já mostrava tremendo talento. Mas ninguém imaginaria que ainda seria um dos melhores fotógrafos do Brasil. E quando venderam a velha Rural e chegaram alguns Fuscas brancos, com enormes letreiros do jornal e da rádio, agora sim havia carros para trabalhar, fim do sufoco, sentimos pela primeira vez que o nosso Diário começava a virar um jornal de verdade. Era um sinal de prosperidade. Rubem e eu começamos a batalhar pelos registros nas carteiras, aliciando a redação discretamente, mas só para o caso de alguma emergência, em que a gente tivesse que demonstrar força. Foi mais fácil do que a gente pensava, certamente a diretoria já estava esperando isso. Na mesma semana todo mundo foi registrado. Naquele período, enquanto a vida nacional estava tumultuada, com seqüestros e assaltos de guerrilheiros urbanos, noticiamos com grande impacto o seqüestro do embaixador dos Estados Unidos. Não havia censura no Diário, ao contrário dos grandes jornais da Capital, então a gente aproveitava algumas brechas e denunciava, por exemplo, a tortura no Uruguai, onde também havia ditadura militar. Como quem diz, se lá tem, aqui...
Foi o ano também em que o homem pisou na lua. Do boom da indústria automobilística. Do início da TV em cores. Transamazônica, ponte Rio Niterói, Angra. O Diário começava a crescer e comprou a antiga rádio Independência AM, de São Bernardo, que passou a ter o nome de Rádio Diário do Grande ABC. Aí resolveram que a rádio seria forte no jornalismo, tentando copiar a Jovem Pan. Era um fiasco. Por qualquer bobagem entrava uma escandalosa “Edição Extraordinária”. E qualquer dos nossos repórteres entrava no ar, da redação, sem ter tido qualquer treino anterior como repórter de rádio, sem colocação de voz, nada. Os boletins ficavam medonhos. Até Edson Dotto gostou de brincar de repórter e entrava com boletins, lendo ou improvisando mal, com voz inadequada. Custou um tempo até colocarem realmente profissionais de rádio, competentes, como o Rolando Marques, Edward de Souza, Oswaldo Lavrado, Paulo Cesar, Sidney Lima e outros. Nessa fase entrou um personagem novo na redação, o Castro, que assinava suas matérias com o pomposo pseudônimo de Lamartine de Taunay, que a gente, para sacanear, tratava no mural da redação como Lamartine de Toné. Como tinham seqüestrado o cônsul japonês em São Paulo, a gente ficava levantando hipóteses sobre o caso. Numa tarde comentei, como mera especulação: “Já imaginaram se soltam o cônsul num bairro do Rio, onde ninguém espera?” O Castro ouviu aquilo, ligou para a rádio e soltou um boletim falando dessa possibilidade. Ficamos apavorados. Imaginem se a polícia caísse lá querendo saber a fonte. Era muita loucura. A sorte é que o índice de audiência era ainda muito baixo e essas mancadas não repercutiam, para sorte geral da empresa.
Aquela fase foi também a da “Escolinha”, como diz até hoje o Renato Campos, uma das testemunhas disso. Os textos pecavam por erros técnicos básicos, alguns até primários. Rubem e eu, até ali os menos inexperientes, passamos a fazer um trabalho de crítica de texto, repórter por repórter, texto por texto, das notinhas mais simples às grandes reportagens. Não tinha essa de entregar a matéria e se mandar. Cada um tinha que sentar com a gente, acompanhar o copy e ouvir as explicações sobre as mudanças, até de uma simples vírgula. Em muitos casos, em questões cruciais de estrutura do texto, não havia outro jeito, eles tinham que refazer tudo. Em pouco tempo os textos foram melhorando, ficando limpos e fluentes, ganhando padrão, cara de jornal. O trabalho mais duro foi tirar o vício da opinião, tornar o texto impessoal. No começo as matérias mais pareciam editoriais. O pessoal evoluiu rapidamente, em bloco, e isso foi uma grande realização e alegria para nós. Hoje sinto orgulho dos colegas que se consagraram na profissão e que passaram ali pelo meu duro crivo crítico. Costumo dizer que seriam vencedores de qualquer forma, pelo talento de cada um, mas agilizei o processo, e o Rubem também. Eu tinha as minhas crias, o Rubem as dele. E alguns passavam pelos dois, alternadamente. Alguém também me ensinou, e foi o Fernando Portela, então chefe de reportagem do Jornal da Tarde, em sua fase de ouro, naqueles anos de grandes novidades e mudanças na imprensa brasileira. O JT era um modelo, nosso sonho de jornal. Eu passava ao pessoal o que o Portela me passou, como quem cumpre uma missão evangelizadora. O Portela me dizia que também aprendeu com alguém. Era uma corrente do bom jornalismo. Considero a Escolinha um grande momento da minha carreira. Ensinando aprendi muito e vi meu próprio texto evoluir. Como cobrava do pessoal, passei a ser mais insatisfeito com meu próprio texto.
__________________
Acompanhem no capítulo de amanhã: Serafim Vicente e o seu texto horrível fazendo média com os poderosos que pagavam anúncios; irreverente, o colunista social certa vez sentou no colo do secretário de redação e tascou-lhe um beijo no pescoço; A calma de Hildebrando Pafundi, o impagável Romão Zanella, repórter que dormia nos fundos da redação e as tiradas geniais de Lázaro Campos, fazendo a redação rir, berrando besteiras. (Edward de Souza)
________________
Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho, torcedor do Inter, começou no jornalismo aos 17 anos, em Santa Maria (RS). Trabalhou na grande imprensa de Porto Alegre e de São Paulo. Foi da Folha da Manhã (RS), Diário do Grande ABC, Agência Estado, Estadão e JT, Rede Globo, Rádio Jovem Pan, Última Hora (com Samuel Wainer), entre vários outros veículos. Foi também assessor de imprensa da Ford, do IPT e do Conselho Regional de Economia. Tem um livro publicado, "As 3 Vidas de Jaime Arôxa"; participou de uma antologia de escritores gaúchos; um livro pronto e ainda inédito, "Periferia da História", onde conta de memória 45 anos da recente história do Brasil sob um ângulo totalmente inédito; trabalha num livro sobre Reforma Agrária. Pouco antes de se aposentar fundou o jornal Dance - www.jornaldance.com.br - que já tem um filhote regional em Campinas, e que neste 2009 completa 15 anos.