quarta-feira, 12 de maio de 2010

"E o amanhã?
Ah, o amanhã. Não estou mais preocupado com o amanhã.
Quero viver o hoje.
E usufruir ao máximo de todos os hojes que surgirem em minha vida".



A primeira etapa do tratamento quimioterápico teve início na semana dedicada aos três dias de Carnaval. Começou na sexta-feira à noite e só terminou na madrugada da Quarta-Feira de Cinzas, período em que a população menos favorecida economicamente, procura se divertir, não mais com drogas altamente tóxicas, mas com bebidas alcoólicas baratas. Muitos extrapolam e passam a maior parte desses dias retidos em algum cubículo de algum distrito policial, enquanto outros perdem a vida em violentos acidentes automobilísticos. Ou, ainda, com brigas com tiros e outras agressões fatais. Nunca, nunca tem um saldo positivo.
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Mesmo nos tempos mais antigos, principalmente nas primeiras décadas da segunda metade do século XX, quando era liberado o lança-perfume, um produto considerado de “bom-tom”, não havia tanta barbárie. Na época desse vasilhame contendo uma espécie de éter perfumado, a violência ainda não havia se instaurado como normal nas grandes cidades. Era ainda um tempo de convivência pacífica e a arma mais perigosa que poderia ser utilizada era uma faca de cozinha ou uma navalha. Era um tempo de delicadeza, com predominância da educação, do respeito entre as pessoas.
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Por volta do final da década de 60 do século passado, o então presidente Jânio Quadros baixou decreto proibindo o uso desse produto em todo o território nacional e, assim, o Carnaval perdia, de acordo com os seus adeptos, o seu glamour. Lembro-me desse passado recente para fazer uma comparação do que existe hoje. Aqui, nesse hospital, nem as pessoas sãs, que vêm visitar os internados, falam sobre o que antes também era chamado de tríduo momístico, uma vez que é o Rei Momo quem governa os três dias, ao menos simbolicamente.
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Certamente, por ser um local de doentes, as pessoas procuram evitar tocar nesse assunto e provocar um sentimento maior de desolação. Acredito, no entanto, que é a perda do entusiasmo mesmo pela festa que leva a esse silêncio, a esse esquecimento inclusive do feriado, que ocorre na terça-feira – amanhã, por sinal -, quando faz o segundo dia em que me encontro aqui deitado nessa cama hospitalar, recebendo soro e uma série de medicamentos por meio do cateter implantado ao lado direito do meu peito. Melhor assim, que não machuca as veias dos braços e não dificulta a locomoção. Graças ao avanço da Medicina...
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Recebi a visita do Paulo Pereira. Não estou bem nesse dia. Sinto-me bastante debilitado e vejo que ele percebe o meu desalento. É muita fraqueza, grande o desânimo. Não tenho forças sequer para andar pelo corredor do hospital. Revelo a ele que receio ser encaminhado para o setor de Unidade de Terapia Intensiva e digo: se eu for para aquele lugar, pode acreditar, não voltarei. Paulo é quatro anos mais velho que eu. Eu o conheci ainda adolescente, quando tinha 14 anos, no Bairro Paraíso, em Santo André, local onde nasci, de onde sai com dois meses de idade com destino a Bálsamo, pequena cidade do interior paulista, e para onde voltei com meus pais. Fiquei sabendo depois que meus irmãos e eu precisávamos trabalhar e ajudar na manutenção da casa e no interior não havia essa possibilidade.
Paulo foi quem me encaminhou para a literatura, me fez ler os grandes escritores e poetas brasileiros, russos, franceses, ingleses e alemães. Dentre os brasileiros, destacava-se Jorge Amado e, entre os estrangeiros, Gustave Flaubert, Honoré de Balsac, Hermann Hesse, Dostoiévski e tantos outros.

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Nesse bairro, fiz, junto com o Paulo, o primeiro jornal que recebeu o nome de “Nabo”. Não tinha praticamente noticiário e era basicamente um resumo dos boatos ocorridos na vila entre os nossos amigos e conhecidos. Esse jornal não teve vida longa. Mas nossa amizade perdurou e já está quase completando meio século.
Paulo, anos atrás, também foi vítima do câncer, uma fase difícil de sua vida. Fez a cirurgia em um hospital mantido pelo governo estadual e saiu-se bem após o tratamento, que incluiu quimioterapia. Passados mais de cinco anos, julga-se um homem livre da doença, mas ficou um pouco apreensivo ao saber que tumor que havia sido extirpado de minha garganta há três anos, retornara, desta vez atrás do ouvido esquerdo.
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Separado da mulher, com quem viveu quase 40 anos e teve três filhos, Paulo pode ser considerado um homem realizado. È poeta, mas um poeta sem ilusão com a vida, que faz poemas sem lirismo nem emoção. Um João Cabral de Mello Netto inédito, que traz seus poemas escritos na alma, em seu interior. Apesar de se considerar um homem com saúde, perdeu a fé em Deus, no ser onipotente e onipresente. Mesmo assim, não sai sem uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida, guardada em sua carteira, junto aos documentos. Paulo, eu percebo pelo seu olhar, sabe que não estou bem. Sai, com uma despedida lacônica. Sei que há lágrimas em seus olhos.
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Acostumado com a tranquilidade de Bálsamo, de início me espantei com a grandeza e o movimento de Santo André que, ainda no início dos anos 60 do século passado, se constituía numa província, se comparada com a metrópole destes primeiros anos do século XXI. Para arcar com as despesas com a mensalidade da escola - me matriculei no terceiro ano do curso básico da então Escola Técnica de Contabilidade Senador Fláquer - e gastos pessoais, consegui emprego como entregador em um escritório responsável pela distribuição de exemplares do Clube do Livro
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Para quem não se lembra, o Clube do Livro na época era dirigido por conhecidos intelectuais como Mario Graciotti e Afonso Schimdt. Na abertura do livro, sempre trazia alguns artigos de seu estatuto e um desses esclarecia: Mensalmente, a partir de julho de 1943, o Clube do Livro edita um livro de notório reconhecimento, a exemplo deste (referia-se ao exemplar do mês) escolhido pelo seu Conselho de Seleção, e o envio ao seu sócio que, mediante o pagamento de cinco cruzeiros, se torna proprietário do mesmo livro.
Esse clube tornou-se bastante popular por editar obras de escritores consagrados, brasileiros e estrangeiros. Entre esses, Charles Dickens, Walter Scott, Fiódor Mikhailovich Dostoiévski, Gustavo Flaubert, Guy de Maupassant, Honoré de Balsac, José de Alencar, Machado de Assis e tantos outros. Eu, como funcionário desse escritório, tinha direito a um exemplar – um acontecimento que incentivou ainda mais o meu gosto pela leitura, meu interesse pela literatura mundial.
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Nesse meu primeiro emprego fiquei apenas alguns meses, apesar de gostar por causa dos livros e pelo conhecimento das ruas da cidade. O motivo foi um dos proprietários, chamado de Toninho – jamais soube o seu nome completo - que aporrinhava minha vida. Assim, fui parar no escritório de contabilidade do Elpídio Dalla, uma pessoa afável, bondosa e compreensiva. Para esse escritório, buscava e entregava os livros e a documentação fiscal do comércio e das pequenas empresas clientes.

Dalla não se importou quando o avisei de minha saída, ao completar quatorze anos de idade, para ingressar numa companhia fabricante de eletrodomésticos – geladeiras, principalmente, em São Bernardo do Campo, com salário mais alto e oportunidades para aprender e progredir: a Brastemp. Fui levado a essa empresa pela minha prima Nadir, filha de meus tios-padrinhos Antonio e Carmem Padeiro, esta, irmã de meu pai. Nadir trabalhava como secretária de um dos diretores de uma fábrica ao lado e conhecia o pessoal da Brastemp – uma das razões pela qual comecei a trabalhar com registro em carteira logo após completar quatorze anos. Mais duas: possuía o curso de datilografia e já estava cursando o segundo grau – mérito de poucos jovens naquele início da década de sessenta do século passado.

Também foi a Nadir quem me orientou a fazer a matrícula na Escola Técnica de Contabilidade Senador Fláquer, conhecida na época como a Escola do Mattei, por causa do sobrenome do fundador-proprietário do estabelecimento, professor Valdemar Mattei. Muitos anos mais tarde, escreveria uma pequena biografia desse pioneiro do ensino em Santo André, e que seria publicada no ano em que a escola completou setenta anos de fundação e aproveitava para comemorar a sua transformação em centro universitário, com vários cursos de nível superior, a maioria destinada a classe média.

Permaneci na Brastemp pouco mais de dois anos, quando os setores administrativos e financeiros tinham sido transferidos de São Bernardo para São Paulo. E por motivos já explicados: a edição de um jornal interno com críticas veladas ao movimento militar de 1964, que havia derrubado o governo democrático de João Goulart. Da Brastemp fui para a agência do Banco Auxiliar de São Paulo, em Santo André, e regredi: voltei a trabalhar como contínuo, utilizando uma bicicleta para a entrega de avisos de cobrança e outros documentos bancários.

Fiquei pouco tempo, também: desta vez, porque escrevia crônicas no hoje extinto jornal Folha do Povo, falando da miséria das famílias vivendo estiradas nas ruas e dormindo sob viadutos em Santo André. De imediato, Paulo Pereira me chamou para trabalhar na empresa onde ele já estava, em São Bernardo. Aceitei, por um só dia. No outro, já me transferia para uma indústria de arames em Santo André. Este seria o meu último emprego em empresas que não fossem jornalísticas. Aproveitei esse meu período para cumprir com o serviço militar obrigatório e concluir o curso de contabilidade, ainda na Escola do Mattei. Ainda trabalhava nessa fábrica quando entrevistei Vinicius de Moraes, o que resultou na minha contratação como repórter pelo jornalista Fausto Polesi, diretor de redação do então News Seller, que estava prestes a se transformar no Diário do Grande ABC.
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NOTA: A charge que ilustra boa parte deste capítulo de hoje foi um trabalho do grande amigo Juarez, um dos maiores chargistas do Brasil. Nossos agradecimentos a ele, que é radicado na Região do ABC Paulista.
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Na próxima quarta-feira, o quinto capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. Nesta quinta-feira continua a série do jornalista Milton Saldanha, com o penúltimo capítulo do emocionante relato “O Dia Em Que Morri”. Não deixem de acompanhar. (Edward de Souza / Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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