terça-feira, 28 de dezembro de 2010

SEGUNDA-FEIRA, 27 DE DEZEMBRO DE 2010
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.Este é o primeiro conto, dos muitos que escreví, que apresento neste blog. Publicado pela RG Editores de São Paulo, na sétima edição de "O Conto Brasileiro Hoje", foi um dos primeiros colocados entre os mais de 10 mil inscritos no site do Banco Santander. Recebeu mais de 13 mil visitas em menos de dois meses exposto naquele espaço e foi um dos mais procurados pelos leitores que acessaram aquele site. Como esta época de festejos do final do ano tem muito a ver com esse conto que escrevi, resolvi publicá-lo, atendendo várias solicitações de amigos e amigas.

Parecia sentir-se cansado, quando chegou às primeiras casas da pequena cidade do interior. Os pés afundando na areia vermelha e muito fofa sob um sol implacável. Não havia sombra. Andava devagar, carregando saco a tiracolo. Boné, camisa aberta no peito, uma calça Jeans desbotada e um surrado tênis compunham o traje. Era magro e de estatura mediana. Os olhos verdes iluminavam as feições calmas.
Parou junto ao portão entreaberto, na casa do “seu” Aníbal, figura conhecida por tratar de maneira hostil os habitantes da pequena cidade.
A torneira do tanque no jardim da casa, a dois passos, era tentação irresistível. Insinuou-se pela abertura e acercou-se da bica.
Deixou a água, inicialmente morna, escorrer pelos dedos finos. Logo, ela chegou fresca e convidativa. Tirou o boné e curvou a cabeça sob a torneira, deixando a água cair nos seus cabelos longos e alourados.
Mesmo com o ruído produzido pelo jato de água, ouviu a voz severa de Aníbal:
- Quem deu licença para entrar?
Levantou a cabeça, sorrindo.
- Desculpe. Não vi ninguém. Estava com muita sede.
- Devia ter batido, resmungou Aníbal. Não pode invadir a casa dos outros.
- Não queria incomodar, senhor. Precisava apenas de um pouco de água.
A voz de Aníbal não escondia desprezo e certo temor:
- Que veio fazer aqui?
- Nada. Estou apenas de passagem.
- Aonde vai?
O desconhecido sorriu.
- Não tenho destino certo.
A observação foi agressiva:
- Um vagabundo! Um “hippie”!
Deu um passo atrás, pronto para correr, ou, quem sabe, encarar, caso o moço reagisse.
O jovem não aceitou o desafio. Continuou sorrindo, pensativo. Encolheu os ombros:
- Talvez tenha razão. Um vagabundo...
Ambrósio Costa, que morava ao lado, atraído pela voz irada de Aníbal, se aproximou:
- O que aconteceu, vizinho?
Aníbal criou coragem.
- Esse marginal invadiu minha casa.
Calmo, o viajante disse então:
- Meu caro senhor, agradeço-lhe pela água, mas devo retomar o caminho. Tenho muito que andar, antes do anoitecer.
Outras pessoas se aproximavam, curiosas. Aníbal sentiu-se seguro. Era boa a ocasião para fazer valer seu prestígio. Falou, vivamente:
- Isso é que não. Nada de fugir.
- Mas por que fugir? De que me acusa?
A tranquilidade do desconhecido irritava Aníbal.
- Então é pouco invadir a propriedade alheia?
Dirigiu-se aos que se agrupavam em frente à entrada da casa.
- Vamos deter o malandro, levá-lo ao sargento “Jerominho”.
Não foi necessário. O sargento aproximava-se.
- Que está havendo? – indagou com toda a importância de chefe do destacamento policial.
Aníbal repetiu a acusação, com raiva.
O viajante tentou defender-se, mas a ordem do sargento foi incisiva:
- Cale a boca, safado. Explique-se no posto. Está detido, vamos.
Tentou segurar, pelo braço, o rapaz, que se retraiu, esclarecendo:
- Não é necessário. Estou pronto a acompanhá-lo, embora ignore o motivo.
- Vai saber logo, rugiu o policial. Isso é uma terra de respeito, sentenciou.
Pouco adiante, abrira-se a porta da casa de Geni, que todos na cidade conheciam.
A morena já passara dos 40 anos, mas o tempo não destruíra sua beleza. O pequeno acréscimo de gordura tornava-se mais apetecível aos seus clientes.
- Mas que absurdo, deixe o menino em paz, sargento. Ele somente bebeu um pouco de água.
A réplica foi incisiva e ameaçadora. Era hora de mostrar autoridade.
- Não se intrometa, mulher, senão recolho você também.
Ela fez um muxoxo de desprezo e entrou em casa, batendo a porta com arroubo. “Jerominho” pagaria por aquela “má criação”, prometeu intimamente.
O moço foi encerrado, sem outro protesto, no cárcere, enquanto o escrivão Belarmino regularizava a queixa: invasão de domicílio e atitude suspeita.
Belarmino procurou carregar nas tintas de acusação, mas o episódio fora presenciado por muitas pessoas. Exagero acentuado ou desvio da verdade poderia suscitar contradita e até revolta. Começava a compreender que a opinião dos vizinhos favorecia o “hippie”, cuja bela e radiosa figura e tranquila gentileza fascinavam os moradores da pequena cidade sem atrativos. Belarmino, também, passara a sentir-se inconfortavelmente ridículo. Afinal, tudo girava em torno de um pouco de água fresca, em região onde ela abundava.
Deitado no catre, o prisioneiro aguardava pacientemente o desenlace do caso. Não teria tempo de alcançar a cidade próxima antes de escurecer. Seria melhor, pensou, com um sorriso, que a prisão durasse até o dia seguinte. A cama parecia satisfatória, melhor das que se habituava a usar.
A esperança desvaneceu-se quando o carcereiro, cabo Virgilio, abriu a porta da cela. Julgou que seria libertado imediatamente.
-De pé. O escrivão quer você.
Aguardava, sentado, em frente à máquina de escrever.
- Nome?
- Ronaldo.
- Ronaldo de que?
Nova pausa.
- Augusto. Ronaldo Augusto.
- Seus documentos?
- Não possuo.
Cabo Virgilio interveio, com aspereza:
- Como não tem? Ninguém vive sem documentos. Aposto que há mandado de prisão contra você. Trate de “abrir-se”, diga onde foi condenado, senão sua cara de boneca vai sofrer.
O moço olhava assustado; não sabia o que responder. O silêncio fez desencadear a violência. A bofetada potente apanhou-o desprevenido, fazendo-o perder o equilíbrio. Apoiou-se na parede para não cair, enquanto gotas de sangue surgiram nos lábios. Enxugou-as, vagarosamente, com os dedos, sem protestar, mantendo-se encostado à parede. Havia angústia, no seu olhar.
A voz do carcereiro vibrava de indignação:
- É para começar a responder direito. Pensa que somos “otários”, porque vivemos no interior?
O escrivão coçou a cabeça, desgostoso. A silenciosa passividade do prisioneiro, seu olhar triste afetavam-no.
- Calma, Virgilio.
O cabo também já não se sentia à vontade. Justificou-se:
- Ele estava pedindo. Queria levar pau. Agora vai falar.
Deu um passo em direção ao moço e, quando ele alçou o braço, defensivamente, disse, revelando aborrecimento:
- Não precisa temer. Teve o que merecia. Acabou.
O escrivão encerrou o serviço. Pensava com raiva em Aníbal. “Maldito politiqueiro”! Fazer tanto barulho por uma insignificância. Por uns goles de água.
Gostaria de liberar Ronaldo, mas a decisão caberia ao delegado, que somente iria ao posto na manhã seguinte.
Virgilio abandonara a “pose” de ferrabrás. Estava aborrecido com a própria explosão de violência. Gostaria de justificar-se e, até, possivelmente desculpar-se caso a autoridade não ficasse “desprestigiada”. Precipitara-se. Mas que fazer?
Por volta das 19 horas acercou-se da cela, sorrindo. Portava um cesto.
- Dona Geni mandou isso. É “bóia” e da melhor, feita pela empregada, cozinheira de mão cheia.
Acrescentou com um sorriso malicioso.
- Ela ficou gostando de você.
Havia macarronada, carne, salada, queijo branco, goiabada e garrafa de cerveja.
O preso indagou sorrindo:
- É muita comida, para um só. Talvez queira fazer-me companhia.
A surpresa arregalara os olhos de Virgilio. Perguntou, logo depois, com timidez:
- Não está com raiva? Sabe, é costume...
- Compreendo. Esqueça.
- Não sei se...
- Aceite. Nada de ressentimento. Detesto comer sozinho.
Jantaram vagarosamente.
O calor arrefecera. Sentado no catre, Ronaldo apreciava, através da janela gradeada o cair da tarde.
Vozes infantis e som de órgão interromperam o silêncio.
- São os meninos do coro - esclareceu Virgilio. Ensaiam para cantar na missa do Galo, amanhã.
Eram 9 da manhã quando o delegado chegou. Ao passar pela porta da sala do escrivão, observou:
- Parece que houve novidade.
- O sargento “Jerominho” deteve um cidadão...
- Qual a acusação?
- Foi “seu” Aníbal quem se queixou.
- Aquele criador de casos... Qual o crime?
- Uma história de invasão de propriedade; o rapaz entrou no jardim e tomou água.
- Água? – admirou-se o delegado.
O escrivão acenou afirmativamente.
- Então vocês fazem um inquérito, prendem, por causa de goles de água?
- Trata-se de “hippie”.
- E deixa de ser gente? Vai ver que bateram nele.
- Só uma bofetada. Cabo Virgilio ficou nervoso.
- O preso respondeu mal, rebelou-se?
- Não, mas...
- Francamente, isto é o fim do mundo. Preciso é por vocês todos na cadeia. Mande trazer o coitado.
Virgilio arriscou uma observação tímida:
- Ele é boa gente, doutor.
- E essa agora. Você bate no preso e depois o defende. É mesmo uma loucura.
- Foi engano, doutor, não sabia...
- Chega de conversa. Não quero mais ouvir insensatez.
Dirigiu-se a Ronaldo:
- Pegue suas coisas e suma. Fora da cidade. Não quero vê-lo mais por aqui.
A notícia da libertação já correra o povoado, atraindo curiosos. Logo as ruas estavam cheias.
Assim que saiu às ruas, escoltado pelo sargento “Jerominho”, Ronaldo foi aplaudido por dezenas de pessoas. Parecia que toda a cidade estava ali.
O rapaz pediu licença ao sargento para fazer uma breve visita. “Jerominho” encolheu os ombros.
Indiferente aos olhares escandalizados das senhoras conservadoras da cidade, Ronaldo dirigiu-se á casa de Geni, que, pela porta entreaberta o viu chegar. Admitiu-o logo.
- Vim agradecer o apoio e o jantar e despedir-me.
- Por que vai embora? – interrogou pesarosa.
- O delegado não me quer aqui.
- Ele não manda na cidade. Se desejar, posso dar um jeito.
- Prefiro continuar a viagem.
- Espere ao menos hoje.
- Não é possível. Virei visitá-la com mais vagar.
Olhava-o com doçura maternal.
- Conto com isso, mas não tem medo de comprometer-se?
Ele riu.
Acompanho-o à porta. O número de curiosos aumentara.
Ronaldo afastava-se sorridente, despedindo com gestos, quando Marquinhos, o terrível filho do prefeito, gritou a pergunta canalha:
- Então, Geni. Ele é bom de cama?
A meretriz fechou a porta, envergonhada. Virgilio teve vontade de arrancar a orelha do moleque e “Jerominho” encarou-o irritado. O menino sentiu a reprovação geral.
Ronaldo parecia não ter ouvido. Avançava, sem pressa, pela estrada poeirenta, de cabeça descoberta. A intensa luz solar incidia na cabeleira alourada, provocando estranho brilho.
Os habitantes, fascinados, acompanharam a marcha tranquila daquele rapaz misterioso, até ele desaparecer na curva da estrada, alguns acenando com as mãos e até com lenços brancos. O duro cabo Virgilio deixou escapar algumas lágrimas. O episódio rompera a rotina, sem horizontes, de suas vidas; proporcionara novo assunto para conversas e especulações; excitara-lhes a fantasia e o sonho. Aquele povoado, jamais seria o mesmo.
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*Edward de Souza é jornalista, escritor e radialista
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