segunda-feira, 20 de julho de 2009

LITERATURA & MEMÓRIA. E JORNALISMO...

ADEMIR MEDICI
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Início dos anos 1970. O “Jornal da Tarde”, na sua fase pioneira, de tanto sucesso entre os estudantes de Jornalismo, principalmente, publicava uma reportagem especial de página dupla com o título “A crônica está morrendo”. Falava dos grandes jornalistas que se especializaram na área, acentuando a importância de Otto Lara Rezende, Rubem Braga, Vinicius de Morais, etc. E analisava a questão da objetividade da mídia impressa, a tal de imparcialidade da notícia, o “lead” importado da imprensa americana, das celebres questões que deveriam estar acomodadas e reunidas no primeiro e/ou segundo parágrafos de qualquer notícia: quem, quando, como, onde e porque.
Na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero aprendíamos estas coisas. A fórmula da pirâmide numa reportagem especial, das informações básicas das primeiras linhas de um texto e a narrativa do fato nas laudas seguintes. Devíamos, em especial no chamado jornalismo informativo, evitar a alternativa da pirâmide invertida, isto é, deixar para o final, a informação mais importante, tal e qual as novelas de antigamente e de todo o sempre. Ensinava-se: “O leitor moderno tem pressa, não tem tempo a perder”.
Numa reportagem especial, quando muito, poderíamos utilizar a regra da pirâmide mista: o “lead” na cabeça e a história contada a seguir. O jornalismo dividia-se em três: informativo, interpretativo e opinativo, este último reservado, no mais das vezes, ao editorial, que encerrava a opinião do próprio jornal. Estes ensinamentos provocavam grandes debates em sala de aula: nós, alunos, discutindo e duvidando da isenção do profissional que elabora uma notícia, por mais simples que seja; os mestres pregando a objetividade.
Vários dos colegas de classe já estavam na labuta das redações. Um deles era setorista do JT no Corinthians e havia brigado com a direção do clube por ter pegado muito no pé de um time que não ganhava um campeonato de importância desde o IV Centenário de São Paulo. Vibrávamos com as suas histórias, narradas aqui e ali pelos corredores da Gazeta. Às segundas-feiras os alunos ligados ao futebol assistiam às aulas até às 9 da noite. Depois subiam dois andares para acompanhar nos estúdios o programa semanal esportivo que analisava a rodada anterior. Ali, sim, se fazia jornalismo, e não na faculdade... Era o que mais se falava. Outra polêmica era provocada pelo Vicente Leporace, com o seu programa “O Trabuco”, da Rádio Bandeirantes. Era ética a ação do radialista, de recorrer basicamente ao noticiário dos jornais para fazer os seus ácidos comentários matinais? Não era muito cômoda esta prática do “gilete press”? Por que a rádio não investia mais na sua própria equipe de repórteres?, sem ter que recorrer sempre aos jornais e abrindo mais espaço a uma mão-de-obra faminta para mostrar a sua força.
Tínhamos os professores literatos. Um deles, do tipo “show”, vivia apregoando as virtudes de um Machado de Assis. Eu adorava o professor de Literatura Brasileira, José Geraldo Vieira, o “Vieirinha”, já velhinho, cabeços brancos. Ele nem completava o número de minutos de cada aula. Chegava, dava o seu recado, mergulhava em reminiscências deliciosas e despedia-se meia hora depois – deixando uma vontade na vida da gente: que a semana passasse depressa para podermos ouvir novamente as suas histórias.
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JOSÉ GERALDO VIEIRA (1897-1977). Obras referenciais: “A ladeira da memória”, “A quadragésima porta”, “Território humano”, “A túnica e os dados”, “Terreno Baldio”.
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Num dos trabalhos em equipe levamos o autor Emil Farah à sala de aula. Ele havia terminado de escrever o livro “O país dos coitadinhos”, e foi muito bom ouvi-lo durante toda uma aula. Politicamente, havia algumas disputas naqueles tempos de ditadura militar e censura: a briga do pessoal da noite com o da manhã pelo conquista do diretório acadêmico. A turma da noite bolou a chapa “Corujão”, cheia de bossa e cartazes, que ganhou a parada e dominou o diretório.
Outra briga era com a direção da escola. Dizia-se: “só tem cara do TFP no comando”. Havia uma unanimidade: a faculdade de jornalismo só serve mesmo para a obtenção do “canudo” – e com ele o registro de jornalista profissional no MTPS, obrigatório ao exercício da profissão desde 1969. Todos concordavam: jornalismo a gente aprende é na redação de um jornal.
Lembro de um desentendimento que tive com o tal professor do “Machado de Assis”. Suas observações num trabalho qualquer não me convenceram. Discuti o assunto, na redação do Diário do Grande ABC, com o secretário, José Louzeiro, um ídolo pra nós todos pela sua formação de repórter e escritor. E o Louzeiro, ranzinza e tudo o mais – só do lado externo do coração – ficou do lado da gente, rabiscando algumas linhas no próprio trabalho e lascando o malho no professor. Este nem respondeu. Dizíamos: “Como é que um professor de faculdade de jornalismo vem dar aula sem nunca ter pisado numa redação de jornal”?
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JOSÉ LOUZEIRO. Maranhense. Mora atualmente no Rio de Janeiro. Obras referenciais: “Lúcio Flávio, passageiro da agonia”, “Aracelli, meu amor”, “Biografia de Elza Soares”.
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Devorávamos as reportagens do JT, de tantos ídolos. E agora estávamos diante daquele material especial sobre a crônica, que estava morrendo. Estava?
Lourenço Diaféria era leitura obrigatória no “Folhão”. Houve aquele caso em que ele peitou as Forças Armadas dizendo que o sargento que salvara uma criança no zoológico de Brasília dos ataques de uma ariranha – que lhe custou a própria vida – era muito mais herói que o próprio Duque de Caxias. A censura caiu matando e pelo menos um dia a “Folha” deixou em branco o espaço do cronista censurado na última página do caderno de variedades.
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Paro por aqui. O relato prossegue. Não é novo. Usei-o numa palestra sobre literatura alguns anos atrás. A íntegra do trabalho está reunida em livro. Lembrei-me dele nesta segunda-feira quando o nosso editor, Edward de Souza, pediu socorro para alguns textos nesta semana em seu Blog.
Já havia lembrado do texto quando alunas da minha “Cásper Líbero” se manifestaram nesse mesmo Blog sobre seu cotidiano de acadêmicas. E achei que seria justo passar a ela alguns dos pensamentos que a gente tinha numa geração ou duas anteriores a delas. Hoje entendo que algumas certezas do tempo de estudante são questionáveis. Acho que o professor que defendia o Machado de Assis – Ciro Nepomuceno – estava certo. Penso que deveria ter levado mais a sério o curso de Jornalismo, que é importante – defendo-o hoje, assim como o diploma profissional. Mas, enfim, aí está a narrativa de um repórter que volta à juventude. Pelo menos serve de calhau ao blog que nos une.
PS – Não deixem de ler José Geraldo Vieira, em especial “A Ladeira da Memória”.
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*Ademir Medici é jornalista e escritor, formado pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Trabalha na imprensa do Grande ABC desde 1968 e especializou-se na área de resgate e reconstituição da memória. Membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Possui um acervo de 32 livros escritos, sendo 24 publicados e oito inéditos. Ademir também ganhou, em 1976, o Prêmio Esso de Jornalismo, em parceria com o jornalista Édison Motta, pela série “Grande ABC: A metamorfose da industrialização”. Atua no jornal Diário do Grande ABC desde 1972. Foi repórter especial, editor de Cidades e Política e secretário de Redação. Atualmente é responsável pela coluna Memória, uma das mais lidas do jornal e do quadro "MEMÓRIA", no programa "ABCD Maior em Revista".
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