quarta-feira, 14 de julho de 2010



O meu casamento com a Eva praticamente acabou em 1977. Nessa época eu continuava na Prefeitura, morava na casa dos pais da Ilca, em um pequeno quarto nos fundos. Ela dormia num pequeno quarto e eu em outro, paralelo. Antes de dormir, dávamos um jeito de nos amar com mais intimidade, mesmo temendo o olhar vigilante de sua mãe Matilde. Para uma tristeza muito grande da Ilca, dona Matilde morreu jovem, antes de completar 50 anos, em decorrência de um enfisema pulmonar provocado por um violento e prolongado ataque de asma.

Era quase o final de 1977 e, dias depois, a Eva veio me encontrar na casa dos meus pais. Lembro-me que a levei até a padaria próxima e conversamos e, ela, lamentou a morte da mãe da Ilca. Depois, semanas passadas, uma advogada me ligou dizendo ser procuradora da Eva e me convocava para um encontro de conciliação no Fórum local. Não compareci nem em seu escritório e muito menos no Fórum e até hoje não sei o por quê. Só sei que, naquela época, só existia o desquite e eu almejava o divórcio.

Em março de 1978, a Eva me procurou em um escritório de um conhecido meu no centro de Santo André. Estava só em uma sala com ela e lembro-me de que esse foi o último beijo apaixonado que trocamos. Não demorou muito, em uma padaria próxima da casa de seus tios, nos encontramos de novo. Ela, nervosa, queria saber quais os motivos de meu não comparecimento no escritório da advogada. Não sei também o que respondi. Lembro-me apenas de sua repulsa ao me ouvir que gostaria de ver o Marcelo, nem que fosse pela última vez. Ela, simplesmente me alertou para não ir, alegando que os seus parentes estavam enraivecidos comigo.

Sua ira teve explicação anos depois. É que o seu pai, já envelhecido e doente, manifestou o desejo de fazer um testamento, deixando-lhe um imóvel em Peruíbe, no litoral sul paulista, e parte da casa onde morava os seus pais, a ser dividida entre ela e os seus irmãos. Mas ele fazia uma exigência: que a Eva se separasse oficialmente de mim, porque ele acreditava em meu interesse pela herança de sua filha. Ambição que jamais tive e sequer demonstrei. Mas, havia ainda outro motivo: ela estava sendo seduzida por um policial militar que prestava serviços de segurança em uma pequena fábrica de propriedade de seus tios. Este foi o nosso último encontro e, ao se despedir, ela me pediu para nunca escrever ou telefonar. Eu prometi e cumpri com a minha palavra.

Antes desse último encontro com a Eva, o jornalista Fausto Polesi, diretor do Diário do Grande ABC, me autorizou a elaborar duas grandes reportagens. Uma sobre a reconstituição da rebelião carcerária ocorrida na Ilha Anchieta, litoral norte paulista, em 1952, e, a outra, abordando o drama das famílias indígenas que habitavam a periferia das grandes cidades. Para o litoral fui de ônibus, acompanhado do fotógrafo João Colovatti. Chegamos e ficamos na Pensão do Maestro, uma das mais antigas hospedagens da localidade. Fica perto da praia onde o padre Anchieta escreveu na areia a sua Prece à Virgem e, também, do pequeno porto de onde partem os pescadores locais com suas barcaças. Essa pensão, na verdade, é uma casa térrea, pintada de azul e branco, com dezenas de quartos, com banheiros coletivos, cozinha e um pequeno refeitório. A entrada e a saída só por um corredor, sempre vigiado, dia e noite, as vinte e quatro horas, para que hóspedes não saíssem, principalmente de madrugada, sem pagar.

Eu já era um antigo conhecido do proprietário. Há quase dez anos frequentava a pensão e, cada vez, com uma jovem diferente – inclusive a Eva e a Ilca conheceram essa hospedagem, simples, mas confortável e sem exploração dos turistas. Logo mantivemos contato com um barqueiro que, por sinal, estivera como policial militar na ilha e sabia do levante. Atualmente, quem vivia na ilha, cuidando das ruínas do presídio, era o seu filho mais velho. Partimos na manhã seguinte e, para não deixar de ser, fomos acompanhados de duas jovens, que conhecemos na hospedagem. Elas se encontravam de passeio e como dispunham de pouco dinheiro, aceitaram o convite para conhecer a ilha, já que o barco tinha capacidade para mais de seis pessoas. O Colovatti usou mais de dois filmes tirando fotos das ruínas e de certos aspectos da ilha e eu anotei o que considerei necessário, inclusive as frases deixadas por presidiários que, anos mais tarde, confundiam-se com as de turistas . Regressamos a Ubatuba e as jovens decidiram permanecer na ilha, com a promessa de seriam resgatadas no dia seguinte.

Essa reportagem ganhou página dupla do Diário do Grande ABC, sob o título: A maior rebelião carcerária do mundo, em que escrevi utilizando estilo literário-jornalístico e narrando desde o início até o desenlace do levante, que deixou dezenas de mortos, entre policiais e fugitivos. A outra reportagem, que não chegou a ser publicada, tratava do drama dos índios que habitavam os arredores das grandes cidades. Para elaborar essa reportagem, visitei aldeias nas serras de Ubatuba e de Barra do Uma, em São Sebastião, ambas no litoral norte paulista, e em Peruíbe, no litoral sul e, ainda, em Parelheiros, às margens da represa do Guarapiranga.

A reportagem mostrava os problemas que esses índios enfrentavam, as doenças, a falta de comida e a perda dos hábitos, dos costumes e da cultura de seus ancestrais. Essa situação, aliás, foi prevista pelos sertanistas Cláudio e Orlando Villas Boas, em seu último documento, elaborado após a Universidade Federal de Mato Grosso lhes conferir o título de doutor “honoris causa”, em reconhecimento aos relevantes serviços prestados em favor do índio. Para eles, a solução para o problema seria a criação de amplas reservas e parque, nos quais o índio receberia diretamente da Fundação Nacional do Índio, além de assistência médica, os utensílios, implementos e outros objetos indispensáveis.

Eles afirmavam: com tais medidas poder-se-ia evitar que o índio, abandonando sua área, continuasse a frequentar núcleos civilizados, margens de rodovias, sedes de fazendas, aglomerados de garimpeiros, à procura das utilidades que o seduzem e onde, em troca do que obtém, seja vítima de todos os vícios, de tudo enfim que poderíamos classificar de fatores de desintegração, processo que, dada as condições dos citados núcleos, começa, invariavelmente, pela dissolução da família.

Continuavam: dessa forma, atraídos pelos civilizados, os índios são, muitas vezes, persuadidos a abandonar suas aldeias para residir nas fazendas, onde sempre e automaticamente perdem sua autonomia, os estímulos e as oportunidades para suas recreações, bem como a plena disponibilidade do tempo para a obtenção dos tradicionais e fartos recursos de sua subsistência. E isto, só não aconteceu, como piorou.
__________________________________________
Na próxima quarta-feira, o décimo quarto capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50. (Edward de Souza/ Nivia Andres)
Arte: Cris Fonseca.
___________________________________________