quarta-feira, 21 de outubro de 2009

MEMÓRIAS - CAFÉ DA MANHÃ NA ESTRADA

O ano era 1953. Minha família, pai capitão do Exército, vivia em São Borja, RS, cidade às margens do caudaloso rio Uruguai. Do outro lado fica a Argentina. Tínhamos um Chevrolet preto, naquele tempo todos os carros eram importados, e a gente adorava viajar por aquelas estradas de terra estreitas e esburacadas, cheias de curvas, que se enchiam de nuvens de poeira deixadas pelos veículos, que eram poucos.
Éramos quatro irmãos, crianças, meu pai e mãe. As viagens, verdadeiras aventuras, principalmente porque aqueles carros não tinham hora nem lugar para quebrar, com uma frequência absurda quando comparados com os carros de hoje, de alta tecnologia. Essa dificuldade era atenuada pela notável solidariedade de todos os motoristas na estrada. Quando alguém parava, até para um pipi amigo no matinho mais próximo, era raro alguém passar direto, sem perguntar se precisava de alguma ajuda. Os caminhoneiros, então, eram todos também mecânicos. Jamais deixavam alguém na mão, mesmo que tivessem que perder um tempão. Veio disso o termo “irmão da estrada”.
Partimos de São Borja durante a noite, rumo a São Luiz Gonzaga, por sinal onde nasci, em julho de 1945, junto com o final da II Guerra Mundial, da qual meu pai tinha participado recentemente, servindo na base avançada do arquipélago de Fernando de Noronha, numa fusão de tropas brasileiras e norte-americanas.
Durante a viagem o velho ia contando suas aventuras na ilha, histórias que se repetiriam durante toda sua vida, por sinal muito interessantes, e no nosso imaginário ele se transformava num grande herói. A gente ia ouvindo até pegar no sono, com aquele sacolejar do carro na precária estrada. Hoje não são muitos quilômetros que separam São Borja de São Luiz Gonzaga, pela asfaltada BR-285, mas naquele tempo a viagem parecia uma eternidade, ainda mais naquela escuridão. Não sei as razões da viagem nem porque meu pai escolheu a noite. Parecia só um passeio. Rodamos horas.
Foi a primeira vez, maravilhado, que vi um sol nascendo. Aquela bola vermelha subindo no horizonte, iluminando os campos, enquanto a família toda festejava, eufórica pela cena. A estrada parecia um deserto, sem uma única casa à vista em extensa reta. Ainda hoje há fazendas imensas, muitas trocaram o gado pela soja. Em 1953 era tudo pecuária. Imaginem a desolação e a monotonia daquela paisagem de campos verdes que sumiam no horizonte. Era nesse caminho, inclusive, em Itu, que as famílias Vargas e Goulart, dos dois presidentes, “vizinhos de porteira”, como se diz no Sul, tinham suas fazendas.
A fome começou a bater. Durante a noite tínhamos tomado lanche no carro, que minha mãe levou num grande cesto: um peru com farofa e ovos cozidos, preparado com carinho pelo chefe da cozinha do quartel, um tipo bonachão e alegre, amigo da família.

De repente avistamos uma casa isolada, cercada de poucas árvores, quase na beira da estradinha. Era uma casa grande, de madeira, com a pintura gasta e escurecida pelo tempo. Era bonita e se destacava no meio daquele oceano verde ondulado das pastagens. Encostamos e meus pais foram bater à porta. Atendeu prontamente uma senhora serena, de tez muito clara, beleza simples e angelical, com um sorriso acolhedor. Que tempos, em que se abria uma porta assim a estranhos. Não se via mais ninguém na casa, o gaúcho do campo é madrugador, certamente os homens já estariam nas suas rotinas. Meu pai propôs pagar por um café da manhã, ela aceitou prontamente. Nos acomodou na sala, em torno de uma mesa grande, e ali montou, com seus melhores pratos e talheres, tirados de uma cristaleira antiga, um verdadeiro café colonial. Delicioso, com leite quentinho recém tirado da vaca, pão feito em casa em forno de lenha, salame, geléia, manteiga, biscoitos, tudo da produção artesanal doméstica.
Lembro-me que a gente se divertiu com as fotos já cinzentas em grandes molduras redondas nas paredes, com figuras certamente de cem anos passados, os parentes ancestrais daquela família, em poses austeras, com bengalas e chapéus curiosos.
Quando terminamos o farto e saboroso café, só aí meu pai perguntou o preço, puxando a carteira do bolso. “Não é nada e voltem sempre”, respondeu a doce senhora, com o sorriso sereno que nunca se desfazia do seu rosto. Meus pais insistiram, quase implorando para pagar, minha mãe dizendo que “assim morreria de vergonha”, mas a dona da casa foi inflexível, se recusou a receber um único centavo. Ela nunca tinha nos visto antes. Despedimos-nos com abraços como velhos e queridos amigos. Partimos felizes e gratos, todos abanando. Ela respondia, e lá ficou, em pé na varanda, até tornar-se um ponto diminuto e sumir no retrovisor do carro. Jamais voltamos a nos ver. A vida no interior, em 1953, era assim.
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*Milton Saldanha, 64 anos, é jornalista e dono de notável memória, que adora manter sempre viva.
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