quarta-feira, 21 de julho de 2010



Devo reconhecer que se obtive certo renome na imprensa brasileira, mesmo meteórico, é graças ao Estadão, que me possibilitou a elaboração da série de reportagens vencedora do Prêmio Esso de Jornalismo. Comecei bem jovem no Estado. Fazia menos de seis meses que eu trabalhava no bi semanário News Seller, já preparado para se transformar no Diário do Grande ABC, – quando o telefone tocou. Acredito que foi o jornalista Alberto Floret quem atendeu e me chamou, dizendo que era do Estadão. Os outros jornalistas, na redação àquela hora, Lázaro Campos e Eulina Cavalcanti – esta, editora do suplemento feminino e de artes e literatura – se entreolharam, como a perguntar: que o Estadão deseja com esse foquinha? – palavra usada para identificar o novato em jornalismo.
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Do outro lado da linha, o economista José Paschoal Rossetti. Solicitava meu comparecimento à sucursal do Estado, em Santo André, para nós dois conversarmos. No dia e hora marcados eu já me encontrava lá. Paschoal, um homem de menos de 30 anos, não muito alto, cabelos enruivados, logo pediu para eu entrar em uma pequena sala, com duas máquinas de datilografia e um aparelho de telex (foto acima, a esquerda) – o mais moderno meio de comunicação da época, 1968. De imediato, falou de seus planos. Precisava de um jovem literato, em início de carreira de jornalismo, que aceitava ser treinado. Teria registro na carteira de trabalho como repórter de setor. Aceitei no ato e ele, então, me passou um release do serviço de Imprensa da Prefeitura de São Bernardo, sob o comando de Fernando Leça, para que eu lesse e reescrevesse, se necessário. Saiu, dizendo voltar em poucos minutos.
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Realmente, logo ele retornava e eu já tinha preparado o material. Ele leu o que escrevi e também o release, e me deu a primeira lição: nunca reescreva o que está bem escrito, ensinou, referindo-se ao texto do release, que, em sua opinião, não exigia muitas mudanças. Fui aprovado e comecei no Estadão, sem deixar de trabalhar no News Seller que, no mês seguinte, em maio de 1968, passaria a ser Diário do Grande ABC. Descobri depois ter sido o crítico de arte Enock Sacramento quem me indicou ao Paschoal Rosseti. Enock me conhecia de trabalhos literários feitos meses antes e publicados no suplemento do News Seller. Ele contava com o apoio de outro crítico, J. A. Pereira da Silva, o Zé Armando.

Na sucursal do Estadão tive, ao longo do tempo em que lá trabalhei, a companhia do velho amigo Jayme Zerrenner, descendente de alemães, e um ótimo fotógrafo. Nessa época, auge da ditadura militar, quando Zerrenner percebia minha dificuldade em obter uma entrevista, ele falava bem alto: Já que é assim, vamos embora, capitão. E, eu, já orientado: Sim senhor, meu coronel. As pessoas, assustadas por acharem estar diante de dois oficiais militares, de uma hora para outra se dispunham a conceder a entrevista e fornecer todas as informações necessárias para a elaboração de reportagem. Zerrenner morreu com mais de 90 anos de idade, de câncer na garganta. Morreu esquecido.
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Com Paschoal Rossetti, não nego, aprendi a escrever para jornal, a fazer uma abertura de no máximo sete linhas resumindo a reportagem. Durante quase um ano, todos os dias, ele copidescava meus textos. Uma vez, cheguei à redação e a lauda estava intacta, sem nenhum rabisco, nenhuma mudança no texto. Entrei imediatamente em contato com o Paschoal e perguntei-lhe se ele não iria vir à redação para ler a reportagem, antes de ser enviada para a Matriz, em São Paulo, via telex. Ele, ao telefone, deve ter sorrido, ao me informar que lera minha reportagem e não modificara nada porque eu havia atingido o ponto alto por ele desejado. Nesse dia, lembro-me, bebi, bebi como nunca. Alguns desafetos comunicaram ao Paschoal, no dia seguinte, sobre a minha bebedeira. E ele, quando chegou à redação, em vez de me criticar, me elogiou, revelando que se fosse ele, na minha idade, também teria comemorado com uma homérica bebedeira.

Tendo Zerrenner sempre ao lado, e sob a orientação de Paschoal Rossetti, praticamente dissequei a alma dos sete municípios integrantes da região industrial do ABC Paulista. As reportagens falavam do início do surgimento de favelas ao concreto do Paço Municipal de Santo André; dos meninos sob o sol das últimas olarias ao criador de faisões; do cinza da fumaça das chaminés das indústrias ao cultivador de rosas e árvores de Natal; do Velho Caminho do Mar às modernas técnicas da abertura da rodovia dos Imigrantes: do japonês que cuidava de carpas à violência que começava a marcar o ABC; do movimento e do barulho das cidades à tranquilidade nevoenta do distrito de Paranapiacaba, a Vila Inglesa e seu quase desconhecido Instituto Botânico, com árvores raras e animais ainda selvagens. Enfim, com essas reportagens, buscava-se traçar um panorama de como era o ABC e na megalópole em que estava se transformando. Ao Jayme Zerrenner e ao mestre José Paschoal Rossetti deixo aqui minha homenagem, simples, mas saída de um coração sincero.

Quando, em fins de 2003, me informaram da doença, fiquei transtornado e manifestei esse meu transtorno em uma espécie de carta que escrevi para enviar para amigo, mas jamais o ele tomou conhecimento desse meu desabafo. O texto, na integra:
Ainda penso que estou no meio de um sonho, um sonho muito ruim. Já faz dez dias que pisei no Hospital do Câncer pela primeira vez. E cada vez que saio de lá venho carregado de uma espécie de angústia, uma dor que não sinto, mas que machuca por dentro. Vejo as pessoas com grandes cicatrizes no pescoço, algumas deformadas, outras respirando por aparelho e corre em minhas veias uma lenta agonia.

Lembro-me, há muitos anos, o Ricardo Kotscho foi encarregado de fazer uma reportagem sobre o câncer. Depois de muitas entrevistas, o Ricardo saiu com esta: “Viver dá câncer”. Isso porque, na opinião dos especialistas, tudo o que o ser humano fazia poderia provocar o câncer. Ainda recentemente, outro Ricardo, o Hernandes, então assessor da General Motors, teve câncer no rosto. Uma coisa terrível. A única coisa que pude fazer foi prestar a minha solidariedade e escrever um texto que ele achou muito divertido.

Hoje, mal posso acreditar que estou me submetendo a uma bateria de exames preparatórios para uma cirurgia que vai cortar meu pescoço e minha boca. De acordo com o cirurgião Mauro Ikeda, que irá comandar a equipe responsável pela minha operação, após a cirurgia, se tudo correr bem, ficarei dez dias em recuperação no hospital e mais quinze em casa. Depois, então, é que serão retirados os aparelhos e, talvez, os pontos. A seguir, virá a quimioterapia ou radioterapia – ainda não está definido o tratamento.
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Estou escrevendo isso mais para me aliviar um pouco. Não consigo falar com ninguém sobre o assunto. E, depois de operar, não quero receber visitas – tenho horror à comiseração. De resto, meu amigo, sofro mais porque não creio, de coração, em alguém que possa me ajudar. Fico, então, a admirar as pessoas simples, que têm fé e, em sua simplicidade, conseguem a cura por milagre. Mas, num ato de desespero, tento dizer que tenho fé. Mas Ele sabe que não. Mesmo assim, peço a Sua ajuda.
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Na próxima quarta-feira, o décimo quinto capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50. (Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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