segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

DOMINGO, 13 DE FEVEREIRO DE 2011
Este relato envolve fatos reais e pessoas, algumas ainda vivas. Por mais estranho que possa parecer, certas passagens, mesmo que mirabolantes e quase infantis, acontecem em nossa adolescência e nos perseguem até o final dos nossos dias. Fiz uma aposta inusitada com um dos meus melhores amigos e jamais pensei, até pelo ineditismo da pendenga, que pudesse, passados 50 anos, escrever sobre a malfadada queda de braço, decorrente de uma estúpida e inconsequente brincadeira...
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Metade da década de 1950, tinha eu 14 anos, fui jogar no Vila São José, clube de futebol de São Caetano até hoje existente, cujo vice-presidente Francisco Batista de Oliveira, 15 anos mais velho que eu, era uma espécie de conselheiro e ídolo de todos no clube e no bairro. Chico para uns, Chicão para outros, era um negro alto, forte, nascido em Serra Azul, na região de Ribeirão Preto, entre Serrana e São Simão. Criado em Colina, próximo a São José do Rio Preto, Francisco veio morar em São Caetano em meados dos anos 40, onde se instalou com os pais e irmãos na Avenida Bela Vista, bairro Belvedere, casou e constituiu família. De postura altiva, tinha como marca o caráter, honestidade, dignidade, ética e moral inabaláveis. Um negrão pedra 90, como se dizia então, para identificar uma pessoa com comportamento e ações quase perfeitas.
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Como em todo lugar, especialmente naqueles tempos, os jovens formavam sua batota de amigos mais chegados. Por acaso, ou não, fiquei amigo do Chicão, no grupo formado por Antônio Cola, Pedro Depintor, Kiochi Niuchi, José Rossi (Zuza), Antonio Matias de Souza, Luiz Dala Justina e outros, cujos nomes a memória um tanto desgastada não identifica. O Chicão, o mais velho, era uma espécie de guru de todos, e eu o mais jovem. As noites de sábado (à época o happy hour era somente nesse dia), as baladas consistiam em pegar um cinema - Vitória, Max ou Lido - todos no centro de São Caetano, nossa cidade, e hoje extintos e depois uma pizza regada a guaraná ou tubaína na pizzaria Autonomista, onde hoje é a sede das Casas Bahia. Detalhe: nas sessões noturnas dos cinemas os homens só entravam vestidos com terno e gravata.
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Pois bem, em uma dessas rodinhas da turma, um sábado à tarde, no Bar do Zezé, principal ponto de encontro na Vila São José, sem assunto melhor, pegamos uma discussão sobre a morte. Bobagem de um grupo que decididamente não tinha algo mais importante a fazer no momento. Alguém levantou a pinimba tipo "acho que você não vai durar muito" e outras "previsões" macabras.
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Em determinado momento, no pega entre eu e o Chicão, falei: "você é mais velho, portanto deve morrer primeiro". Totalmente abstêmio e pouco fumante (uma carteira por semana), saúde em dia nos seus 30 anos, Chicão não deixou barato e desafiou: "vamos apostar então quem morre primeiro". Não ficou definido o objeto da aposta e nem poderia. Um absurdo, pois certamente nenhum dos dois queria ganhar e muito menos perder. E o derrotado, como pagaria? Todos nos divertimos com a brincadeira que deveria ser solenemente esquecida na sequência. O assunto jamais foi ventilado pela cretinice do tema, porém ficou, em silêncio, incrustado na memória de ambos.
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O tempo passou, cheguei à presidência do Vila São José, Chicão afastou-se do clube, mudei para São Bernardo, onde estou até hoje, e nosso contato desapareceu quase que por completo. Esporadicamente recebia alguma notícia por meio do professor Luís Carlos Maia, tipo amigo-irmão, com o qual mantenho contato mais frequente. Por meu precário estado de saúde, com correrias semanais aos hospitais aqui do Grande ABC, cheguei a imaginar que partiria antes, apesar da diferença de 15 anos entre nós.
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Na última quarta-feira, logo pela manhã, toca o telefone em casa. Era o professor que, com alguma cautela, informou: "Lavrado, o Chicão morreu segunda-feira (7 de fevereiro) e já foi sepultado (terça, 8). Nesta sexta-feira (11), leio na seção fúnebre do Diário do Grande ABC: "Francisco Batista de Oliveira, 85 anos, sepultado no Cemitério das Lágrimas, no Bairro Mauá, São Caetano".
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Acredito que no subconsciente a gente matutava sobre essa aposta infeliz envolvendo um adolescente (no caso eu), e um cara já experiente (Chicão). Uma bobeira juvenil, um pega que certamente nenhum dos dois queria ganhar e muito menos perder. Não haveria vencido nem vencedor. Ganhei (ironia) e perdi: Francisco, um dos maiores caráter que conheci e um dos melhores amigos que tive na vida, foi em minha adolescência espelho e indicador de conduta para o futuro. Agora, é uma lacuna impossível de ser preenchida.
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Certamente não cobrarei a aposta, mesmo porque não foi uma vitória; fica como pagamento a lição de vida que assimilei com Chicão e que moldou minha existência. O reconhecimento eterno de uma amizade inabalável. Este relato, de uma história real, apenas lembra ações descontraídas de uma juventude descompromissada que, escondidas no baú da memória, um dia retornam à realidade, irreversível, impessoal e verdadeira. Sei que está com Deus, Francisco.
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*Oswaldo Lavrado é jornalista/radialista radicado no Grande ABC.
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