quarta-feira, 31 de março de 2010


CONTOS & CRÔNICAS DE PÁSCOA

CHUCHU


Segundo ensina o dicionário, chuchu, do francês antilhano chou-chou, é uma trepadeira cucurbitácea, de nome científico Sechium edule, de fruto verde e comestível. Na linguagem popular, pessoa muito bonita, graciosa; muito querida, ou que é a favorita, a mais mimada.

Vocês devem estar achando que estou louca ao falar de chuchu em plena época de Páscoa, afinal, até prova em contrário, chocolates são feitos com cacau...

Pois bem, explico. O Chuchu a que me refiro não era um legume. Era um digno representante da família Leporidae cujos membros são popularmente conhecidos como coelhos! No mais, confere com o dicionário, era lindo, fofinho, gracioso, elegante e transformou-se em favorito, no mais mimado...

Nossa história com o Chuchu começou quando minha irmã Nina ganhou aquele coelhinho branco de seus amigos e o trouxe para o apartamento. Na época, morávamos em Santa Maria, para estudar.

Logo nos primeiros dias de convivência nos apaixonamos por ele. E também tivemos prejuízos avantajados. Mesas, cadeiras, vassouras, sapatos foram solenemente roídos pelo láparo esfomeado que, nas horas de solidão, era o rei do pedaço. Nada escapava de seus dentões serrilhados...Não pensem que o deixávamos à míngua. Comia à farta, uma feira inteira por dia...

Seguidamente havia um conselho da tribo, para discutir o banimento do Chuchu, por prejuízo mobiliário e econômico, mas o danadinho sempre ganhou todas as questões, somente advogando com o olhar pidão...Resistir, quem havia de?

Assim, em pouco tempo, tornou-se o rei do apartamento 44, altos do Cine Glória, nossa feliz morada na cidade universitária...Por algum tempo, o reino dele era a área de serviço; depois, tomou de assalto a casa inteira, quando adquiriu comportamento de gente, respeitando o código de conduta estabelecido: Não roer, não lamber, não mastigar roupas, móveis e utensílios, não fazer xixi no sofá nem nos cantinhos. Comportar-se com um bom menino, obediente e educado. Um gentle rabbit!

Quando chegávamos da aula, Chuchu nos esperava na porta, confortavelmente instalado nos peleguinhos de lustrar. Daí, pulava no meu colo, no sofá, para assistir televisão, olhar fixo e interessado. Adorava o Programa da Xuxa (que assistia sozinho, diga-se de passagem, batendo a patinha ao ritmo do ilariê...desconfio que suspeitava ser parente da moça!) e as novelas, principalmente a das oito. Creio até que suspirava, nos momentos mais emocionantes dos folhetins televisivos...Nos intervalos, fazia o seu show e merecia aplausos – como a sala era ampla, dividida em dois ambientes, Chuchu descia do sofá, engatava uma primeira, ganhava velocidade e deslizava até encontrar a parede, batendo a cabecinha, de propósito...Voltava vendo estrelas, com cara de malandro. Se deixássemos, repetia a façanha, até cansar. Depois, dormia, invariavelmente, no nosso colo. Acordado, como guri obediente, seguia a dormir em sua casinha.

Nossa vida com Chuchu fluiu agradável, por vários meses. Quando chegaram as férias, afastamos a possibilidade de levá-lo para Santiago, pois a mãe não o aceitaria. Tinha cachorro, gato e caturrita (que assobiava o hino nacional inteiro!) na casa...

Então, a Nina confabulou com um colega que tinha sítio e acertou a permanência do Chuchu na temporada de férias. Despedidas chorosas... mas, fazer o quê? Foi-se o Chuchu, rumo à serra, com mochila e peleguinho...

Ao retornarmos à Santa Maria, rapidamente minha irmã foi ter com o tal amigo, para combinar o resgate do Chuchu. Voltou desconsolada e furiosa. O Chuchu, lindo e fofo, havia virado refeição, segundo o depoimento do gajo assassino. Até hoje não sabemos se o Chuchu, de fato, virou comida ou fugiu (que de bobo não tinha nada...) mas o resto, podem acreditar, é tudo verdade!

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*Nivia Andres é jornalista e licenciada em Letras. Suas opiniões e vivências estão no Blog Interface Ativa! Para conhecer, acesse
http://niviaandres.blogspot.com/
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A seguir, logo abaixo, leia o conto Restos e Rastros,
da escritora convidada Silvana Boni de Souza.
CONTOS & CRÔNICAS DE PÁSCOA

RESTOS E RASTROS

Folheava o livro antigo encontrado nos guardados do sótão, sob a luz de uma lâmpada que pendia do teto. Morava ali desde sempre, com boas lembranças daquele seu universo e as memórias de escola afloravam aos poucos em restos do que foi, um dia, a sua única verdade.

Os anos haviam passado rapidamente e seus planos foram abandonados, arquivados em gavetas de chaves esquecidas na sua mente. Novas experiências foram acrescentadas àquele rol primordial e ele se perguntava naquele momento quantas mais seria preciso acumular na vida e com qual objetivo, se voltaria ao pó mais cedo ou mais tarde, para descansar eternamente no sótão Divino. Mais uma página virada e novas lembranças...

O pai costumava ler sempre aquela história na hora de dormir! Como poderia ter desviado o foco daquela que era tão importante, daquela que o fazia viajar em pensamentos e imaginar coisas impossíveis, mas tão reais como as que aconteciam no livro?

“Alice no país das maravilhas” tinha descrições e desenhos imaginários, que despertaram nele o interesse pelo desconhecido, pela exploração do improvável, que sua inocência infantil garantia, absolutamente, que aconteceria.

“- É tarde! - É tarde!”, dizia o coelho no papel amarelado.

Até aquela presente data o bicho engravatado não se convencera que sempre estivera atrasado! Sempre olhando o relógio e correndo, premonitório à condição da atualidade.

“- É tarde!”

Nunca entendera o motivo de tanta pressa, mas com o tempo passando, a frase começava a fazer cada vez mais sentido.

Era tarde e ele tinha pressa de viver! Queria aproveitar o que a vida lhe tinha reservado, as regalias às quais raramente se permitia. Perder oportunidades? Nunca mais! Nunca mais se lançar ao fosso escuro e desconhecido de investidas não planejadas e cair em buracos sem fim ou situações insustentáveis!

A cada assopro para espantar o pó, novo episódio da história se revelava e, com ele, mais lembranças reviradas, a confirmarem os paralelos.

O coelho a se mover pelo conto e a vida estacionada pelos cantos!

Era a madrugada do dia de Páscoa. As crianças dormiam (sempre se referia aos filhos desta forma, mesmo adultos) e os ovos, que ele e a mulher esconderam pela casa, já aguardavam, ansiosos. Ninguém achava mais graça naquilo, mas os pais insistiam em incutir-lhes o subdesenvolvimento, deixando transparecer o que gostariam que acontecesse à prole, a estatização.

Mais uma folha virada do livro e finalmente se permitiria dormir. Foi aí que percebeu a falha no desenho! Voltou ao texto para confirmar o que não via. Faltava um detalhe, estava certo!

Com o canto dos olhos percebeu o movimento rápido.

Um remexer de papel denunciava uma presença e, em instantes, pôde ver os rastros deixados no chão sujo, apontando para a escada. Ao olhar para baixo ainda teve tempo de ver a fofa bola de pelos da cauda, conformado com o atraso que suas pernas velhas e seu movimentar lento lhe impingiam.

“- É tarde! - É tarde!”, pôde ouvir lá de baixo.

Desceu. O barulho de papel do embrulho dos ovos surpreendeu a mulher. Não era provável que ele tivesse feito aquilo!

“- Liberdade!”, disse ele de olhos alegres, lambendo o chocolate dos lábios e deliciado com a transgressão infantil, finalmente evidenciada!

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*Silvana Boni de Souza é farmacêutica bioquímica, especialista em Homeopatia. Escritora de contos e crônicas, desde 2000 participa de alguns projetos dinâmicos: http://www.vivasp.com/ que apóia desde o início; http://www.carmenrochacontos.pro.br/ que frequenta há três anos e http://www.deshortsnasiberia.com.br/ de sua autoria, desde 2008.
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