quarta-feira, 14 de abril de 2010

UMA SÉRIE INÉDITA ESCRITA POR JOSÉ MARQUEIZ - PRÊMIO ESSO DE JORNALISMO



"Essas recordações são de um homem que, apesar de tudo, ainda acredita valer a pena lutar pela vida".
José Marqueiz
*
“Yo confeso que viví”.
Pablo Neruda


Para
Ilca
, amor, coragem e perseverança.
Lívia Faé e Octávio Leite Vallejo, que tudo fizeram para a realização dos exames e do tratamento médico necessários.
Eva e Priscila, mãe e filha, pelas orações diárias.
Paulo Pereira e Severino Ferreira da Silva, o Jacaré, pelo apoio e pela força.
Meus irmãos Maria Madalena, Antonia, Sebastião e João Pedro, pela solidariedade.
Para a equipe médica do Hospital do Câncer, com agradecimento especial aos doutores José Ricardo Testa, Mauro Ikeda e Ulisses Nicolau – a quem devo a minha sobrevida.

PRIMEIRO CAPÍTULO

Como fazia todos os domingos pela manhã, caminhava pela praça central da cidade em companhia do meu amigo Paulo Pereira, quando comentei, em tom jocoso, que começava a sentir os primeiros sintomas da velhice: dificuldades em ouvir do lado esquerdo, justamente o lado onde há três anos passara por uma cirurgia para retirada de um tumor maligno.
Nós podemos nos considerar sobreviventes, observou o amigo, que também tivera retirado um tumor, ao lado do intestino. Ele dizia assim baseado na experiência médica, segundo a qual uma pessoa pode ser considerada praticamente curada desse mal quando ultrapassa os cinco anos depois da operação. Após esse período raramente o tumor reaparece e se isso ocorre antes os especialistas denominam de recidiva, o que significa, de acordo com o Novo Dicionário do Aurélio, “reaparecimento de uma doença algum tempo depois de se haver convalescido de um primeiro acometimento”. Foi o que ocorreu comigo.

Meus planos de reiniciar uma nova vida tiveram de ser relegados uma semana antes de completar três anos de alta hospitalar. A luta tinha de ser retomada, imediata e constante, contra a doença. Justo agora que estava começando a comemorar a deglutição de pequenos pedaços de pastel de palmito, regados com cerveja...
As primeiras imagens da cabeça e do pescoço revelavam a existência de necrose, provocada pela radioterapia. Exigiria uma cirurgia complexa, mas não demorada. Só que o médico avisou: quando abrisse atrás do ouvido para limpeza, aproveitaria para a retirada de material para uma nova biópsia. E foi essa biópsia a reveladora: o tumor, com quase 2,5 centímetros, avançava pela estrutura craniana e sua localização impedia nova cirurgia: surgira junto à veia carótida, artéria que liga o coração e o cérebro.

-É uma operação de altíssimo risco, diagnosticou o médico José Ricardo Testa, do Hospital do Câncer, em São Paulo. A opção mais indicada será tentar diminuir o tumor com químio e radioterapia.
Nesse dia, encontrava-se em companhia de minha mulher. De São Paulo para Santo André, onde moramos, ela veio dirigindo, tendo ao lado um marido abatido e taciturno.

Antes de banhar-me, saí. Precisava ficar sozinho, pensar, se é que reunia condições para pensar, para racionar como uma pessoa normal. Da primeira vez, ponderei, o tumor aparecera como castigo por eu ter fumado durante mais de trinta anos e ingerido bebidas alcoólicas pelo mesmo período. Na época, comemorava os doze anos sem fumar e tempo quase igual sem me embriagar com bebidas com alto teor alcoólico. E desta vez, por quê? Continuava longe do tabaco e me restringia a tomar cerveja, sem engolir nenhum produto destilado, capaz de ferir com maior agressividade meu organismo.

Seria um castigo divino? Ultimamente, eu e o Paulo vínhamos questionando a existência de um deus, de um ser supremo, onipotente, onipresente, capaz de manter a vida ou determinar a morte a seu bel-prazer, de acordo com o humor de seu dia.
Realmente, desde criança revelara-me descrente de seres superiores, santos. Só em alguns momentos de extrema aflição é que olhava alguma imagem, que minha mulher coloca no quarto onde durmo, para suplicar alguma ajuda – mas, sem fé, nem esperança de ser atendido. Também jamais entrei numa igreja, um templo religioso de qualquer seita, para ajoelhar-me, penitenciar-me e rogar algum perdão, alguma dádiva.


Eva, minha ex-mulher, de quem estou separado há quase trinta anos, se transformou de católica apostólica romana em uma devota evangélica, e vê na palavra de um senhor todo poderoso milagre e solução para todos os males. Diariamente ela me envia mensagens eletrônicas, com uma oração, outras com comparações bíblicas, onde a dor e o sacrifício são vistos como redenção para uma vida melhor e mais próxima de um ser superior, que habita outra esfera, muito distante, e, no entanto, sempre presente, pronto a ouvir os pedidos daqueles que creem em sua potencialidade divina.

Enfraquecido, sem forças muitas vezes para andar poucos metros, tenho vontade de me apegar a essas orações, acreditar em seu significado, orar, contrito, e esperar que a cura venha dos céus. Mas se não consigo enganar-me, como fazer crer aquele que tudo vê e tudo sabe?
Decidi, portanto, dar um testemunho dessa minha passagem pela dor, causada por um tumor no cérebro, que dificilmente poderá ser retirado por meio de uma cirurgia. A solução, insistem os médicos, está no tratamento quimioterápico, e, depois radioterápico, única forma de conter o avanço da doença. Em outras palavras, única forma de me proporcionar alguns anos a mais de vida.
Esse testemunho é, afinal, um pouco das lembranças do que foi minha vida – nunca deixei de amar, apesar de ser sempre mais amado, de ter recebido muito mais amor, amor que, sinceramente, não fiz por merecer.

SINTOMAS DA DOENÇA

Vivia uma fase de otimismo quando apareceram os sintomas da volta do tumor. Fazia pouco mais de um mês da visita periódica ao médico Mauro Ikeda, responsável pela primeira cirurgia, e este constatara que estava tudo bem – só deveria regressar seis meses depois, para o exame de rotina.
Semanalmente participava de uma sessão com uma fonoaudióloga, para reaprender a mastigar e a engolir alimentos sólidos. O problema, no entanto, estava na falta da saliva, uma vez que a radioterapia anterior havia secado as glândulas salivares. Sentia, aos poucos, o retorno da saliva e, com ela, a perspectiva de voltar a tomar refeições como qualquer pessoa normal.

Percebi a deficiência auditiva, pela primeira vez, quando estava entrevistando um advogado por telefonema, para elaborar um texto para o ABC Repórter, jornal para o qual trabalhava. Sem fazer qualquer correlação com o tumor extirpado, marquei consulta com um otorrinolaringologista, uma palavra tão comprida que os próprios profissionais do ramo decidiram abreviar para otorrino, o especialista em ouvido, nariz e laringe. Esse médico, consultado, me deixou otimista: era apenas catarro acumulado nessa área do ouvido e uma injeção resolveria o problema.
- Tome a injeção e volte daqui um mês. – sentenciou.
No prazo estipulado, regressei, com o problema auditivo agravado. Marcou novos exames e, quando lhe fui levar os resultados, a face esquerda começara a ficar paralisada e o olho esquerdo estático.

Diante desse quadro, esse mesmo médico desta vez solicitou tomografia computadorizada e ressonância magnética da área afetada. Ao ver as imagens, comentou laconicamente que o caso “era mais importante do que ele calculava” e, como se estivesse cumprido a sua missão, me encaminhou para uma especialista em ouvido. Pensei comigo: “E ele, era especialista em quê?”.
Esta médica, profissional bem mais responsável, ao analisar as imagens dos dois últimos exames, foi lacônica e taxativa:
- O melhor caminho é levar esses exames para o médico que o operou no Hospital do Câncer.
Quis saber se era grave a situação, e ela, manteve-se indiferente, me desejando apenas “Boa sorte”.

Preocupado, consegui marcar uma consulta urgente com o doutor Mauro Ikeda que, de início, também se mostrou otimista. Não era nada grave, apenas uma necrose. Talvez nem precisasse de cirurgia – medicamentos bastariam para eliminar esse problema. Mesmo assim, me indicou para outro médico: o otorrino José Ricardo Testa. Este também, com base nas imagens, acreditou ser apenas uma necrose. Uma cirurgia complexa, mas não demorada. Em pouco tempo, eu voltaria ao normal. Alertou, no entanto, que iria realizar a biópsia de outra parte, mais profunda do cérebro, para verificar se tudo se encontrava normal.

Essa biópsia deixou tanto o Dr. Testa com o Dr. Ikeda, apreensivos, mas como não tinham convicção do que realmente havia, solicitaram um exame ainda mais sofisticado: o Pet Scan, que exige paciência e serenidade do paciente, obrigado a ficar inerte por mais de duas horas, dentro de uma espécie de tubo compressor.
Esse exame não deixou dúvidas: houvera a recidiva e o tumor ressurgira em um local de alto risco cirúrgico. A solução foi por uma longa quimioterapia. Cada sessão duraria cinco dias, a cada 21 dias do mês, durante cinco meses. Não havia outra opção. Eu teria que vencer mais essa, se quisesse continuar vivendo...
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Na próxima quarta-feira, o segundo capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. (Edward de Souza / Nivia Andres / Arte: Cris Fonseca).
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