segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

DOMINGO, 20 DE FEVEREIRO DE 2011


Os velhos e bons filósofos já ensinavam e os novos e não tão bons também. Uma boa e ponderada conversa resolve qualquer pendenga, por mais acirrada que seja e acalma o mais feroz dos homens. Foi exatamente isso que aconteceu num ensolarado domingo do começo da década de 1990, quando a equipe de esportes da Rádio Diário do Grande ABC se preparava para transmitir um jogo entre Santo André e São Paulo, pelo Campeonato Paulista, no Estádio Bruno Daniel, em Santo André.
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Como não poderia ser diferente o Brunão (foto), recebia grande público e praticamente todas as emissoras de rádio de São Paulo estavam lá, afinal o Tricolor do Morumbi era o líder do Paulistão e estava no ABC com todos os seus titulares, entre eles o goleiro Zetti, Muller e Raí. O técnico era o consagrado Telê Santana. A Imprensa, tanto rádio como TV, sempre chega ao local do jogo muito antes dos torcedores e também das equipes. Isso igualmente acontece com o pessoal da Federação Paulista de Futebol (FPF) que cuida da fiscalização e outros preparativos.
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Por volta das 11h30, a equipe da Rádio Diário do Grande ABC já estava a postos com o narrador Edward de Souza, o comentarista Oswaldo Lavrado, o repórter Sidney Lima e faltava um repórter, Valmir Fracarolli, um gordinho bonachão, competente, que residia na Vila Ema, em São Paulo, quase divisa com São Caetano. O time da Diário entraria no Ar às 13h, como era de praxe. As 12h chega o repórter retardatário, um tanto esbaforido e apressado, pois estava bem atrasado para minha apreensão e desespero, já que eu era o comandante da equipe. Da cabine, vimos o Valmir em campo, porém sem o jaleco da FPF que identifica os integrantes da Imprensa autorizados a trabalhar. Pior, discutia acirradamente com um fiscal da Federação. Em determinado momento, a pinimba parou e, minutos depois, Valmir estava ao nosso lado na cabine.
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Não muito amistoso resmunguei: “Ei, cara, teu lugar é lá embaixo, não aqui. Já estamos atrasados". Meio sem jeito o repórter tentava justificar: “sai de casa com muita pressa e esqueci a credencial. Sem ela o chefe dos fiscais não me deixa trabalhar". Respondi, sem esperar outras desculpas: "não podemos trabalhar só com um repórter num jogo desta importância. Vai lá, fala com o homem, tasque-lhe um beijo, prometa uma viagem a Paris, um churrasco depois do jogo, mas arrume um jeito de trabalhar no campo". A coisa estava pegando fogo entre eu e o Valmir. Faltavam uns 40 minutos para a rádio entrar no Ar. Vendo que nossa discussão não renderia nada o Edward entrou na história e decretou: "deixa comigo que vou dar um jeito". Pegou o Valmir pelo braço e determinou: "vamos embora" e sumiram cabines abaixo. Logo apareceram na boca do túnel do campo.
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Durante 10 minutos o chefe dos fiscais, soube depois chamar-se Dácio, gesticulava, o Edward também e o Valmir ao lado, em silêncio. Os gestos foram diminuindo, Dácio e Edward já não gritavam e em instantes estavam abraçados, como se fossem velhos e bons amigos. Observei o Edward cochilar alguma coisa ao pé do ouvido do fiscal, que em seguida entregou um jaleco laranja ao Valmir, deixando-o apto a exercer sua função de repórter. Respirei aliviado.

Ofegante, Edward (foto) chegou a cabine, peito estufado, olhou para mim e, maroto, disparou: "Não fosse eu aqui a transmissão de hoje iria para o brejo". Bem mais calmo indaguei: "o que você fez para domar o fiscal?" "não precisou muito" disse, e não escondendo seu ar de satisfação, explicou: "primeiro falei ao Dácio que nosso chefe que está na cabine é um sujeito ignorante, não aceita desculpas e promete despedir o rapaz, caso ele não trabalhe hoje, já que esqueceu a credencial" e prosseguiu: "o Dácio, com uma arrogância de fazer inveja a Calígula, bateu o pé, chamou o Valmir de irresponsável, grosseiro e ignorante. Retruquei, pedindo sua compreensão, já que o repórter é casado, tem dois filhos e não podia ficar desempregado. Pedi, por favor, quase supliquei e repeti que nosso comandante é um imbecíl e iria demitir o pobre rapaz. Em seguida, disse baixinho em seu ouvido: “percebi, assim que olhei em seus olhos, que você é um homem bom e justo e tem um grande coração. Nessa eu ganhei o Dácio, o Valmir recebeu o jaleco. Agradeci, dei forte abraço no chefe dos fiscais e tudo acabou bem", finalizou nosso narrador, sem esconder um sorriso de satisfação de quem resolveu uma pendenga crucial graças a sua fértil e providencial imaginação.

Transmitimos o jogo com a garra que sempre caracterizou a equipe da Diário, voltamos rindo e felizes à base e convidei todos da equipe para uma saborosa pizza no Fornello, uma pizzaria classe A que havia ao lado da Rádio Diário, em São Bernardo. Na despedida para tomar o rumo de casa fiz a derradeira advertência: "olha, Valmir, que isso sirva de lição, nunca mais esqueça a credencial, pode ser que da próxima vez o Edward não esteja, aí a vaca vai pro brejo...".

Meses depois Dácio passou a fiscalizar as portarias dos estádios de São Paulo. Morumbi (foto), Pacaembu, Canindé, Parque Antarctica e algumas vezes aparecia no ABC, no Bruno José Daniel, em Santo André e Baetão, em São Bernardo do Campo, o Primeiro de Maio ainda não estava autorizado a mandar grandes jogos. O Edward apresentou-me ao Dácio uma tarde no Morumbi. No entanto, como não foi dito ao fiscal da FPF que eu era um sujeito legal, continuo sendo para ele um cara grosseiro, ignorante e imbecil. Edward e Dácio tornaram-se grandes amigos e se abraçavam sempre que se encontravam. O fiscal não exigia de nenhum de nós as credenciais, só dizia sorrindo: “vão entrando, sejam bem vindos”.
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Detalhe: nesta partida o Santo André venceu o esquadrão do São Paulo por 1 x 0. Neste ano de 90, este mesmo elenco do São Paulo ganharia a Libertadores e o Campeonato Mundial no Japão.
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*Oswaldo Lavrado é jornalista/radialista radicado no Grande ABC
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