terça-feira, 11 de maio de 2010

E.S.P.E.C.I.A.L

O DIA EM QUE MORRI (II)

Dedicado à médica Liliana Diniz

Aviso: não é ficção. Tudo que será contado foi real!

O HOSPITAL SÃO CAMILO E UMA TRISTE HISTÓRIA

Assim que soube que meu plano médico me dava direito ao Hospital São Camilo, da Pompéia, a jovem médica do Incor sugeriu minha transferência. Suas referências sobre o São Camilo eram excelentes; lá trabalhavam os mesmos cardiologistas do Incor; e eu teria a vantagem de estar num hospital muito mais tranquilo. No Incor, as salas de cirurgia funcionam praticamente em regime 24 horas, de domingo a domingo. Sai um paciente e eles chamam o próximo, parece uma linha de montagem restaurando corações avariados. Tudo com a maior competência, é um centro de excelência médica, que orgulha o Brasil.

Troquei idéias rapidamente com meu sobrinho e minha namorada e aceitei a sugestão da médica. Ela tinha toda a razão. O São Camilo é um hospital modelo. E sua área de cardiologia muito bem equipada, com um corpo clínico formado por médicos que são também do Incor, de grande experiência e capacidade.

Vou abrir aqui um parênteses para comentar um triste fato da história do Hospital São Camilo (Pompéia). Há muitos anos um jovem impetuoso e irresponsável, munido de uma câmera de vídeo, invadiu com chutes nas portas a UTI do hospital, exigindo explicações sobre o estado de saúde da sua esposa, lá internada. Antes que os defensores dele, o hoje deputado federal Celso Russomano, queiram me trucidar em seus comentários, quero afirmar com toda a ênfase que não se entra numa UTI dessa maneira truculenta. Sem prévia assepsia. O infeliz poderia ter contaminado o ambiente inteiro, colocando em risco a vida de todos os pacientes, muitos deles em estado muito delicado. No entanto, nossa imprensa burra e precipitada, que adora um escândalo e cair de pau nos médicos, abriu manchetes nos jornais e grande espaço nas TVs para mostrar as cenas da invasão. Um péssimo exemplo transformado em heroísmo. A partir daquele dia o Hospital São Camilo, mantido por uma instituição católica séria e respeitável, virou sinônimo de açougue e outros comparativos até piores. O hospital quase fechou. E o jovem “herói”, aclamado sem questionamento da sua irresponsabilidade, largou seu emprego no Detran e começou assim sua bem sucedida carreira na TV e na política, encarnando um personagem que defende os consumidores.

Sob uma chuva de críticas públicas e forte pressão, a principal consequência do episódio foi uma reforma geral e radical no hospital, que mudou seu corpo clínico e administrativo. Certamente naquele tempo havia problemas. Mas nada justifica, mesmo com a atenuante do descontrole gerado pela forte emoção do então jovem, uma invasão, literalmente na porrada, como mostraram as cenas, da sua UTI.

Transformou-se num hospital modelo, referência em qualidade. Dos 22 dias em que lá fiquei internado, só tive uma pequena queixa, de uma ajudante de enfermagem que me depilou o peito para a cirurgia do coração. Desleixada, me cortou, deixando indignada a médica anestesista. Mesmo sonolento pelos remédios que já vinham me dando desde a noite anterior, lembro-me perfeitamente da bronca da médica, que queria saber o nome da incompetente para denunciá-la à direção. O detalhe mostra o zelo dos médicos com seus pacientes. Fora isso, com toda honestidade, só tive elogios ao hospital São Camilo.

Como previsto, voltando ao Incor, minha transferência foi de ambulância, com médico e enfermeiro ao lado. Entre conseguir ambulância e fazer a remoção foram quase cinco horas. Eu ali deitado, completamente lúcido e calmo, conversando com eles como se estivesse numa mesa de bar. Foram devagar, sem usar sirene, paravam nos semáforos. Na verdade, sem nenhuma dor, nem mal-estar, eu me sentia meio ridículo deitado naquela maca da ambulância. É claro, os médicos sabiam o que estavam fazendo. Imagine se me liberam e morro na rua... Seria tremenda encrenca.

Para espanto das pessoas nos corredores do hospital, entrei deitado na maca sorrindo e conversando com meus familiares, que caminhavam ao lado. Minha serenidade era absoluta.

Completamente lúcido, sem dores, e na UTI do Hospital São Camilo. Meu corpo plugado a dezenas de fios coloridos que convergiam para computadores e um monitor onde transitavam, de forma monótona e repetitiva, as ondas das minhas batidas cardíacas, entre outros dados para análise e acompanhamento dos médicos e enfermeiros. Eu tinha que permanecer numa única posição. Impossível, sequer, virar de lado na cama.

Brotou o impulso do pânico, a vontade de gritar, arrancar os cabos que me ligavam aos aparelhos, correr dali a qualquer custo, sob qualquer risco. Você está preso na cama, numa única posição, sabe que as horas serão intermináveis, e o cenário da UTI é sempre barra pesada. Desolador.

Foi incrível. Comecei a conversar comigo mesmo, como se fosse outra pessoa, a ponto de me chamar pelo próprio nome. “Calma, Milton, relaxa, vai dar tudo certo, isso passa, mostra agora que você é forte...” e vai por aí. Pensei também no pior: se entrar em pânico, vão me amarrar na cama, e isso seria insuportável. Funcionou. Mantive o controle, fui ficando calmo, tomei comprimidos e algum tempo depois dormi. Assim passou o primeiro dia e noite. Talvez mais duro que seu próprio sofrimento, seja o fato de ser testemunha do sofrimento dos demais pacientes. Você tem gente gemendo ao seu lado. Um implorava por água, mas os enfermeiros, por ordem médica, não podiam dar. O máximo permitido era, de vez em quando, molhar e torcer um pano para ele morder, refrescando a boca ressecada. Outro acordava no meio da noite, aos gritos: “Pai, me tira daqui!” Num domingo à tarde entrou um rapaz baleado, totalmente fora de si. A primeira pergunta do médico: “é mocinho ou bandido?” “Ele foi assaltado”, respondeu a enfermeira. Minha cama era ao lado, eu olhava tudo aquilo como se estivesse vendo um filme de suspense e terror. Até que alguém, percebendo que eu estava impressionado, cercou a cama do ferido com um biombo.

Algo que sempre incomodava, a qualquer hora da madrugada, quando você já tinha conseguido pegar no sono, era ser acordado com as luzes fortes para recebimento de um novo hóspede. Médicos e enfermeiras não podem ficar com frescuras, precisam falar, e alto. Lá se vai seu belo sono, que demora a voltar. Isso acontecia várias vezes, todas as noites. Um dia vi abrirem as costas de um paciente. Três médicos foram lá, com máscaras, discutiram detalhes, tomaram decisões, e um sujeito todo paramentado, como se fosse um astronauta, munido de uma pequena máquina que fazia tlec a cada ponto, costurou tudo de novo, de cima a baixo. A gente se acostuma a tudo, essas coisas não mais me chocavam, iam virando rotina. Mas existe algo que jamais fica banal: é a expressão de dor, o gemido, o grito. São lancinantes e ficam cravados na sua memória, para sempre.

Em dois horários do dia todas as tarefas eram interrompidas, as enfermeiras deixavam tudo arrumadinho e limpinho. Era nossa hora de receber visitas. Sempre uma única pessoa por vez, que antes de entrar na UTI passava por procedimentos rígidos de assepsia. Eram proibidas de sentar em nossas camas, mas a gente podia se tocar. Receber visitas era de uma importância inimaginável. Como era bom ver e falar com alguém da família ou com um amigo querido. Poucos minutos, mas extremamente valiosos. Eu pedia à família: “nunca me deixem sem visita”.

Nessas horas eu morria de pena dos vizinhos de cama que não eram visitados. Não rompiam aquela solidão atroz. Não tinham esse pequeno elo com o mundo exterior. Confinados aos sons tristes, brancura, cheiros de remédios e luzes daquela ante-sala da morte. Não raro, cercavam uma cama com biombos, silêncio total. Dali saia a maca com o corpo totalmente encoberto pelo lençol. Conforme o caso, era mais feliz assim.

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*Milton Saldanha é jornalista e escritor.

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Não percam, na quinta-feira, o terceiro capítulo de O DIA EM QUE MORRI. Nesta quarta-feira você vai acompanhar o quarto capítulo inédito de "Memória Terminal", escrito pelo jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo.