quarta-feira, 6 de maio de 2009

MENINGITE MATOU CENTENAS DE CRIANÇAS

Édison Motta
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Epidemia sob censura
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Primeiro semestre de 1974. Após ter trabalhado durante nove meses na redação da Folha de S.Paulo, aceitei o convite de José Louzeiro, chefe de redação do Diário do Grande ABC para retornar, como faz o bom filho, á casa onde dei meus primeiros passos na função de jornalista. Havia pedido demissão, no ano anterior, a contragosto. Porque um desentendimento entre a diretoria do jornal e o Sindicato dos Jornalistas emperrava a obtenção de meu registro profissional. Embora jovem, quase menino, pertencia àquela leva de “velhos jornalistas” que poderiam obter o registro desde que comprovassem exercer a atividade em outubro de 1969 quando a profissão foi regulamentada. Para mim, nada era mais importante do que conquistá-lo. Fiz uma ousada manobra pedindo demissão sem ter outro emprego. Instalei-me na sede do sindicato e na Delegacia Regional do Trabalho, na rua Martins Fontes, ao lado do antigo prédio do “Estadão” em plantão diário, agindo como meu próprio advogado. Consegui o registro nº. 10.045, no dia 23 de março de 1973. No dia seguinte, por indicação do Louzeiro, que deixara a Folha para assumir o comando da redação do Diário, comecei a trabalhar na vaga dele, na FSP. Uma experiência de ouro. Porque me levou, do dia para a noite, ao time de uma “grande redação”, como chamávamos a Folha, o Estadão, o JT, Ultima Hora, NP, enfim aos jornais da Capital. Era como alguém que sai do “interior” – embora o ABC fique colado a São Paulo – para ir trabalhar na matriz.
Observava diariamente, quando chegava à redação, ao passar ao lado da sala de telex – o moderno sistema de transmissão de textos da época - que havia pendurados vários “avisos” em pedaços de papel impressos com as letras maiúsculas dos teletipos assinados pelo comando do II Exército. Informavam que estava terminantemente proibida a divulgação sobre isso ou aquilo. Como a imprensa vivia sob censura, e nem sempre a edição era revisada fisicamente pelos censores, os “avisos” bastavam para quem tivesse juízo. Foi assim que ficamos sabendo sobre a guerrilha no Araguaia; movimentos “subversivos” aqui e ali; fechamento de “células comunistas”; mortes de “terroristas” em acidentes de trânsito e por aí afora. O que mais me intrigava, naqueles meses de Folha de S.Paulo, é que meu querido Diário do Grande ABC jamais recebera um daqueles “avisos”. Quando voltei, alçado ao cargo de chefe de reportagem apenas com 20 anos, nada era mais importante do que o desafio de trabalhar para transformar o jornal num veículo respeitado. Nosso sonho, meu, do Louzeiro, da equipe e principalmente dos diretores: fazer do Diário o mais importante jornal regional do País.
Naqueles primeiros meses de nova função deparamo-nos com a maior epidemia de meningite da história do País. Disso sabemos hoje. À época era impossível saber por que a censura emitia aqueles “avisos” para a grande imprensa. Ocorre que na região do ABC percebemos o aumento do volume de pessoas nos Pronto-Socorros e hospitais com sintomas de uma doença grave que ninguém sabia dizer se era gripe, pneumonia, sarampo. Percebia-se que eram muitos os casos. Quando procurávamos as autoridades de saúde nenhuma delas ousava apresentar um diagnóstico preciso porque implicava em dizer que a população estava à mercê de uma epidemia; tudo aquilo que o regime militar jamais toleraria que fosse informado para não comprometer a “segurança nacional”.
Vi ali a oportunidade para fazer o Diário projetar-se nacionalmente. Conversei longamente com o prefeito de Santo André sobre a importância de realizar uma reunião com os demais prefeitos para tratar do assunto. Antonio Pezzolo, da Arena, concordou em parte com meus argumentos. Disse que, quando muito, abrigaria em seu gabinete uma reunião dos secretários de saúde para que fizessem um balanço regional da situação. Até porque – fiquei sabendo – a Secretaria da Saúde havia internamente passado instruções – sempre escondidas da imprensa – sobre a gravidade do problema. Percorri os sete municípios – Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra – conversando pessoalmente com cada um dos prefeitos. Cinco eram da Arena, o partido da “revolução”. Apenas dois, Ricardo Putz de Diadema e Amaury Fioravanti, de Mauá eram do MDB. Convenci todos sobre a necessidade de designarem seus respectivos secretários para a reunião no gabinete do prefeito Pezzolo, em Santo André.
Marcada dia e hora da reunião, executei a fase pré-final do meu plano: dirigi-me, também pessoalmente, ao Chefe da Divisão Regional da Saúde, médico José Oscar da Silva Bottas, até então avesso a qualquer contato com a imprensa e comuniquei-lhe sobre a reunião. Ele já sabia por que fora notificado por alguns dos secretários municipais. Voltei ao prefeito Pezzolo e implorei que insistisse na confirmação do dr. Bottas porque, afinal, era ele quem dispunha de informações e do precário aparato para enfrentar o problema.
Até então não se falava, seja na imprensa escrita e, muito menos, na mídia eletrônica – rádios, TVs – sobre a epidemia de meningite. Enquanto isso, a Grande São Paulo – Capital e ABC inclusos – registravam o maior número de óbitos de crianças que se tem notícia na segunda metade do século XX. Atualmente há farta literatura sobre o assunto. Basta pesquisar na internet. À época, a falta de informações evitava o pânico da população, tão temido pelo regime militar, ao preço de ceifar milhares de vidas humanas.
Chegado dia e hora, coloquei em prática a última fase do plano, avalizado e bancado pelos corajosos José Louzeiro, chefe de redação; Edson Danillo Dotto, Maury de Campos Dotto, Fausto Polesi e Ângelo Puga, diretores do Diário do Grande ABC. De surpresa, chegamos com os equipamentos da Radio Diário do Grande ABC e passamos a transmitir ao vivo, mesmo sem permissão, o desenrolar do encontro. Com direito a entrevistas com os secretários municipais de Saúde e também com o dr. Bottas, da Secretaria Estadual.
Não houve tempo para suspensão da transmissão. Vivíamos novos tempos da ditadura, sob a distensão “lenta, segura e gradual” do general Ernesto Geisel que havia assumido o poder algumas semanas antes.
E foi assim que a epidemia de meningite de 1974 rompeu a censura e “vazou” para a grande imprensa. Senti-me recompensado. A história tomou novo rumo, as autoridades providenciaram vacinação em massa para a população e, a partir daquele dia nosso querido Diário do Grande ABC passou a ser visto com outros olhos pelo País. Mas, assim mesmo, jamais recebemos os tais “avisos”.
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*Édison Motta, jornalista e publicitário é formado pela primeira turma de comunicação da Universidade Metodista. Foi repórter e redator da Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil; editor-assistente do Estadão; repórter, chefe de reportagem, editor de geral (Sete Cidades) e editor-chefe do Diário do Grande ABC. Conquistou, com Ademir Médici o Prêmio Esso Regional de Jornalismo de 1976 com a série “Grande ABC, a metamorfose da industrialização”. Conquistou também o Prêmio Lions Nacional de Jornalismo e dois prêmios São Bernardo de Jornalismo, esses últimos com a parceria de Ademir Médici, Iara Heger e Alzira Rodrigues. Foi também assessor de comunicação social de dois ministérios: Ciência e Tecnologia e da Cultura. Atualmente dirige sua empresa Thomas Édison Comunicação.
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