terça-feira, 31 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Foca é um dos animais mais bonitos que existem. Geralmente cinza, brincalhão, pode ser visto em grandes parques aquáticos ou na natureza mesmo, brincando com bolas, pulando de lá pra cá e sempre fazendo coisas engraçadas para os turistas e se mostrando. Pois é, isso é foca no reino animal. No meio jornalístico também existe o termo "foca". É aquele jornalista recém-formado (ou estagiário), jovem e ávido por mostrar serviço. Na ânsia, às vezes, ele acaba por pura inexperiência cometendo alguns erros. Como quer mostrar serviço, ele acaba se destacando mais, errando mais (afinal, está aprendendo) e - em outras ocasiões - desempenhando um serviço melhor do que alguns jornalistas mais antigos. Por isso surge o apelidinho infame, foca. Vários repórteres novatos são submetidos a grandes vexames e inconcebíveis humilhações, somente para satisfazer a megalomania de alguns colegas veteranos. Quando os redatores ainda não contavam com computadores para redigir seus textos, vi muito editor rasgar, na maior cara dura, sem sequer ler, laudas e mais laudas redigidas por assustados e inseguros calouros, que lhes valeram horas e mais horas de pesquisa, de deslocamentos não raro abrindo mão do almoço ou do jantar (quando não de ambos) e de redação, em máquinas de escrever em geral velhas e com defeito, com o entusiasmo de quem escrevia uma reportagem digna do Prêmio Esso. E por quê? Somente como infantil demonstração de poder! Rasgavam na maior cara dura e diziam: "Não gostei! Escreva outra vez!". E ai do repórter que se queixasse para a chefia! Se eventualmente o fizesse, estaria com os dias contados no jornal. O premiado jornalista Édison Motta inicia hoje a série “Trapalhadas de um foca”, com histórias engraçadas e verídicas acontecidas no início da carreira dos, hoje, consagrados profissionais de jornalismo.
Edward de Souza
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INÉDITO
PARTE XIV
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SÉRIE
"TRAPALHADAS DE UM FOCA"
CAPÍTULO I
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Meu primeiro cadáver
ÉDISON MOTTA
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Cadáver, defunto, presunto eram coisas distantes da minha adolescência no começo daqueles anos 70. Tinha, como a maioria das pessoas, a sensação de que coisas horríveis não acontecem com a gente. Havia uma distância enorme entre as notícias de jornal e a realidade do meu mundo. Era assim, enquanto não havia escolhido ser jornalista como profissão, até que deparei com... Meu primeiro cadáver!
Aconteceu numa tarde de sábado, na primeira semana de trabalho, aos 17 anos, como repórter do Diário do Grande ABC. Cheguei à casinha – como carinhosamente chamávamos a redação – por volta das 9h30 para cumprir um plantão. Todo o pessoal estava envolvido com o fechamento da edição de domingo. Na pauta, apenas um show de artistas desconhecidos, num clube social da região. O show estava programado para começar as 14 h. Então, havia tempo de sobra para “plantonar”. Mas, naqueles tempos, sempre aparecia trabalho. No meu caso, eram longas folhas de teletipos para “pentear”. Que significava anotar ponto, vírgula, parágrafo, letras maiúsculas e minúsculas – caixa alta ou caixa baixa – naquelas folhas impressas em carbono que deixavam as mãos enegrecidas.
Depois de “penteados” os telegramas voltavam para a diagramação e, em seguida, eram encaminhados para composição, a chumbo, nas oficinas. Fiquei lá, “penteando” um telegrama após o outro até que sai com o pessoal – Colovatti, Renato Campos e outros – para comer uma deliciosa feijoada no bar do Roberto. Curiosamente, um japonês com esse nome à frente de um “sujinho” que era o ponto de encontro do pessoal da redação.
Depois da feijoada, acompanhado do Mário Otsubo, fotógrafo, subi no fusca “pilotado” pelo mineiro Barbosa. Todos estávamos sonolentos e a perspectiva do “show” não era nada animadora. De qualquer maneira, pauta é pauta e precisa ser cumprida. Quando chegamos ao local, o mico: o apresentador anunciou, com entusiasmo, pedido de aplausos e chamada ao palco, a presença da equipe de reportagem do Diário. Em 1971, aonde chegava, a equipe do Diário causava sensação. Legado dos notáveis jornalistas que nos antecederam no News Seller e nos primórdios do jornal em sua fase diária.
Anotei os nomes dos artistas, respectivas músicas, dos promotores, dei uma espiada geral na platéia e dei-me por satisfeito. Não desejava, em hipótese alguma, acompanhar o desdobramento daquele “show”. Mal sabia, um outro espetáculo, mais realista, me aguardava.
Voltamos à redação. Eram mais ou menos 16h30. Antes mesmo que descessemos do carro veio o Onofre Leite, secretário de redação, o “manda-chuva” da época, esbaforido, anunciando um latrocínio que acabara de ocorrer. Com o endereço do crime anotado num papel disse: “Corram, talvez vocês cheguem antes mesmo da polícia”. O prestígio do Diário e o bom relacionamento construído pelo Renato Campos, o jornalista policial do jornal, fizera com que o fato fosse comunicado à redação, pela central de operações da Polícia Militar, tão logo dele tomaram conhecimento. De repente, eis-me a caminho de um l a t r o c í n i o - confesso, eu nem sabia o que era aquilo à época - recém-saído de um “show” de qualidade questionável. Morri de medo. Porque, evidentemente, imaginava que encontraria um cadáver pela frente.
Quando criança, tinha pavor de gente morta. Em virtude de um trauma ocorrido no velório de um vizinho, ficava aterrorizado com a morte e evitava até mesmo passar na frente de casas funerárias.
Na minha infância, velórios nas próprias residências, na sala da família, eram comuns. E eu, curioso como sempre, fui um dos primeiros a me cercar do caixão assim que ele foi trazido. Quis ver o defunto e fui atendido: a viúva ergueu-me face a face com o falecido. Que, sei lá porque até hoje, tinha chumaços de algodão nas narinas, nas orelhas e os olhos estavam cobertos por duas moedas. Dei um grito, saí correndo e prometi a mim mesmo que jamais freqüentaria um velório. Promessa não cumprida, naturalmente. Quando a gente cresce, vai-se o encanto da infância e vem o choque frio da realidade.
O Onofre Leite tinha razão: chegamos antes da polícia porque a cena do crime estava próxima, a umas dez quadras do jornal. Respirei fundo, criei coragem, com o coração a mil, e fui entrando, acompanhado do Otsubo. O Barbosa, esperto, ficou no fusca: reclinou o banco para tirar uma invejável soneca, almejada desde a suculenta feijoada. O local, uma mercearia na Vila Bastos, em Santo André, tinha uma residência no fundo onde o proprietário morava com a família. Os ladrões sabiam que no sábado à tarde encontrariam féria robusta. Entraram, enfiaram um revolver 38 na testa do coitado do dono e o obrigaram a entregar o dinheiro. Ele disse que guardava nos fundos. Mas não deu tempo, alguma coisa aconteceu errada e eles dispararam, à queima roupa, no pobre do proprietário. Encontrei o cadáver em “decúbito dorsal”, como costumavam descrever as cenas os antigos escrivães de polícia. Em meio a uma enorme poça de sangue e, o pior: pedaços de miolos espalhados pelo chão e pelas paredes. Horripilante. Fiquei ali, tétrico, durante alguns segundos que pareceram eternidade. Nem mesmo sabia o que perguntar diante do pânico e choro dos familiares e meu próprio desmonte. Foi quando o Mário Otsubo chegou até mim e disse: olhe, Édison, acho que não dá foto. Está muito chocante e o jornal não vai publicar. E eu, de imediato e sem pensar: “não, Mário, você tem que dar um jeito e fotografar, é sua obrigação. Lá eles decidem se publicam ou não”.
Foi meu inferno! Um irmão da vítima escutou a conversa e, irado, achou o cúmulo do absurdo aquela minha “frieza” diante do mano cadáver. Vixe! Logo eu, todo comovido e sem ação... Quase fui linchado! O ódio dos familiares diante do ocorrido reverteu-se contra mim. Fui saindo por um corredor lateral, passei a correr até alcançar a rua. Felizmente, naquele momento acabava de chegar a viatura policial. Que me salvou. Protegido dentro da viatura precisei esperar que os policiais anotassem os fatos, registrassem seu boletim, para poder recuperar as informações de que tanto precisava para escrever a matéria. Não houve foto. Nem mesmo o Otsubo conseguiu entrar de volta na cena do crime.
Cheguei à redação e não disse nada. Escrevi a matéria, que deve ter ficado uma porcaria. Tanto que, no dia seguinte, foi reduzida a uma pequena nota de cinco linhas no meio do noticiário. Meu primeiro cadáver foi também meu primeiro tropeço no jornalismo.
Mas as surpresas não acabavam aí. Eu freqüentava o segundo ano colegial no “Américo Brasiliense”. E notei que um colega, que sentava na carteira ao lado, sumiu da escola. Faltou durante duas semanas. Na terceira, quando voltou, perguntei-lhe: o que houve? Quer perder o ano?
- Não, Édison, faltei porque assassinaram o meu pai.
- É mesmo, meus sentimentos, como foi?
- Ora, você sabe. Você esteve lá em casa tentando fazer matéria para o Diário do Grande ABC...
Aprendi com meu primeiro cadáver, pai do meu colega, a barreira que o jornalismo policial impõe àqueles que desejam seguir carreira. Não que seja necessário ser insensível. Mas jornalismo não é literatura. Requer frieza, argúcia e objetividade. A dor da gente não sai no jornal, como ensina o mestre Chico Buarque.
*Édison Motta, jornalista e publicitário é formado pela primeira turma de comunicação da Universidade Metodista. Foi repórter e redator da Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil; editor-assistente do Estadão; repórter, chefe de reportagem, editor de geral (Sete Cidades) e editor-chefe do Diário do Grande ABC. Conquistou, com Ademir Médici o Prêmio Esso Regional de Jornalismo de 1976 com a série “Grande ABC, a metamorfose da industrialização”. Conquistou também o Prêmio Lions Nacional de Jornalismo e dois prêmios São Bernardo de Jornalismo, esses últimos com a parceria de Ademir Médici, Iara Heger e Alzira Rodrigues. Foi também assessor de comunicação social de dois ministérios: Ciência e Tecnologia e da Cultura. Atualmente dirige sua empresa Thomas Édison Comunicação.

segunda-feira, 30 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Exclusivo
*
Jornalistas perseguidos
e presos pelo DOI-CODI
Parte XIII
*
Milton Saldanha
Memórias
Capítulo Final

"È a polícia!" Nossa saída do Diário começou com esta frase. Não eram ainda seis horas da manhã quando nosso apartamento, no Edifício Satélite, Baixada do Glicério, em São Paulo, foi invadido por oito agentes do DOI-CODI, armados com pistolas e metralhadoras. Era dezembro de 1970, portanto antes do assassinato de Vladimir Herzog. Eles entraram gritando “É a polícia! É a polícia!” e já foram revirando tudo. Quem atendeu a porta fui eu, ao ver o rosto do zelador no olho mágico. Mal virei a chave e eles invadiram, aos berros. Rubem dormia num quarto do fundo e foi acordado com o cano de uma metralhadora no rosto. As razões da nossa prisão são uma história muito longa, que aqui vou dispensar. Alguns, como o Dirceu Pio, conhecem em vários detalhes. Outros, parcialmente. O fato é que o Brasil vivia um dos momentos mais duros da ditadura militar, governo Médici, com tortura, censura e repressão por toda parte, em resposta à luta armada das organizações de esquerda. Passamos o dia presos, sendo interrogados várias vezes, e pouco antes do escurecer fomos liberados.
Liberados é maneira de dizer. Ali começavam os dois piores dias das nossas vidas. Éramos ostensivamente seguidos por um grupo de agentes, em vários carros. Um aparato absurdamente desproporcional à nossa (in) significância política, pois não éramos militantes de nenhuma organização, nem de partido legal ou clandestino, nunca pegamos em armas, e tínhamos uma vida totalmente na legalidade, dedicada ao trabalho, como contei acima. Nossa sensação, naquelas tenebrosas horas, eram de um jogo de gato e rato, onde o gato se diverte antes do derradeiro salto sobre sua presa. Decidimos então não dar-lhes este gosto, surpreendendo-os, como contarei logo adiante.
Fomos presos e liberados numa sexta-feira. No sábado, já pela manhã, fomos para o Diário. Bem barbeados e, coisa rara, de terno e gravata, uma forma de passar uma imagem austera, menos informal, até de mais respeito, e prontos para qualquer circunstância. Lá dentro, na redação da casinha, fingimos estar trabalhando, algo que na prática era impossível, pela tensão, com nossos nervos em frangalhos. Da janela víamos nossos seguidores lá na rua, literalmente cercando o prédio. Convocamos, como chefes, todo o pessoal ao jornal, e no começo da tarde fizemos uma reunião geral na sala do Fausto, já informado previamente sobre a situação. Não sei como consegui falar, a voz não saia, tal a tensão. Foi um esforço tremendo. Alertei: “Todos devem saber a partir deste momento que Rubem e eu estamos sendo seguidos pelo pessoal da Oban, DOI-CODI, e podemos ser presos a qualquer momento. Se a gente desaparecer, todos já sabem onde deveremos estar”. Era uma medida de segurança informar a categoria, através daquele grupo de colegas. O sigilo não nos interessava. Encerramos a reunião em meio a um silêncio impressionante, todos tomados de surpresa e sem acreditar que aquilo pudesse estar acontecendo justo conosco, que passávamos horas todos os dias no jornal, indo dormir na madrugada. Nem tempo tínhamos para supostas atividades subversivas. Na verdade éramos suspeitos. As acusações pesavam sobre nosso amigo e parceiro de residência, um publicitário, acusado de ligações com a VPR. Ele foi barbaramente torturado.
Naquele mesmo sábado, após a reunião, Fausto pegou seu carro e foi conosco ao Glicério, onde outros agentes revistavam durante horas nosso apartamento. Levou o famoso livro de ponto do Seu Abílio e lá mostrou aos agentes nossas assinaturas e horários diários de entrada e saída do trabalho. Foi uma atitude corajosa e amiga, pela qual serei eternamente grato a Fausto Polesi.
Agora vem a surpresa. Como tínhamos absoluta certeza que seríamos novamente presos, era só questão de horas, ou minutos, tomamos uma decisão, em companhia do nosso pai, coronel da reserva do Exército e advogado, que tinha vindo de Porto Alegre para nos dar alguma assistência, se é que isso era possível, e apoio moral. Pegamos nosso carro, saímos pelas ruas de São Paulo, os agentes atrás, nos seguindo, certamente supondo que tentaríamos alguma fuga (e acho que era isso que desejavam, para agir), e fomos direto para o próprio DOI-CODI, na Rua Tutóia, onde nos apresentamos. “Queremos esclarecer tudo”, foi nosso argumento. Essa atitude nos ajudou e foi mencionada por eles em várias fases dos intermináveis interrogatórios. E tiramos o gostinho dos nossos seguidores, porque sabe-se lá como agiriam, e com certeza não seria nada agradável. Além disso, estar novamente preso era um fato consumado, um alívio quando comparado com o horror de ser seguido daquela forma ameaçadora e acima de tudo incerta. A gente temia até ser metralhado na rua, sem qualquer chance de defesa. Só quem conheceu a ditadura sabe que isso não é exagero. Finalmente libertados, depois de onze dias presos e incomunicáveis, não havia qualquer clima para continuar trabalhando. Nosso trauma era profundo, e durou muito tempo. Fomos em busca de repouso, em lugar seguro e isolado, numa praia de Santa Catarina. Nem nossa família sabia onde estávamos, por segurança. Assim terminou minha primeira fase no Diário. Rubem nunca mais voltou, foi morar no Rio. Voltei para o ABC em 1976 para chefiar a sucursal do Estadão, durante quatro anos. Os melhores, a propósito, da minha carreira. Saí em 80, como conseqüência da desastrosa greve dos jornalistas, em 79. Nos anos 80, convidado pelo Fausto em três longas conversas regados a vinho, no Terraço Itália, voltei ao jornal, como editor-chefe. Agora já era outra empresa, claro, totalmente diferente, em tudo. Foi uma fase interessante, apesar de algumas dificuldades inerentes ao cargo. Depois de uns dois anos, saí por quebra da confiança junto à diretoria, por não ter aceitado uma tentativa de redução de salários. Além de imoral, isso afetaria minha autoridade no comando da redação, que ficaria desmotivada. Fui para a TV Globo e depois para a Ford, em ambos a convite. Mais tarde, nos anos 90, voltei convidado pelo Alexandre Polesi, para montar um caderno de economia. Estava trabalhando, mas acabei topando. Foi um erro. A crise interna da direção do jornal já começava a explodir, com repercussões em todos os setores da empresa e no clima da redação. Uma pena. Que saudade dos primeiros anos, tão precários, e tão românticos.
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A garotada de hoje, mas também muita gente adulta, não sabe o que foi a ditadura militar. Não sabe o que passaram milhões de brasileiros para liquidar com aquele período de falta de liberdade, de opressão, de total ausência de garantias individuais e sociais. A grande maioria, hoje, não sabe o que é viver em um regime em que falta a liberdade, a democracia. Na noite do dia 24 de outubro de 1975, o jornalista Wladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV Cultura, de São Paulo, apresentou-se na sede do DOI-CODI para prestar esclarecimentos sobre a sua atividade política. Herzog era filiado ao Partido Comunista Brasileiro. Ficou apenas uma noite nas mãos da repressão e foi barbaramente torturado. Os militares assassinos simularam seu suicídio, entregando à imprensa fotos do corpo de Herzog pendurado pelo pescoço à grade da cela por uma peça de roupa. Como Wladimir Herzog era judeu, o Shevra Kadish (comitê funerário judaico) recebeu o corpo e, ao prepará-lo para o funeral, o rabino percebeu que havia marcas de tortura no corpo do jornalista. O suicídio tinha sido forjado. Esse foi o sinal, porque Herzog foi enterrado dentro do cemitério judaico, e não do lado de fora dos muros, como a religião determina que seja feita com os suicidas. Será que vinte anos de democracia fizeram a sombra da censura, que tanto aterrorizou as redações, desaparecer? Esta é uma pergunta sem resposta. O jornalista do século XXI é livre para escrever o que quiser e continua levantando cedo e saindo tarde. Porém, a liberdade é somente dentro da linha editorial da empresa. A censura, hoje, vem de dentro da própria casa, sem tortura, mas via ameaça de desemprego. Edward de Souza
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Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho, torcedor do Inter, começou no jornalismo aos 17 anos, em Santa Maria (RS). Trabalhou na grande imprensa de Porto Alegre e de São Paulo. Foi da Folha da Manhã (RS), Diário do Grande ABC, Agência Estado, Estadão e JT, Rede Globo, Rádio Jovem Pan, Última Hora (com Samuel Wainer), entre vários outros veículos. Foi também assessor de imprensa da Ford, do IPT e do Conselho Regional de Economia. Tem um livro publicado, "As 3 Vidas de Jaime Arôxa"; participou de uma antologia de escritores gaúchos; um livro pronto e ainda inédito, "Periferia da História", onde conta de memória 45 anos da recente história do Brasil sob um ângulo totalmente inédito; trabalha num livro sobre Reforma Agrária. Pouco antes de se aposentar fundou o jornal Dance -
www.jornaldance.com.br - que já tem um filhote regional em Campinas, e que neste 2009 completa 15 anos.

domingo, 29 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Exclusivo
*
A frustração na
Copa de 70

Parte XII
*
Milton Saldanha
Memórias

Capítulo IV

A coluna social naquela época era diferente de todo o resto e destinada a fazer média com os abonados da região, a turma que paga os anúncios. Serafim Vicente nunca tinha pisado num jornal quando veio para o Diário exercer essa função. Não tinha feito faculdade de jornalismo. Escrevia coisas de arrepiar, e com erros de grafia, de concordância, o diabo. Se as bobagens saíssem deixariam o jornal muito mal. Eu ficava enlouquecido e xingava secretamente o Fausto pela contratação. Mas aos poucos fomos pegando estima pelo Serafim, que era um cara super legal, solidário e principalmente alegre. A redação, que já era uma zona, com o Lázaro berrando besteiras que faziam a gente chorar de tanto rir, ficou ainda mais alegre com o Serafim e aquele seu jeito... Uma vez ele sentou inesperadamente no colo do Rubem, deu-lhe um chupão no pescoço, Rubão ficou arrepiado. Pra que. Serafim saiu berrando pela redação, eufórico: “O secretário ficou todo arrepiado! O secretário ficou todo arrepiado!” Todos nós morrendo de rir, e o Rubão todo sem jeito, sem saber se também ria ou ficava puto da vida. Era tudo hilariante. Com a estima pessoal, passei a ser mais tolerante com a coluna do Serafim, mas sempre cortando os excessos, principalmente quando a puxação de saco passava dos limites aceitáveis. Um dia, querendo fazer gracinha, ele chamou a colônia italiana de “italianada”. Cochilei, deixei passar. O Fausto ficou furioso. Marcou com seu famoso lápis azul, com o qual pinçava na edição nossos erros de cada dia, nunca poucos. E a gente se segurando para não rir. O que aconteceu com Serafim depois daquela primeira fase no Diário, aqui não interessa. Não me cabe julgar nada. Fica minha lembrança apenas de um tempo bom, divertido.
O Cássio Loredano já era um gênio no desenho, mas não acreditava. Todo mundo falava que ele deveria se dedicar ao desenho, mas queria é ser repórter. Pedrão era fã assumido do Cássio, para ele, então, o melhor repórter do mundo. Um dia caiu a ficha, partiu para ilustração, arrasou. O Hildebrando Pafundi era o mais calmo da redação. Certo dia explodiu a Câmara de Santo André. Acho que foi tubulação de gás, nem lembro. Mas explodiu. Todo mundo excitado, (teria sido atentado?), e o “Pafa” tranquilo. Romão, do esporte, era um figuraço. Morava na redação, tinha um quartinho nos fundos da casinha. De vez em quando o Cássio fazia alguma charge e usava o Romão como personagem, com seu vasto e desordenado bigode. Como espécies atuantes daquele alegre zoológico, sobrava também para nós, eu e Rubão. Compramos um Gordini usado, em sociedade, aproveitando uma grana legal que embolsei ao vencer um concurso de reportagens natalinas. A gente brigava, porque os dois queriam dirigir. O pessoal morria de rir. Faziam piadas conosco. Nunca entendi que graça tinha isso... Até as broncas eram divertidas. Um dia Pio chegou super atrasado. Rubão começou tremenda bronca. Pio explicou: “Fui trepar”. “Ah, bom”, respondeu Rubão, encerrando o assunto.
Num dia de verão, muito quente, inventamos uma matéria no Guarujá. Pretexto para ir à praia. Já estava combinado e todo mundo levou calção para o jornal. Lotamos a coitada da Rural e descemos a serra, pela manhã cedo, para voltar lá pelas duas da tarde. Pedrão fez algumas fotos de supostas gostosas, para justificar o “trabalho”. Curtimos a praia, bebemos cerveja, foi super divertido, por estarmos em turma e pelo sabor da traquinagem com o carro e a gasolina do jornal. Na volta alguém cascateou um texto sobre o dia de forte calor e outras bobagens. O Fausto chegou e ficou olhando desconfiado nossas caras de safados, com os cabelos desalinhados e ainda úmidos, gente lavando os pés na torneira do jardim. Todo mundo se entregando. Mas deixou barato, não falou nada, com certeza para não arranhar nossa autoridade perante a equipe, pois o próprio Rubem fora o mentor da “pauta”. Era tudo uma lua de mel? Claro que não, somos de carne e osso, com virtudes e defeitos, rejeições e preferências afetivas. Mas, uma coisa posso garantir: em nenhum outro momento de toda a minha carreira desfrutei de um ambiente tão gostoso na redação. Teria ainda muitas histórias, mas aí isso aqui vira livro. E bem que eu gostaria. Antes de encerrar, contando nossa, digamos, inusitada saída do jornal, vou relembrar algo inesquecível. Foi nossa edição extra especial de cobertura do final da Copa do mundo de 1970, no México. Foi a primeira vez em que a TV transmitiu a Copa ao vivo. A transmissão por satélite era uma novidade. O Brasil, como todo mundo sabe, tinha um time invencível e era franco favorito. Resolvemos soltar a edição extra. A idéia era lançar o jornal pronto, nas mãos de um batalhão de jornaleiros, meia hora após o fim do jogo, no máximo. Os moleques, mais de cem, iriam com os jornais nos braços para os burburinhos dos festejos nas ruas. Durante a semana inteira fizemos o jornal, com matérias retrospectivas, etc. Na capa pré-montamos um jogador erguendo a taça. Detalhe: usava mangas compridas, era o que a gente tinha em arquivo, eles jogaram com mangas curtas. Dane-se, decidimos, e fizemos a montagem com outro rosto. O que hoje, com Photoshop, seria bico, naquele tempo foi uma verdadeira engenharia, obra de artesões. E montamos até o texto da matéria de capa, que já tinha manchete pronta, com buracos para detalhes do jogo, resultados, etc. Ou seja, em menos de dez minutos a gente finalizaria tudo, baixaria para a oficina, que já tinha o jornal todo pronto, faltando só a capa, e... Seria um sucesso! Ah, e teríamos fotos do jogo, dos gols, em primeira mão. Pedro Martinelli, o Pedrão, colocou um tripé na frente da TV e fez as fotos dali mesmo. Reveladas e ampliadas, pareciam radiofotos, muito usadas na época. Quebravam o galho perfeitamente. Durante a semana ele havia feito testes, avaliando os resultados, estudando o melhor ajuste da máquina, tudo. A redação toda em volta, torcendo, gritando, e o Pedrão ali, clicando e também torcendo. Dá para esquecer? Quando o jogo acabou, o batalhão de jornaleiros estava na porta da oficina, aguardando. Mal o juiz apitou e mergulhamos nas velhas Olivetti, teclando com fúria. Todo mundo correndo, parecia fechamento de jornal em TV. Até o boy estava instruído a seguir correndo para a oficina, no sentido literal, com a lauda do texto. Alguém imagina o que aconteceu? Pois é, a luz apagou geral no bairro. Ficamos sem energia. Desesperados, e sem energia para mover as possantes linotipos, o chumbão, como eram chamadas, porque produziam textos em blocos de chumbo, que caiam quentes num cesto, tinham que esfriar e entrar na paginação sobre uma placa metálica. Todo aquele esforço de uma semana, toda aquela correria, tremendo esquema de mobilizar jornaleiros numa época em que isso não existia mais, as vendas eram em bancas, muita adrenalina para... Sermos derrotados por um pedaço de fio. A luz demorou quase uma hora para voltar. E ainda faltava rodar a capa. Não adiantou ligar desesperadamente para a Cia. de força. O jornal foi para as ruas, mas sem o impacto dos primeiros minutos, para surpreender o povo, como tínhamos planejado nos mínimos detalhes. Creio que nunca, na história do Diário, tenha acontecido algo tão frustrante. O Diário não merecia, muito menos nós, tão focas e tão sonhadores.
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Não percam nesta segunda-feira o último capítulo dessa série escrita pelo jornalista Milton Saldanha nesse blog. Agentes do DOI-CODI, armados com pistolas e metralhadoras, invadem o apartamento do jornalista em São Paulo. Seu irmão Rubem dormia num quarto do fundo e foi acordado com o cano de uma metralhadora no rosto. Foram presos. o Brasil vivia um dos momentos mais duros da ditadura militar, governo Médici, com tortura, censura e repressão por toda parte, em resposta à luta armada das organizações de esquerda.
( Edward de Souza)
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Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho, torcedor do Inter, começou no jornalismo aos 17 anos, em Santa Maria (RS). Trabalhou na grande imprensa de Porto Alegre e de São Paulo. Foi da Folha da Manhã (RS), Diário do Grande ABC, Agência Estado, Estadão e JT, Rede Globo, Rádio Jovem Pan, Última Hora (com Samuel Wainer), entre vários outros veículos. Foi também assessor de imprensa da Ford, do IPT e do Conselho Regional de Economia. Tem um livro publicado, "As 3 Vidas de Jaime Arôxa"; participou de uma antologia de escritores gaúchos; um livro pronto e ainda inédito, "Periferia da História", onde conta de memória 45 anos da recente história do Brasil sob um ângulo totalmente inédito; trabalha num livro sobre Reforma Agrária. Pouco antes de se aposentar fundou o jornal Dance - www.jornaldance.com.br - que já tem um filhote regional em Campinas, e que neste 2009 completa 15 anos.

sábado, 28 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Exclusivo
*
Curandeiro promete trabalho
para broxar repórter
Parte XI

*
Milton Saldanha
Memórias
Capítulo III
***
Terminei o segundo capítulo falando sobre as nossas dificuldades em buscar rolos de cópias de carbono dos telegramas das agências em São Paulo, com uma velha Rural Willis, dirigida pelo motorista Pelé. Quanta insensatez e inexperiência, gente. Já havia o telex, a sucursal do Estadão tinha um, era um caminhão barulhento, mas tinha. Bastava pedir na Embratel, ligar numa linha telefônica, e pagar o aluguel. Sairia muito mais barato do que a gasolina mensal da Rural, fora o estresse a que nos submetia. Por exemplo, em dia de chuva. Sempre havia enchente na divisa de São Caetano com São Paulo. A Rural tinha que ir e voltar pela Via Anchieta, dando enorme volta. Lembrem-se de que não havia a Catequese com o traçado de hoje, nem aquelas avenidas expressas. Chegar lá era percorrer um labirinto de ruas. E a gente na redação, parado, xingando, esperando uma notícia que, de repente, poderia nem chegar. Era duro. A oficina também arcava com a burrice, pois dependia da redação para encerrar seu trabalho. O Pedro Martinelli, sempre com mala de fotografia pendurada no ombro, era também motorista, quando Pelé faltava. Bom ouvido também valia. Soava alguma sirene, se mais forte indicando ser dos bombeiros, e Lázaro berrava o nome do repórter mais próximo, de Pelé e Pedrão, e saiam em desabalada carreira, como se dizia na antiga linguagem de clichê, seguindo a viatura pelas ruas, furando semáforos, tudo pela notícia. Manter um plantonista no QG dos bombeiros? Impossível, seria um luxo, todos faziam falta na redação. Fazer um acordo de informação com o comando? Imagine, éramos todos focas, ou quase focas.
Cada nome aqui lembrado renderia um longo capítulo de episódios, a maioria divertidos. Nenhum de nós escaparia, a começar por este escriba. Em rodas de bar é gostoso lembrar, como aquele dia em que Dirceu Pio fez uma matéria descendo o pau num charlatão curandeiro. O cara era um guarda-roupa. Ficou esperando Pio ao lado do portão da casinha. E a gente lá dentro, morrendo de medo, em vez de chamar logo a polícia. Quando Pio chegou só achou uma saída: tentar convencer o sujeito que a matéria só tinha elogios. É mole? O personagem, ignorante, ficou confuso. Não sabia se acreditava. Por via das dúvidas, deu um abraço de urso no Pio, girou com ele no ar e devolveu ao solo. Retirou-se não sem antes prometer um “trabalho” para ele broxar. Nessas alturas era até uma boa barganha, né. Depois disso Pio teve quatro belos filhos, prova de que o cara era mesmo charlatão.
Quando chegou ao jornal a primeira Nikon, o Pedro Martinelli aposentou sua maquininha e parecia uma criança com um brinquedo ansiosamente sonhado. Ficou enlouquecido, só falava sobre a máquina. Iniciando, já mostrava tremendo talento. Mas ninguém imaginaria que ainda seria um dos melhores fotógrafos do Brasil. E quando venderam a velha Rural e chegaram alguns Fuscas brancos, com enormes letreiros do jornal e da rádio, agora sim havia carros para trabalhar, fim do sufoco, sentimos pela primeira vez que o nosso Diário começava a virar um jornal de verdade. Era um sinal de prosperidade. Rubem e eu começamos a batalhar pelos registros nas carteiras, aliciando a redação discretamente, mas só para o caso de alguma emergência, em que a gente tivesse que demonstrar força. Foi mais fácil do que a gente pensava, certamente a diretoria já estava esperando isso. Na mesma semana todo mundo foi registrado. Naquele período, enquanto a vida nacional estava tumultuada, com seqüestros e assaltos de guerrilheiros urbanos, noticiamos com grande impacto o seqüestro do embaixador dos Estados Unidos. Não havia censura no Diário, ao contrário dos grandes jornais da Capital, então a gente aproveitava algumas brechas e denunciava, por exemplo, a tortura no Uruguai, onde também havia ditadura militar. Como quem diz, se lá tem, aqui...
Foi o ano também em que o homem pisou na lua. Do boom da indústria automobilística. Do início da TV em cores. Transamazônica, ponte Rio Niterói, Angra. O Diário começava a crescer e comprou a antiga rádio Independência AM, de São Bernardo, que passou a ter o nome de Rádio Diário do Grande ABC. Aí resolveram que a rádio seria forte no jornalismo, tentando copiar a Jovem Pan. Era um fiasco. Por qualquer bobagem entrava uma escandalosa “Edição Extraordinária”. E qualquer dos nossos repórteres entrava no ar, da redação, sem ter tido qualquer treino anterior como repórter de rádio, sem colocação de voz, nada. Os boletins ficavam medonhos. Até Edson Dotto gostou de brincar de repórter e entrava com boletins, lendo ou improvisando mal, com voz inadequada. Custou um tempo até colocarem realmente profissionais de rádio, competentes, como o Rolando Marques, Edward de Souza, Oswaldo Lavrado, Paulo Cesar, Sidney Lima e outros. Nessa fase entrou um personagem novo na redação, o Castro, que assinava suas matérias com o pomposo pseudônimo de Lamartine de Taunay, que a gente, para sacanear, tratava no mural da redação como Lamartine de Toné. Como tinham seqüestrado o cônsul japonês em São Paulo, a gente ficava levantando hipóteses sobre o caso. Numa tarde comentei, como mera especulação: “Já imaginaram se soltam o cônsul num bairro do Rio, onde ninguém espera?” O Castro ouviu aquilo, ligou para a rádio e soltou um boletim falando dessa possibilidade. Ficamos apavorados. Imaginem se a polícia caísse lá querendo saber a fonte. Era muita loucura. A sorte é que o índice de audiência era ainda muito baixo e essas mancadas não repercutiam, para sorte geral da empresa.
Aquela fase foi também a da “Escolinha”, como diz até hoje o Renato Campos, uma das testemunhas disso. Os textos pecavam por erros técnicos básicos, alguns até primários. Rubem e eu, até ali os menos inexperientes, passamos a fazer um trabalho de crítica de texto, repórter por repórter, texto por texto, das notinhas mais simples às grandes reportagens. Não tinha essa de entregar a matéria e se mandar. Cada um tinha que sentar com a gente, acompanhar o copy e ouvir as explicações sobre as mudanças, até de uma simples vírgula. Em muitos casos, em questões cruciais de estrutura do texto, não havia outro jeito, eles tinham que refazer tudo. Em pouco tempo os textos foram melhorando, ficando limpos e fluentes, ganhando padrão, cara de jornal. O trabalho mais duro foi tirar o vício da opinião, tornar o texto impessoal. No começo as matérias mais pareciam editoriais. O pessoal evoluiu rapidamente, em bloco, e isso foi uma grande realização e alegria para nós. Hoje sinto orgulho dos colegas que se consagraram na profissão e que passaram ali pelo meu duro crivo crítico. Costumo dizer que seriam vencedores de qualquer forma, pelo talento de cada um, mas agilizei o processo, e o Rubem também. Eu tinha as minhas crias, o Rubem as dele. E alguns passavam pelos dois, alternadamente. Alguém também me ensinou, e foi o Fernando Portela, então chefe de reportagem do Jornal da Tarde, em sua fase de ouro, naqueles anos de grandes novidades e mudanças na imprensa brasileira. O JT era um modelo, nosso sonho de jornal. Eu passava ao pessoal o que o Portela me passou, como quem cumpre uma missão evangelizadora. O Portela me dizia que também aprendeu com alguém. Era uma corrente do bom jornalismo. Considero a Escolinha um grande momento da minha carreira. Ensinando aprendi muito e vi meu próprio texto evoluir. Como cobrava do pessoal, passei a ser mais insatisfeito com meu próprio texto.
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Acompanhem no capítulo de amanhã: Serafim Vicente e o seu texto horrível fazendo média com os poderosos que pagavam anúncios; irreverente, o colunista social certa vez sentou no colo do secretário de redação e tascou-lhe um beijo no pescoço; A calma de Hildebrando Pafundi, o impagável Romão Zanella, repórter que dormia nos fundos da redação e as tiradas geniais de Lázaro Campos, fazendo a redação rir, berrando besteiras. (Edward de Souza)
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Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho, torcedor do Inter, começou no jornalismo aos 17 anos, em Santa Maria (RS). Trabalhou na grande imprensa de Porto Alegre e de São Paulo. Foi da Folha da Manhã (RS), Diário do Grande ABC, Agência Estado, Estadão e JT, Rede Globo, Rádio Jovem Pan, Última Hora (com Samuel Wainer), entre vários outros veículos. Foi também assessor de imprensa da Ford, do IPT e do Conselho Regional de Economia. Tem um livro publicado, "As 3 Vidas de Jaime Arôxa"; participou de uma antologia de escritores gaúchos; um livro pronto e ainda inédito, "Periferia da História", onde conta de memória 45 anos da recente história do Brasil sob um ângulo totalmente inédito; trabalha num livro sobre Reforma Agrária. Pouco antes de se aposentar fundou o jornal Dance - www.jornaldance.com.br - que já tem um filhote regional em Campinas, e que neste 2009 completa 15 anos.

sexta-feira, 27 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Exclusivo
*
O velho Abílio,
Um "médico" na redação
Parte X
*
Milton Saldanha
Memórias
Capítulo II

1969. O Diário do Grande ABC mal tinha deixado de ser o semanário News Selller. Ainda estampava na capa, ao lado do logo, esse nome, em letras reduzidas. A extensão do título, com aquilo que parecia um adjetivo, no meio, nos espantava. Por que não apenas Diário do ABC? Eu estava desempregado, ou melhor, mal empregado. Tinha sido demitido do Diário Popular, por ser irmão do Rubem, e fiquei uma curta temporada no Shopping News. Meu chefe era o Hermínio Sachetta, que só muitos anos depois fui saber tratar-se de figura histórica e muito importante do comunismo brasileiro. Quem me dera poder voltar no tempo e colher um belo depoimento do velho Sachetta, que cultivava aquele estilo de chefe gritão, sempre afobado com os fechamentos.
Rubem consultou Fausto sobre minha contratação como copydesk. A função era uma novidade no Diário. Não houve objeções, eu poderia ir. Nos últimos cinco meses tinha sobrevivido como correspondente comercial no escritório paulista de uma empresa do Rio. Emprego achado em classificados de jornal. Odiava aquele trabalho, e se não tivesse estômago para abastecer teria largado na primeira semana, ou menos. Então, o chamado para o Diário foi como um convite para trocar o inferno pelo céu. Tremenda felicidade! A grana era legal. Os repórteres ganhavam 600 cruzeiros por mês, contra 490 cruzeiros do piso da categoria em São Paulo, que ainda não estava defasado e era uma conquista recente. Sendo copy, eu ganhava 700. O Rubem ganhava mil. Só havia um detalhe: ninguém tinha registro em carteira. Ganhava-se mais do que na Capital porque não havia os descontos. A diferença era uma espécie de cala boca, ninguém chiava. Fiscalização da DRT não passava nem na porta. E nossa carga horária era pesada, ninguém tinha hora para sair, sem ganhar hora extra, além de se fazer plantão de final de semana. Rubem e eu trabalhávamos todos os sábados, e os repórteres faziam revezamento de plantão aos domingos. O jornal não circulava nas segundas. A redação era numa casinha de esquina, onde hoje existe um edifício. Não havia o atual prédio, só as oficinas, num barracão no fundo do terreno, que abrigava também balcão de anúncios, salas dos demais diretores e administração. Estrategicamente, já tinham deixado espaço para a futura sede. Na casinha, Fausto Polesi tinha sua sala exclusiva. Sem secretária. Só Edson Dotto, diretor-presidente, tinha secretária. De vez em quando, aos sábados, Fausto aparecia lá em roupa esporte, com seus dois moleques pela mão, para saber se estava tudo bem. Os moleques eram Alexandre e Cassiano. Em outra sala, pequena, com as mesas encostadas, ficávamos Rubem, Lázaro Campos, que dobrava nas funções de chefe de reportagem e diagramador, Eduardo Camargo, que fazia sozinho a página de política, e eu. O único que usava terno e gravata era Camargo. Nosotros, em certos dias, sequer fazíamos a barba. Na sala maior ficavam os repórteres: Cássio Loredano (ele mesmo, o extraordinário ilustrador de sucesso internacional), Dirceu Pio, Hildebrando Pafundi, José Augusto, Ana e mais uma ou duas moças, cujos nomes, desculpem, não recordo. Também o Hermano Pini Filho, que só chegava no final da tarde, tinha emprego na Pan, dos chocolates. Assinava o Primeiro Plano como Júlio Pinheiro, e se reportava diretamente ao Fausto. Escrevia também editoriais, sempre fumando seu cachimbo. Maravilhoso companheiro. Alguns meses depois entraram Paulo Andreolli, para geral; Renato Campos, para polícia; e o primeiro colunista social, Serafim Vicente. Numa salinha mais ao fundo ficavam Salvador e Romão, do esporte, ao lado do Seu Abílio, encarregado do arquivo, do livro de ponto, e de encher o saco dos dois boys, pois fora informalmente nomeado como “chefe” dos moleques. Seu Abílio passava boa parte do dia caminhando com o livro de ponto, de mesa em mesa, cobrando as assinaturas. O cara tava mergulhado no texto, concentrado, e lá vinha seu Abílio... Isso municiava o arsenal de piadas da redação. A gente achava o velho um tremendo chato, sem perceber que ele era o único organizado ali naquela zona e nos fazia inestimável favor, garantindo a documentação das nossas longas jornadas. Seu passado era famoso, interrompeu o curso de Medicina no meio, por falta de recursos, exerceu a profissão ilegalmente, foi descoberto e cassado, ou preso, não sei direito. Quando alguém ficava doente consultava com ele. Sempre dava bom resultado. A benção, Seu Abílio! Na fotografia, com laboratório também na casinha, trabalhavam Pedro Martinelli, o famoso Pedrão, mais tarde fotógrafo da Playboy, usando máquina própria semi-profissional, e Mário Otsubo. No laboratório, Roberto, que sonhava em virar repórter-fotográfico. Salvo algum esquecimento, involuntário, me perdoem, isso era tudo na redação. E só com isso a gente tirava um jornal diário, de terça a domingo, que logo passou a ter dois cadernos, sendo gordinho nas quintas e gordão aos domingos, para nosso orgulho.
O único carro da redação era uma malhada Rural Willis, nas mãos do motorista Pelé. Ele juntava os repórteres e ia largando nos seus locais de cobertura, um aqui, outro ali. Na volta, geralmente, cada um se virava. Vinham à pé ou de ônibus. Pagando do próprio bolso, sequer havia uma caixinha de despesas. Táxis, nem pensar. Quem tinha sorte, telefonava e Pelé ia buscar. Como não havia telex, nem teletipos, Pelé fazia todos os dias duas viagens até a Agência Estado, na Rua Major Quedinho, Centro paulistano, e voltava com vários rolos de cópia carbono dos telegramas das agências. A gente ia selecionando aquelas tripas, cortando com régua, e “copidescava” ali mesmo, com a caneta. Nossas mãos ficavam pretas do carbono. Não raro, um de nós esbravejava todos os palavrões do mundo quando não encontrava naquelas maçarocas alguma importante notícia do dia, se bobear a própria manchete do jornal, ou de uma página. Era um horror.
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Não deixem de ler no capítulo de amanhã, a dura vida dos repórteres no final dos anos 60, quando ouvido tinha valia. Era preciso prestar atenção. Quando soava alguma sirene, se mais forte indicando ser dos bombeiros, repórteres eram acionados e saiam correndo em busca da notícia. Manter um plantonista no QG dos bombeiros? Impossível, era um luxo naqueles tempos, todos faziam falta na redação. ( Edward de Souza)
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Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho, torcedor do Inter, começou no jornalismo aos 17 anos, em Santa Maria (RS). Trabalhou na grande imprensa de Porto Alegre e de São Paulo. Foi da Folha da Manhã (RS), Diário do Grande ABC, Agência Estado, Estadão e JT, Rede Globo, Rádio Jovem Pan, Última Hora (com Samuel Wainer), entre vários outros veículos. Foi também assessor de imprensa da Ford, do IPT e do Conselho Regional de Economia. Tem um livro publicado, "As 3 Vidas de Jaime Arôxa"; participou de uma antologia de escritores gaúchos; um livro pronto e ainda inédito, "Periferia da História", onde conta de memória 45 anos da recente história do Brasil sob um ângulo totalmente inédito; trabalha num livro sobre Reforma Agrária. Pouco antes de se aposentar fundou o jornal Dance - www.jornaldance.com.br - que já tem um filhote regional em Campinas, e que neste 2009 completa 15 anos.


quinta-feira, 26 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Exclusivo
*
Certa vez, no Diário...
Parte IX
*
Milton Saldanha
Memórias
Capítulo I

No final dos anos 50 comecei no "jornalismo" no grupo escolar, como “repórter” da minha classe, num jornal mural que a diretora instalou num corredor. Ninguém lia, mas lá estavam minhas redações, que me deixavam orgulhoso. Eu me sentia escrevendo no Correio do Povo, de Porto Alegre, então o mais poderoso jornal gaúcho, que chegava a nossa cidade, Santa Maria (RS), com um ou até dois dias de atraso, pela empresa de ônibus Planalto, que ainda existe e prosperou. Aos 17 anos, em 1963, já trabalhava no semanário A Cidade, de um lendário panfletário, Clarimundo Flores, ex-PCB, e homem de confiança, mesmo sem cargo público, do então governador gaúcho Leonel Brizola. Clarimundo era uma pena brilhante, como todos se referiam na época aos grandes redatores. Escrevia com paixão desenfreada, sabia argumentar e, de vez em quando, perdia a noção dos limites, pegava pesado mesmo. Santa Maria tinha o diário A Razão, dos Diários Associados (ainda existe, com outros donos), de horrenda qualidade naqueles anos, e de direita, claro. A Razão fora criada pelo Clarimundo, que faliu e vendeu o jornal para os Associados. Aí fundou o Diário do Estado, que também faliu. Então, aproveitando que era dono de gráfica, criou A Cidade, tablóide com logotipo em vermelho, que chegava às ruas nas sextas à noite.
Com o golpe de 64, uma patrulha do Exército invadiu a gráfica e fechou o jornal, por sorte sem empastelar. Fiquei trabalhando com Clarimundo, ele em prisão domiciliar, com soldado (desarmado) na porta do apartamento onde morava, na frente da praça principal e a poucos metros da gráfica. Só havia uma máquina de escrever, que eventualmente eu usava, mas Clarimundo fazia tudo de punho, em garranchos só decifráveis por seus empregados acostumados, com vários anos de casa.
Santa Maria, bem no centro do Rio Grande do Sul, super estratégica, é uma poderosa cidade militar, com mais de dez unidades do Exército, dois regimentos da Brigada Militar e uma moderna base da Aeronáutica. Naquele tempo era também o mais importante entroncamento ferroviário da Região Sul. Com o golpe, o jornal ficou fechado durante um mês e depois voltou a circular. Clarimundo passou a reproduzir na íntegra os artigos que o Carlos Heitor Cony publicava no Correio da Manhã, do Rio, mais tarde reunidos no livro “O Ato e o Fato”. Foi isso que deu fama nacional a Cony, que como esperado acabou preso. Ele descia o cacete no golpe militar. E o nosso jornalzinho, lá do interior gaúcho, no meio de todo aquele poder militar, e onde jamais chegava o Correio da Manhã, reproduzindo o Cony. Um amigo e colaborador de A Cidade, Ernani Vanacor, que morava no Rio, mandava o jornal pelo Correio. Era a mais pura, e mais arriscada, tesoura press. Como eu já assinava matérias sobre política antes do golpe, mesmo sendo um garoto, era o que se chamava de “nome queimado”, com ficha no Dops. No dia seguinte ao golpe fugi para Porto Alegre, onde fiquei escondido por cerca de um mês na casa de um tio, que era sargento do Exército. Ele não concordava com o golpe, mas estava de bico calado, até porque não era besta. Lembro-me que ia para o quartel em trajes civis, levando a farda numa sacola, para não ser hostilizado pelo povo na rua.
A barra pesou e Clarimundo deixou Santa Maria. Foi se esconder em Santo Ângelo e depois numa cidade de fronteira, no Uruguai. Mas A Cidade continuou circulando, só que aí baixamos a bola. O jornal ficou aos cuidados de Renan Kurtz, um líder universitário, que se tornaria deputado estadual. Passei a escrever artigos sobre cultura e uma coluna de notas intitulada Desfile, agora sempre pegando leve. Eu fazia também jornais de estudantes, no curso secundário. Integrava uma turma de esquerda, não mais do que dez estudantes, pessoal super politizado e atuante, intelectuais em formação, da qual fazia parte o Tarso Genro, que tinha 16 anos. Um detalhe curioso: no dia 1º de abril, pela manhã, quando a guarnição local ainda não havia aderido aos rebeldes, fui com o Tarso e mais um amigo fazer pronunciamentos ao vivo na Rádio Santamariense, uma das quatro emissoras locais, e que estava integrada à Rede da Legalidade, que Brizola tentava, como fizera em 1961, remontar. Repudiamos o golpe, chamamos o povo à resistência, essas coisas, com aquela emoção do calor dos acontecimentos, mas sem perder o controle, a calma e o senso de responsabilidade. Foi uma coisa impressionante, por nossa idade. Nem sei como confiaram o microfone. Uma hora depois as tropas começaram a ocupar a cidade, sob garoa, num dia cinzento em todos os sentidos. Foram dissolvendo as reuniões, mandando sem violência todo mundo para casa, com a tropa de arma embalada no meio da rua. Eram recrutas inexperientes, a maioria não entendia o que estava acontecendo, alguns até tremiam de nervosos. Um perigo, pois tinham o dedo no gatilho do fuzil. O povo, com medo, obedecia sem protestar. Mas nós estudantes éramos peixes pequenos, lambaris. Eles só estavam prendendo as altas lideranças sindicais dos ferroviários. Prenderam também o prefeito Paulo Lauda e o vice, este último o professor Adelmo, pai do Tarso Genro.
Em 1965 minha família se mudou para Porto Alegre. Tentei emprego na Caldas Júnior, que editava três jornais, mas não tive chance. Fiquei então de correspondente, não remunerado, da revista cultural Vanguarda, da nossa turma de estudantes de Santa Maria, e que durou só três edições. Fiz um concurso público e fiquei dois anos como burocrata da CEEE, companhia estatal de energia elétrica. Meu irmão, o Rubem Mauro Machado, tinha vindo para São Paulo. Trabalhou na Folha, onde cobriu a prisão dos estudantes do Congresso de Ibiúna e a greve da Cobrasma, em Osasco. De lá foi para o Diário Popular e após um mês de casa virou chefe de reportagem. Foi demitido numa crise com a diretoria e aproveitou para escrever um livro de contos, durante sete meses, vivendo só das economias. Grana acabando, certo dia soube da existência do Diário do Grande ABC. A gente morava em São Paulo, na mal afamada Baixada do Glicério. Procurou Fausto Polesi e na hora mesmo foi contratado como secretário de redação, o nome que se dava ao que hoje corresponde a editor-chefe.
*Não percam amanhã a sequência desta série escrita pelo jornalista Milton Saldanha para “AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS”. Final dos anos 60. Jornalistas sem registro em carteira. “Sêo” Abílio, o “médico” da redação e muito mais. Não deixem de acompanhar aqui, nesse blog, todas essas histórias narradas por esse extraordinário profissional que passou sua vida em redações de jornais.
Edward de Souza.


quarta-feira, 25 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Edward de Souza
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INÉDITO
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TIROTEIO NO CEMITÉRIO
Parte VIII

Escolher histórias da minha vida profissional é tarefa difícil. Ao longo de mais de 30 anos trabalhei para importantes jornais brasileiros. O caso do “sepultamento de Assis” é um dos mais curiosos. Foi logo quando fui contratado como repórter policial pelo Jornal Notícias Populares. Claro que tinha experiência, depois de um bom tempo trabalhando na Região do ABC Paulista, inclusive carregava na bagagem o prêmio de melhor repórter policial outorgado pelo 10º Batalhão da Polícia Militar do ABC, o PMzito. Trabalhar num jornal recordista de vendas era meu primeiro desafio. Dias depois de minha chegada ao NP, fui escalado para cobrir o sepultamento de Assis, considerado um dos mais perigosos assaltantes que agia em São Paulo. Havia a suspeita que membros de sua quadrilha poderiam invadir o cemitério e entrar em confronto com a polícia, revoltados com a morte de seu líder. Dois dias antes, depois de um cerco policial sem precedentes na história, Assis foi localizado num barraco, reagiu contra dezenas de policiais, mas acabou sendo fuzilado, depois de mais de uma hora de cerrado tiroteio. Duro na queda, mesmo atingido por vários tiros, Assis, ainda assim deixou o barraco. Sangrando, tentou saltar o muro da casa para fugir. Recebeu uma saraivada de tiros e caiu morto ao solo. Era o fim de um dos maiores bandidos dos anos 70. Festa para a polícia e alívio para a população. Os principais jornais do País estamparam em suas primeiras páginas a notícia. No entanto, marginais ligados a Assis prometiam dar o troco e atacar policiais no dia do sepultamento. O Secretário de Segurança Pública da época escalou uma tropa de elite para acompanhar o enterro do marginal, além de dezenas de PMs armados até os dentes para garantir a tranquilidade da população vizinha ao cemitério.
Deixei a redação do jornal, na Rua Barão de Limeira, por volta das 9 horas da manhã, acompanhado pelo premiado fotógrafo Tarcisio Leite, um dos melhores do Grupo Folhas. A editoria de polícia tinha a informação que o sepultamento de Assis seria às 11 horas. Tempo suficiente, pensava eu, para a cobertura do enterro. Quando chegamos ao cemitério, surpresa e decepção. O marginal havia sido sepultado mais cedo, por determinação das autoridades policiais, que temiam um confronto com membros de sua gang. Percebi que no cemitério estavam conhecidos repórteres de polícia, famosos na época, entre eles o Orlando Criscuolo, do Diário da Noite, Nelson Gatto, Inajar de Souza e outros que não recordo o nome. Tentei buscar informações e fui recebido por eles com ironia. Fui tratado como um “foca” na roda dos velhos jornalistas, que zombaram de minha capacidade. Um deles, o Criscuolo, disse: “Pois é, moleque, você não tem futuro nenhum como jornalista, não sabe nem chegar cedo para cobrir um caso tão importante assim. Vá perguntar para o coveiro, quem sabe ele lhe dá algumas informações”, sentenciou de forma brusca. Todos eles me viraram as costas. Conseguiram me humilhar, sem piedade. O Tarcísio, fotógrafo, se afastou e conversava com alguns investigadores de polícia, tentando ver se salvava nosso dia com alguma informação de importância sobre o sepultamento de Assis, mas nada havia acontecido de destaque. Ficamos apenas eu, Tarcísio e esses cinco investigadores do 3º Distrito Policial. Todos tinham ido embora. Notei que nas casas próximas ao cemitério, dezenas de moradores se acotovelavam nas janelas e alpendres para ver o que se passava. Aproximei-me de um dos investigadores e lhe fiz uma proposta. Caso ele e seus companheiros desses alguns tiros para o alto iriam figurar na coluna “Exclusivas” do Notícias Populares, editada pelo meu amigo, saudoso Lázaro Campos. Era o sonho dos policiais da época sair em destaque nessa coluna. Além da fama, sempre rendia uma promoção. Proposta aceita. Pedi ao Tarcísio que não perdesse tempo. Quando os tiros fossem dados para o alto, ele deveria fotografar os moradores e conseguir nomes de todos eles. Assim foi feito. Os investigadores exageraram no tiroteio. Descarregaram suas armas e sumiram para suas viaturas. Esperto, Tarcísio, mesmo ainda sem nada entender, fez o que eu lhe pedi. Conseguiu mais de 15 fotos, algumas mostrando moradores com olhares espantados e expressão de medo no rosto.
Entramos na redação. Entreguei os nomes dos policiais ao Lázaro Campos – Editor de Polícia - e lhe expliquei todo o ocorrido. Também o teor da minha matéria. Sorrindo, Lázaro deu sinal de positivo e sapecou: “isso, dê uma lição naqueles velhos”, referindo-se aos repórteres de polícia que me humilharam no cemitério. No dia seguinte todos os grandes jornais de São Paulo estamparam manchetes semelhantes: “Tranquilo o sepultamento de Assis”, ou “Paz no enterro de marginal”. Notícias Populares iria estourar mais uma vez as vendas nas bancas. Sua manchete, com matéria trazendo minha assinatura, era essa: “Tiroteio no sepultamento de Assis”. 15 fotos de moradores, com nomes, comprovavam a veracidade da notícia.

segunda-feira, 23 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Edward de Souza

IMPERDÍVEl

A CAIXA COM FÓSFOROS

Parte VII

No final dos anos 70 deixei o Jornal Notícias Populares e voltei, a convite de Renato Campos, para o Diário do Grande ABC. Se me perguntarem quantas vezes trabalhei no Diário do Grande ABC, não saberia responder sem antes consultar minha surrada Carteira Profissional de capa preta, atualmente jogada num canto qualquer em uma das minhas pastas de documentos antigos. Muitas caras novas na redação - já no moderno prédio da Rua Catequese - mas também encontrei velhos conhecidos. Um deles, João Colovatti. Abraçando-me forte e com lágrimas nos olhos me desejou sucesso nesse retorno ao jornal. No final do primeiro dia de trabalho fomos comemorar na mercearia frequentada até hoje por velhos italianos, duas quadras acima da sede do jornal, apelidada pelo Colovatti de “Cebola´s Clube”. Até hoje não sei de onde o João - eu sempre o chamei assim - tirou esse nome. Feliz com meu retorno, Colovatti, entre umas e outras, colocou-me a par de tudo o que se passava, no jornal e na região. Logo nesse primeiro dia do meu retorno, Colovatti aprontou mais uma das suas. Num dos poucos momentos em que se calou, enquanto todos conversavam numa roda de amigos, cansado, sentou-se perto da porta de entrada do estabelecimento. Abaixou a cabeça. Nisso, um mendigo se aproximou e pensando que Colovatti estava com problemas, prometeu interceder pelo fotógrafo junto a Deus. Com um salto, chamando a atenção de todos, Colovatti gritou: “Não! Não! Não peça nada a Deus por mim! Se você tivesse importância para Ele não estaria nessas condições!”. O mendigo sumiu, coitado. Nós rachamos o bico. Até para escrever sobre isso hoje, fui obrigado a parar para rir. A tirada foi genial...
Semanas depois, já num dia de inverno, sai para fazer minha ronda policial para o jornal. Colovatti, como chefe do laboratório fotográfico, se escalou para me acompanhar. Gostava de sair em minha companhia. Entramos na viatura do jornal, naquela época já com moderna frota e seguimos para Diadema. Eu sempre começava por aquela cidade, violenta demais no final dos anos 70. De lá, passagem obrigatória pelos distritos policiais de São Bernardo, depois Santo André e, muitas vezes, com pouco material para escrever, buscávamos ocorrências policiais em Mauá e até Ribeirão Pires. Carregava no bolso de trás da calça um monte de laudas para anotações, mas nunca as usava. Eu tinha um hábito conhecido pela maioria dos meus amigos e amigas jornalistas do ABC Paulista. Gostava de ouvir caso por caso e anotava apenas nomes dos personagens envolvidos numa caixa com fósforos, também usada para acender cigarros, vez ou outra. Fazia frio nesse dia. Na volta de Diadema, João sugeriu pararmos numa lanchonete, especializada em caldo de mocotó. Encostamos na “Lanchonete do Mineiro”, situada na Avenida Caminho do Mar, perto da Villares, onde Lula trabalhou como metalúrgico e perdeu um dedo. Os termômetros marcavam menos de 14 graus. O caldo de mocotó realmente era uma boa pedida para um dia assim. Para o João, na verdade, era uma “boa idéia”.
Chegamos ao jornal depois das 17 horas. João seguiu para o laboratório para revelar as fotos e eu, apressado, tomei o elevador do jornal e desci correndo na redação para escrever as notícias policiais do dia. Eram muitas, como sempre. Sem exagero, amigos como Renato Campos, Édison Motta e outros podem confirmar, muitas vezes eu escrevia sozinho uma página policial por dia. Enfiei as laudas com carbono na velha Olivetti. As cópias seguiriam para o jornal falado da Rádio Diário, apresentado no final da noite e de grande audiência no ABC Paulista e em São Paulo. Anos mais tarde eu apresentei esse jornal, ao lado do saudoso Rolando Marques. Voltando à redação. Enfiei as mãos nos bolsos à procura da caixa com fósforos e... Nada! Tinha desaparecido. Comecei a suar frio, afinal, como identificar os personagens de cada caso sem os nomes? Renato Campos percebeu minha aflição, mas nada contei a ele. Como explicar que todas as minhas anotações foram feitas numa caixa com fósforos? Desesperado, corri em busca de auxílio no laboratório fotográfico. Contei o caso para o João, que me olhava de lado, com jeito de quem estava se segurando para não rir. A solução seria mandar um carro do jornal até a “Lanchonete do Mineiro”, quem sabe o dono do estabelecimento teria encontrado e guardado essa preciosa caixa com fósforos, foi a sugestão do João Colovatti. Não daria tempo. Era horário de “rush” e as ruas estavam congestionadas. Sem saber o que fazer, gritei bem alto: “pago uma caixa de cervejas por essa caixa com fósforos”. João Colovatti deu um pulo da cadeira onde se encontrava e respondeu de imediato: “você vai cumprir sua promessa?”. “Claro que sim”, respondi. João deu meia volta, buscou sua mala onde carregava o material fotográfico e sacou a caixa com fósforos, me entregando. Não estava acreditando. Todos os nomes anotados estavam ali. Colovatti estava rindo como criança. Mais uma de suas brincadeiras. Corri feliz para a redação e entreguei o material para fechamento no prazo estabelecido, pouco antes das 20 horas. Quando deixei o jornal, João me esperava. Fui obrigado a cumprir minha promessa.

domingo, 22 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Guido Fidelis

João Colovatti, O COMEÇO
Parte VI

Idos de 1962/1963. O Grande ABC, particularmente Santo André, iniciava um ciclo de modernização, construíam-se escolas, o movimento cultural se intensificava, novos estabelecimentos comerciais se abriam. Na Rua Bernardino de Campos, proximidades da estação, funcionava a sede do News Seller, que se transformaria no Diário do Grande ABC. Do outro lado da rua, bem em frente, foi inaugurada uma lanchonete moderna para a época, especializada em cachorros quentes, alguns outros sanduíches, sucos, refrigerantes etc. Na esquina, já na Rua Carlos de Campos, havia a sucursal do jornal Última Hora. Um pouco acima, a dos Diários. E na Oliveira Lima, surgia o jornal O Repórter. A imprensa fervilhava, cobria tudo, política (o primeiro impeachment no Brasil, do prefeito Oswaldo Gimenez, de Santo André), sindicalismo, que iniciava intensa movimentação, poluição em seus primórdios. Enfim, temas para inúmeras pautas. A violência ainda estava adormecida. João Colovatti atendia na lanchonete. Atencioso, gentil, logo se tornou amigo dos jornalistas que frequentavam o estabelecimento. Ficou íntimo do jornalista Geraldo Cunha, excelente fotógrafo, profissional que atendia tanto o jornal Última Hora quanto a Polícia Técnica, além de grande boêmio. Laços fraternais solidificados, Colovatti passou a acompanhar Cunha noite adentro, frequentando delegacias de polícia. Muitas vezes carregava as câmaras do Cunha. Com ele aprendeu as artes do ofício. Inteligente, descobriu os mistérios das boas imagens jornalísticas, movimentadas, com iluminação adequada, bem como os segredos de sair na frente, furar. Na época havia uma guerra em torno de notícias policiais, uma batalha aguerrida entre Última Hora e Diário da Noite e A Hora. Nomes se projetavam: Nelson Gato, Cabral. Quando o News Seller se transformou no Diário do Grande ABC Colovatti estava preparado para assumir o mister e se destacar. A partir daí sua trajetória ascendente é conhecida na história da imprensa brasileira.
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Guido Fidelis é jornalista, escritor e advogado, amigo de longa data. Convidado, escreve hoje o que deveria ser o primeiro artigo dessa série que iniciamos sobre histórias das redações de jornais. De qualquer forma, para muitos que conheceram ou trabalharam com João Colovatti, essa figura folclórica, que tirou sarro anos atrás do metalúrgico Lula, atual presidente do Brasil, ao fotográ-lo com uma surrada cueca cor de rosa num hotel onde participava de uma convenção de trabalhadores, um surpreendente relato sobre o começo de sua carreira. Essa série ainda terá mais João Colovatti, falecido em 2001, aos 56 anos, depois outras histórias sobre os tempos das velhas máquinas de escrever.
*Edward de Souza - Blog


sábado, 21 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

O PRÊMIO ESSO
PARTE V
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RESPOSTAS PARA UM LEITOR
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Edward de Souza - Édison Motta
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O advogado e leitor desse blog - Dirceu H. Matoso - Porto Alegre - na matéria sobre histórias de redações de jornais, capítulo IV, em seu comentário quis saber quando e como o jornalista Édson Motta ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo. Pergunta também como fazer para acessar a página do Jornal Comércio da Franca, onde mantenho uma coluna todas as quintas-feiras. Começamos com as explicações de Édison Motta. No final, acrescento o link de acesso ao jornal.
"O Prêmio Esso Regional de Jornalismo - região Sudeste, que abrange todos os grandes veículos de comunicação do eixo Rio - SP - foi conquistado em 1976 em parceria com Ademir Médici. Resultou de uma série de reportagens publicadas no Diário do Grande ABC naquele ano com o título: "Grande ABC, a metamorfose da industrialização". As reportagens tiveram entre os entrevistados o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, o atual presidente Lula. Mostravam os contrastes e a falsa impressão de progresso que a industrialização - a partir da instalação das montadoras automobilísticas há menos de 20 anos naqueles tempos - trouxeram à região do grande ABC formada por sete cidades: Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Com sua veia natural de excelente historiador e extraordinário talento inato para o jornalismo, Ademir Médici foi a campo e trouxe aos leitores do Diário, saborosas lembranças de como viviam seus ancestrais na região: cidades aprazíveis, com farta natureza, sem poluição, trânsito e nem criminalidade. A partir da industrialização, o chamado ABC paulista se transformou no "eldorado" brasileiro e atraiu milhões de pessoas que deixaram os mais distantes rincões do país em busca de emprego e da felicidade a ser conquistada pelo tal "progresso". Surgiram às primeiras favelas, guetos de migrantes rurais, a poluição das águas e do ar; destruição do meio ambiente. A violência e criminalidade explodiram. Alguns conseguiram melhorar o padrão de vida, em troca de um regime semi-escravagista nas indústrias, atuando como robôs tão bem ilustrados por Charles Chaplin em seus "tempos modernos". Porém, a maioria foi transformada em exército de reserva das indústrias, onde peregrinava, nas madrugadas, em longas filas, que dobravam quarteirões, em busca do sonhado emprego. Massa de manobra que viabilizou a rotatividade da mão de obra e exerceu pressão - por excesso de oferta - sobre os salários dos que estavam empregados.Não sabíamos à época. Mas foi aquele contexto, retratado na série de reportagens, que levou à rebelião dos trabalhadores do ABC em 1978,79 e 80. As greves campais lideradas pelos metalúrgicos - que inauguravam o chamado novo sindicalismo - abalaram as estruturas do regime militar, projetaram Lula e mudaram a história do Brasil."
Para acessar o Jornal Comércio da Franca é só clicar nesse link:
http://www.comerciodafranca.com.br/index.php Preencha um breve cadastro e você terá acesso a todas as notícias do jornal


sexta-feira, 20 de março de 2009

ARTIGO ESPECIAL DESTA SEXTA - GENTE BONITA: PRECONCEITO OU IGNORÂNCIA?

J. Morgado

Os leitores deste blog poderão achar estranho o título desse artigo. Entretanto, "gente bonita" é uma frase muita usada nos dias de hoje pela sociedade de um modo geral, não importa a classe em que se encontra situada, dentro dos padrões ou valores que essa mesma sociedade se colocou, em razão dos estudos sociológicos efetuados pelos governos eleitos por todas as categorias denominadas A, B ou C, etc.
Quando começou essa expressão para classificar ou dividir pessoas pseudo educadas, bem vestidas, poder aquisitivo de razoável para cima, das que não tiveram a mesma oportunidade de outros que residem em favelas, cortiços ou nas ruas e não tiveram a oportunidade de frequentarem escolas de vários níveis, desempregados, ou que ganham um pequeno salário? O que nos causa admiração é que essa expressão “gente bonita” possa partir de pessoas que se dizem religiosas, inclusive os espíritas. Lembro-me de ter ouvido pela primeira vez essa frase há um quinze ou dezoito anos atrás, de uma pessoa fazendo comparação dos habitantes de uma cidade para outra. A partir daí era cada vez mais constante ouvir e lê-la em jornais e revistas e principalmente na televisão: uma expressão que soa como preconceituosa, um defeito moral que uma parte da humanidade ainda não se livrou.
Li recentemente a crônica de um conhecido jornalista onde ele deixa clara a inversão de valores que a própria mídia faz questão de explorar e incentivar. O profissional fala das revistas e da mídia de um modo geral que mostram a todo o momento celebridades “socialites” e do mundo da moda entre outros que em nada contribuem para o progresso social e faz uma comparação com outras pessoas, no caso uma médica brasileira de fama internacional e especialista em doenças do coração que atua no Brasil e Estados Unidos. Este artigo descreve apenas um pouco do que se vê na imprensa e na boca das pessoas materialistas que vêem apenas o verniz com que criaturas se disfarçam para esconder as futilidades de que um dia se arrependerão. Os ingênuos espectadores ou leitores seguem esses modismos sem raciocinar no que estão fazendo, pois na verdade estão sendo como disse preconceituosos e discriminatórios.
O Livro dos Espíritos em seu item 799 nos trás um esclarecimento a respeito do assunto: “De que maneira o Espiritismo pode contribuir para o progresso? – Destruindo o materialismo, que é uma das chagas da sociedade e fazendo os homens compreenderem onde está seu verdadeiro interesse. A vida futura, não estando mais encoberta pela dúvida, fará o homem compreender melhor que pode, desde agora, no presente, preparar seu futuro. Ao destruir os preconceitos de seitas, de castas e de raças, ensina aos homens a grande solidariedade que deve uni-los como irmãos” (Petit Editora – 1999). Parte dos habitantes do Planeta desconhece ou fingem desconhecer a reencarnação dos Espíritos como única forma de evolução da humanidade, principalmente no seu aspecto moral. Interpretam os ensinamentos de Jesus de acordo com suas conveniências, pois não conseguem entender que “Coroados hoje, lavadores de estábulos amanhã”. Não me recordo onde vi ou ouvi essa frase ou pensamento, mas ela é exatamente o que quer dizer de maneira curta e grossa as inúmeras vezes que temos que reencarnar para aprender o que é o Amor, a Humildade, a Tolerância, A Indulgência, o Respeito ao Próximo, etc. Ontem fomos escravos, negros, brancos, amarelos, pobres, ricos, algozes, tiranos, sovinas; e hoje, resgatando nossos débitos do pretérito, podemos ter a forma física bonita ou feia. Como será o Espírito de um favelado que aqui está encarnado a fim de cumprir uma missão, ou seja, um missionário com a finalidade de ajudar a “carregar a cruz” daqueles misérrimos habitantes, intuindo-os ao bem? É bem provável que esses favelados tenham sido em reencarnações passadas, senhores de engenho, escravocratas, nobres, ricos com corações insensíveis (gente bonita, no entender das pessoas que fazem essa discriminação), criminosos, suicidas e sei lá mais o quê...
Quanto às pessoas chamadas de gente bonita, também estão sendo testadas, pois a beleza é uma prova difícil e para vencê-la é preciso ter fé e forças para passar ao largo da “Porta Larga” (Capítulo XVIII-A Porta Estreita, item 3, O Evangelho Segundo O Espiritismo) e saber usar a beleza que Deus nos concedeu como fases de preparação para evoluirmos. As pessoas que se referem a “gente bonita” ou “feia” esquecem-se que os tais feios, tisnados do sol, plantam e colhem, criam e produzem para que os bonitos possam também se alimentar. Que aqueles “feios” de mãos calejadas e testas escurecidas pela graxa das fábricas trabalham para nosso conforto. Que nossos irmãos à beira mar arriscam suas vidas para buscar os saborosos alimentos ricos em vitaminas e minerais e que o sertanejo, resistindo às secas prolongadas do Nordeste Brasileiro, produz, além de alimentos, exemplos de fé e esperança e estoicismo para as pessoas “bonitas ou feias” do resto do Brasil. E para encerrar vejamos o que diz o item 814 do Livro dos Espíritos (mesma fonte). – Por que Deus deu a uns riquezas e poder e a outros a miséria? – Para experimentar cada um de maneiras diferentes. Aliás, vós já o sabeis, essas provas foram os próprios Espíritos que escolheram e, muitas vezes, nelas fracassaram. No item 815 a pergunta: Qual das duas provas é a mais terrível para o homem, a miséria ou a riqueza? – Tanto uma como a outra; a miséria provoca a lamentação contra a Providência; a riqueza estimula todos os excessos.

J. Morgado é Jornalista e pescador de verdade. Atualmente esconde-se nas belas praias de Mongaguá, onde curte o pôr-do-sol e a brisa marítima. Morgado escreve quinzenalmentge neste blog, sempre às sextas-feiras. E-mails sobre esse artigo podem ser postados no blog ou enviados para o autor, nesse endereço eletrônico: jgacelan@uol.com.br

quarta-feira, 18 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Édison Motta
PARTE IV
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Jornalista e escritor
Prêmio Esso de Jornalismo
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O FILHO DO PASTOR

Prezado amigo Edward de Souza,
Como leitor assíduo de seu blog e da sua coluna no Jornal Comércio da Franca, estou encantado com a homenagem póstuma que está fazendo ao nosso grande e estimado João Colovatti. Algo que deveria, um dia, ser feito pelo próprio Diário do Grande ABC, caso recuperasse alguns talentos que perdeu ao longo do tempo. Outros, como é o caso do querido Colovatti, são irrecuperáveis para este mundo porque habitam outra dimensão. O Dgabc conseguiu perder o João, às vésperas da aposentadoria, numa ingratidão inominável que acelerou seu infarto.
Também tive meu batismo de fogo com ele. Desde os 15 anos de idade, quando enfiei na cabeça que queria ser jornalista, fui me preparando para a profissão. Inicialmente li tudo que dizia respeito ao dia-a-dia do repórter, garimpando livros e textos que, à época eram raros e nem se sonhava com internet. As próprias faculdades rareavam porque a profissão, no final daqueles anos 60, nem mesmo era regulamentada, o que ocorreu em 1969. Passei boa parte da infância e adolescência no convívio evangélico. Inicialmente, obrigado pelo meu severo pai, na Assembléia de Deus, onde tocava na banda de música e, depois, numa espécie de acordo com ele, comecei a freqüentar a Igreja Metodista. Com 15 anos era presidente da Federação Metodista de Juvenis e viajava por todo o Estado de S. Paulo realizando congressos, palestras etc. Falar em público e conhecer novas pessoas era minha praia. Um dia, surgiu a oportunidade de ouro de trabalhar no Expositor Cristão, o jornal oficial da Igreja. Comecei como revisor. Em pouco tempo era um tipo de faz-tudo no jornal, desde datilografar cartas quase ilegíveis de “irmãos” que enviavam correspondência até secretaria-gráfica, de madrugada, nas oficinas do sistema “chumbão”. Para quem não sabe, naqueles tempos os textos eram compostos por linotipos que funcionavam à base de chumbo derretido. Aos poucos, de leve, comecei a inserir minhas próprias matérias. Assinei algumas e as guardei, como tesouro, para o passo que pretendia dar mais à frente.
Numa noite fria de junho, pulei o muro do “Américo Brasiliense”, onde cursava o segundo colegial, aos 17 anos, e fui direto ao Fausto Polesi, diretor de redação e um dos fundadores do Diário do Grande ABC. Com suficiente cara de pau, munido de alguns exemplares do “Expositor” com matérias assinadas e um cartão de apresentação assinado pelo pastor Lenildo de Freitas Magdalena – que também era presidente da Câmara de Vereadores de São Bernardo - pedi emprego de repórter. O Fausto não titubeou: disse para eu procurar o Dirceu Pio, no dia seguinte, na mesma “casinha” para fazer um teste. Dito e feito. No outro dia, por volta das 9 horas, apareci na redação e apresentei-me ao Pio que, com cara de poucos amigos, me ofereceu o solene desprezo com os quais os antigos tratavam os focas. Assim mesmo, a contragosto, folheou a edição do dia e recortou, com a ponta de um clips - desses de prender papel - uma pequena nota retirada da seção de editais, nos classificados do jornal. Dizia a nota que tomou posse a nova diretoria da Rede Feminina de Combate ao Câncer, sessão de São Caetano. Não havia nenhum telefone de contato, apenas o endereço. Entregou-me a requisição do carro, fotógrafo e uma recomendação: vire-se. Quando entrei no laboratório, imagine: dei de cara com o Colovatti, o único que, matreiramente, esquivara-se de pautas anteriores. Sabe-se lá como, o João já tinha minha ficha à sua maneira:
- Então você é o filho ilegítimo do pastor?
- Que história é essa, perguntei indignado e p... da vida!
- Hahahahahahaha, gozou o João. Aqui na redação todo mundo já está sabendo que você é filho não reconhecido do Lenildo.
Tive vontade de pular sobre o pescoço do gordo arrogante. Mas estava em jogo um teste e eu havia me preparado. Aguentei o tranco e segui, ao lado de um João visivelmente contrariado, para o carro de quem (?!)... Barbosa, o motorista. Aliás, um dos dois únicos motoristas do jornal naqueles tempos. O outro era o Zé Natal e sua Kombi caindo aos pedaços. De quebra, o Pio recomendou que deixasse o Flávio Soares pelo caminho para fazer outra matéria. No fusca, sentado no banco traseiro (o João apoderou-se do banco da frente... sem discussão) tive que ouvir todo tipo de impropérios pelo caminho. Desde a história de meu “pai ilegítimo” até escaramuças de preconceito religioso impensáveis nesses novos tempos que proíbem, constitucionalmente, as discriminações. Decididamente o João resolvera pegar no meu pé. Aguentei firme até que encontramos o endereço. Saiu de casa uma senhora, já com alguma idade e, bingo! As companheiras da nova diretoria estavam reunidas num chá da tarde comemorativo. Conversei com várias delas com desenvoltura. Afinal, lidar com senhoras também era minha praia nos muitos contatos na Igreja Metodista. Em cada congresso (juvenília) era com elas que eu tratava sobre os lanches e refeições da moçada. O João permaneceu o tempo todo calado, sentado num canto. Fotografias... Nada! Também fiquei na minha: fotografia era problema dele. No final, quando já ia me despedindo, o João fez dois ou três flashes da presidente. E nada mais.
Na volta, outra turbulência. Mais e mais agressões ao “filho do pastor” e à minha religião. “Quer ir pro céu? Pode tirar o cavalinho da chuva, lá não entra jornalista, hehehehehehehehe”. Aguentei firme a gozação sem nenhuma reação em todo o percurso. Cheguei à redação, consegui uma Olivetti a muito custo (era o horário do fechamento e o Daniel Lima babava mais que quiabo monopolizando tudo ao seu redor). Escrevi a matéria num só fôlego. Incomodado com a pressão dos demais para liberar a máquina. Findo o texto, entreguei-o ao Onofre Leite, então secretário de redação e responsável pelo fechamento da edição daquele dia. Gelei enquanto o Onofre lia o texto. Ele não disse nada. Apenas um O.k., está entregue. Não dormi aquela noite. Se a matéria fosse publicada, conseguiria o emprego. Se não, era o próprio aviso de que não passei. A insônia permaneceu até o dia clarear. Mas valeu à pena. Porque, antes mesmo das 6 horas o entregador de jornal deixou o exemplar na porta de casa. Fui correndo e lá estava ela: na integra, sem qualquer alteração ou supressão, na primeira página, com foto. Tomei o café da manhã, devorei o exemplar – li todas as matérias – enquanto aguardava o tempo passar. Sabia que não adiantaria chegar cedo à redação porque não encontraria ninguém. Quando, finalmente, cheguei para saber se estava contratado – e fui! – minha preocupação seguinte era esperar o Colovatti chegar, o que não demorou. Entrei com cara de poucos amigos no laboratório com o exemplar na mão. Não trocamos uma palavra, a não ser olhares ameaçadores de parte a parte. O João não acusou o golpe. Fez que não viu a matéria. Dei de costas e sai para cumprir a nova pauta, com outro fotógrafo. Aquele batismo inicial não saiu da memória, passados todos esses anos. E o melhor: ficamos amigos rapidamente. O Colovatti “esqueceu” aquela história de filho de pastor e se revelou um dos melhores fotógrafos que conheci, não apenas no Diário, mas também em minhas passagens por grandes redações como Folha, Estadão e Jornal do Brasil. Por seus méritos, sempre o escalava, quando chefe, para as principais matérias. Ele foi também um companheiro de muitas e muitas reportagens que entraram para a história do jornal, inclusive as fotos da série que me rendeu o Prêmio Esso.

terça-feira, 17 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Edward de Souza
PARTE III

O TROMBONE

O fotógrafo João Colovatti continua sendo personagem principal dessas histórias de redações da época em que os dinossauros habitavam a terra, de acordo com a definição do amigo escritor e jornalista Guido Fidelis, que promete escrever para esse blog outro caso desse controvertido profissional de imprensa que marcou época no jornalismo brasileiro.
Marcelo Vitorino, que escreveu recentemente um livro sobre Colovatti, intitulado “Revelações de um anti-herói”, assim define o fotógrafo: “ele tinha um olhar voltado para as pessoas simples, uma visão muito humanista. Mas sem qualquer posição política. O Colovatti não era engajado em questão nenhuma que não fosse a cachaça”. Eu acrescentaria que João Colovatti era uma criança que se esqueceu de crescer. Sempre sorridente e aprontando pra cima dos “focas” do jornal, no fundo era um homem sentimental ao extremo. Várias vezes surpreendi Colovatti chorando, mas ele despistava, enxugava os olhos e virava as costas, fugindo do flagrante que comprometia sua fama de durão.
Num belo domingo dos anos 70 eu estava de plantão na redação do Diário do Grande ABC, escalado pelo Édison Motta, na época o chamado “Editor Chefe” do jornal. No laboratório estava apenas o João Colovatti, à espera de um chamado de urgência. Mas nada acontecia de importante naquele dia. Quase hora do almoço e o telefone tocou. Fui informado que estava acontecendo a Festa do Pilar, um dos principais eventos religiosos da Estância Turística de Ribeirão Pires, com uma série de atividades, entre elas missa campal, atrações artísticas e a presença de políticos importantes. Nada a ver comigo, repórter policial de plantão, mas um bom motivo para mostrar serviço. Difícil, pensava eu, seria convencer o Colovatti que deveríamos cobrir essa festa. Fui procurá-lo e quase caí de costas. O João havia lotado o laboratório com gaiolas de passarinhos. Certamente trouxe de casa e eu não tinha visto quando chegou com todo aquele aparato. Assim que entrei começou a dar nomes aos canarinhos. Esperei que terminasse e o chamei para o trabalho. Para meu espanto, ele vibrou com a possibilidade de sair. Rapidamente pegou seu material fotográfico e correu para o carro do jornal. O velho “Chuba”, que gostava de tomar umas e outras, dormia. Colovatti não perdeu a oportunidade. Com uma tapa forte no capô do carro, e aos gritos de “incêndio, incêndio”, acordou o pobre motorista. Depois de ter se recobrado do susto, “Chuba”, ainda trêmulo, pegou o rumo de Ribeirão Pires. Assim que chegamos percebi que entre as autoridades presentes estavam deputados e o vice-governador do Estado. Um bom prato para rechear a matéria, certamente com muitas fotos. Aproximei-me das autoridades, julgando que o Colovatti me acompanharia. Ledo engano. Quando virei percebi que ele estava com o motorista numa barraca armada nas proximidades da igreja do Pilar, onde ocorria a festa, ao lado de diversos pratos de comidas típicas e de garrafas de cachaças artesanais de todas as qualidades. Esperei que ele tomasse uma, dei-lhe uma bronca e ele me acompanhou de mansinho, cabeça baixa, parecia aborrecido.
Enquanto eu entrevistava alguns políticos, percebi que em momento algum Colovatti mirava sua máquina fotográfica na minha direção, ou mesmo na dos entrevistados. Parecia encantado com um enorme trombone. E fazia uma foto atrás da outra. O clima já havia esquentado na barraca, por isso achei melhor deixar pra lá. Como profissional, Colovatti sabia que seria cobrado no dia seguinte, caso não tivesse feito fotos dos presentes àquela festa. Não seria problema meu, pensei. Minha missão de registrar a festa, escrevendo a matéria, seria cumprida. Passava das 14 horas e não havíamos comido nada. Terminei minha obrigação, não disse uma palavra ao Colovatti e ainda o acompanhei numa das barracas, onde comemos alguma coisa. Na volta só brincadeiras, bem ao estilo do João e nenhum outro comentário sobre as fotos. Fiquei em casa, porque o jornal nessa época não saia às segundas-feiras. No dia seguinte escreveria a matéria e a entregaria ao editor do jornal. O Colovatti que se explicasse. Na segunda-feira eu estava na redação quando entrou o Colovatti com um monte de fotos nas mãos, entregando-as ao editor do jornal. Eu nem quis olhar, afinal, que fotos poderia ter tirado? E deveriam vir para minhas mãos, para que fizesse as legendas. Não iria aprová-las. Terminei o texto, entreguei ao editor e perguntei sobre as fotos. Estão excelentes, respondeu ele. Em seguida me pediu que corresse a um distrito policial porque um latrocínio havia ocorrido no centro de Santo André. Antes me tranquilizou, dizendo que não me preocupasse com as legendas das fotos, porque ele mesmo faria isso. E uma delas seria publicada na primeira página. Sai sem entender nada. Alguém estava louco no jornal. Será que a foto de uma barraca com cachaça ou de um trombone seria mesmo publicada na primeira página, logo numa festa onde estava o vice-governador do Estado? Fui cumprir minha obrigação. Eles que se danem, pensei. No dia seguinte peguei o jornal e lá estava, na primeira página, uma foto enorme de um trombone. Refletido nele, todas as autoridades presentes nessa festa. Uma das fotos mais lindas e nítidas que já vi em toda minha vida. Verdadeira obra de arte, com a assinatura desse mestre que aprendi a respeitar: João Colovatti.