quinta-feira, 23 de abril de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Capítulo inédito do livro “Periferia da História”

Milton Saldanha

24 de agosto de 1954

Este foi um dia impossível de esquecer. Eu estava no segundo ano primário do Colégio São José, no bairro do Fragata, em Pelotas (RS). Era um colégio de freiras rudes, que tratavam as crianças aos tapas. Fui colocado lá, oh azar, porque era a escola mais próxima de casa. Quando levei a primeira porrada da freira contei em casa. Não recordo se o pai ou mãe, mas um deles foi lá, chamou a freira e avisou: “nunca mais ouse tocar no meu filho. Se acontecer de novo eu venho aqui e... Não completou a frase, se retirou deixando implícita uma grave ameaça. Blefe, claro. Foi minha alforria naquele inferno. Todo mundo continuou apanhando em classe, menos eu. Na manhã ensolarada do dia 24 de agosto de 1954 mal tínhamos abertos nossos cadernos, o relógio nem marcava 9 horas, e a madre abriu a porta, interrompendo a classe. Nem entrou, falou dali mesmo, só com a cabeça para dentro da sala: “As aulas estão suspensas por três dias. O presidente da República acabou de se matar”.
Oba! Festejaram todos, já curtindo aquela vadiagem inesperada. Gostei também do anúncio da folga, mas ao mesmo tempo senti um choque. O fato de ter visto Getúlio Vargas de pertinho, deslumbrado, um ano antes; o afago dele no meu irmão Rubem Mauro; talvez até a admiração dos meus pais pelo velhinho, um populista que soube se tornar amado pelos pobres, tudo isso naquele momento me fazia um pouco diferente dos demais. Pesou também na minha frágil cabeça infantil a frase seca, dura mesmo da madre – “... acaba de se matar!” Se para um adulto isso sempre tem um impacto, imaginem então numa pessoa que recém completara 9 anos.
Jamais aconteceu, em toda História brasileira, uma comoção como aquela. E certamente nem voltará a acontecer, porque não existem mais condições para a cristalização de uma liderança personalista como foi a do Getúlio, capaz de reunir em torno da sua imagem uma massa humana tão ampla. Não há comparação possível, exceto, talvez, com a morte de Evita Perón, na Argentina. O desaparecimento de Tancredo Neves, por exemplo, apesar de toda poderosa máquina de informação que existe hoje, não representou um terço, se tanto, do trauma popular que foi o fim de Vargas. Sobretudo porque as lideranças, as situações e circunstâncias de cada episódio envolvem aspectos impossíveis de comparar. O Brasil literalmente parou de Norte a Sul, de Leste a Oeste, naquele 24 de agosto. Todas as rádios suspenderam imediatamente suas programações, nem comerciais iam ao ar, e passaram a tocar só música clássica, sóbria. A cada cinco ou dez minutos era lida no ar, com forte emoção, a Carta Testamento. Ecoavam as frases, fragmentos, que as pessoas começavam a destacar e a fixar mais, pelo gosto pessoal e sensibilidade de cada um, naquele contexto todo. “Fiz uma revolução e venci” -- “não me acusam, caluniam” – “as aves de rapina” – “o povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém” – “dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”. Era de arrepiar, mesmo quando já se tinha ouvido aquilo uma centena de vezes. E cada vez que ouviam outra vez as pessoas caiam em pranto. Foi a única vez, em toda minha vida, que vi meu pai chorar. Em pé, apoiado na porta da cozinha, rosto enfiado no braço, exatamente como choram as crianças, ele deixou fluir sua dor. Nas ruas, vizinhos que antes mal se falavam, ou mesmo desconhecidos passando, se abraçavam em lágrimas, compartilhando da mesma solidariedade, como se o povo todo fosse uma única e grande família. As notícias chegavam pelo rádio principalmente do Rio de Janeiro e Porto Alegre. Multidões enfurecidas quebravam e incendiavam símbolos locais do imperialismo e da oposição, como vitrines de empresas estrangeiras, jornais, rádios. A rádio Farroupilha, então a mais famosa e de maior potência no Rio Grande do Sul, dos Diários Associados, foi incendiada. Um locutor saltou de uma janela do primeiro andar e fraturou a coluna. O quebra-quebra foi muito grande. O Exército, também surpreendido e paralisado pelos fatos, com seus subalternos traumatizados como o resto do povo, demorou a sair às ruas para recompor a ordem. No Rio, chegaram a usar tanques de guerra, dando tiros nas avenidas com balas de festim, de efeito moral (não explodem, só fazem barulho), para assustar e conter as multidões enfurecidas. O Exército emitia comunicados pedindo que as pessoas ficassem em suas casas e mantivessem a ordem, informando que os distúrbios não seriam tolerados.
Desnecessário falar sobre a massa humana que se concentrou nas imediações do Palácio do Catete, então sede do governo federal, para os funerais. Milhares de pessoas, em fila, circularam em torno do ataúde aberto, com o corpo embalsamado e coberto de flores. Desnecessário também falar dos discursos, ora inflamados, ora em tom de total desolação, que se ouviam das tribunas parlamentares ou em qualquer esquina, de alguém improvisado em orador sobre um caixote. Naquele dia o Brasil não teve governo, não teve qualquer tipo de negócio, a mínima atividade em qualquer setor. Bancos e postos de gasolina fechados. Quem não foi para as ruas para algum tipo de protesto, numa explosão espontânea, sem qualquer tipo de organização, se recolheu em casa, ao pé do rádio, sob forte emoção. Foi o dia mais triste e sofrido que este país já conheceu. Quando a noite chegou, nenhuma remota buzina de carro, nenhuma voz humana, o silêncio na cidade era absoluto e total, como se ali não existisse qualquer tipo de vida. Os opositores a Getúlio, que também não eram poucos, sumiram. Ninguém ousaria se manifestar naquela situação. Lembro-me apenas de uma vizinha, mais louca do que corajosa, falando alto na rua contra Getúlio. Sorte dela que nosso bairro era muito pacato.
No dia seguinte havia bandeiras brasileiras a meio mastro em toda parte. Os veículos, inclusive ônibus e caminhões, circulavam com panos pretos amarrados aos retrovisores, em sinal de luto. Mais do que luto pela morte trágica de um presidente, aquilo era um posicionamento político. Foi quando vi meu pai assumir uma atitude extremamente ousada para sua condição de capitão do Exército, em plena ativa e com uma carreira a completar. Fixou meio metro de arame grosso na ponta do capô do seu sólido Chevrolet de quatro portas e ali instalou uma bandeira preta. Entrava e saia do quartel com aquela marca do seu protesto tremulando. Com certeza afrontando oficiais de vocação golpista, entre eles seus superiores. O luto oficial não passou de uma semana, mas um mês depois os veículos ainda rodavam com aquelas tarjas pretas.
Getúlio se matou com um tiro no coração, por volta das 8 horas da manhã, vestido de pijama, sentado em sua cama. Tinha sido uma noite tensa, no Catete, com reuniões de ministros e assessores. Na prática, ele já estava deposto pelos generais. Sua morte abortou o golpe militar, que voltou a ser tentado em novembro de 1955 e esmagado pelo legalista general Teixeira Lott, ministro da Guerra. Voltou a ser tentado em 1961, na renúncia do Jânio Quadros, mas frustrado pela fortíssima resistência gaúcha, sob a liderança de Leonel Brizola, com apoio do III Exército. Finalmente, em 1964, os golpistas novamente tentaram e desta vez venceram, instalando a ditadura, para infelicidade do Brasil. Com uma única bala, e o sacrifício da própria vida, Getúlio Vargas tinha feito seu derradeiro gesto político, permitindo que o Brasil, bem ou mal, tivesse dez anos de sobrevida em sua combalida democracia.
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*Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho, torcedor do Inter, começou no jornalismo aos 17 anos, em Santa Maria (RS). Trabalhou na grande imprensa de Porto Alegre e de São Paulo. Foi da Folha da Manhã (RS), Diário do Grande ABC, Agência Estado, Estadão e JT, Rede Globo, Rádio Jovem Pan, Última Hora (com Samuel Wainer), entre vários outros veículos. Foi também assessor de imprensa da Ford, do IPT e do Conselho Regional de Economia. Tem um livro publicado, "As 3 Vidas de Jaime Arôxa"; participou de uma antologia de escritores gaúchos; um livro pronto e ainda inédito, "Periferia da História", onde conta de memória 45 anos da recente história do Brasil sob um ângulo totalmente inédito; trabalha num livro sobre Reforma Agrária. Pouco antes de se aposentar fundou o jornal Dance - http://www.jornaldance.com.br/ – que já tem um filhote regional em Campinas, e que neste 2009 completa 15 anos.

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