quarta-feira, 16 de junho de 2010



Em Manaus, fiz algumas boas reportagens. Uma delas, logo quando cheguei, era sobre a campanha do então deputado Ulisses Guimarães como o anticandidato à Presidência da República. O parlamentar se utilizava desse périplo pelas principais capitais do país para protestar contra o regime militar com o seu processo de nomear o presidente da República, impedindo a realização de eleições diretas, nem sequer para governadores, tendo ainda criado a figura do senador biônico. Uma farsa imposta pela hipocrisia característica de todas as ditaduras, de todos os regimes de força, com seus desmandos, com a sua violência e a severa censura aos meios de comunicação.

A viagem de Ulisses seguiria de Manaus para Santarém, já no Pará, em uma barcaça com capacidade para no máximo cinquenta pessoas. A maioria viajava em redes, enquanto alguns privilegiados usufruíam de pequenos abrigos, denominados apartamentos, com capacidade para duas pessoas, acomodadas em beliches para uma só pessoa. Para minha alegria, a “suíte” de Ulisses era a mais bem abastecida com bebidas alcoólicas, uísque de preferência. Nesse percurso, com mais de doze horas de duração, o parlamentar que passaria a ser chamado de “Senhor Diretas” – numa identificação por sua luta pelas eleições diretas em todos os escalões – se esbaldava e discorria com mais alento sobre a sua luta pelo retorno à democracia. Um beberrão de carteirinha, me identifiquei prontamente com o velho e bom político.

Mas quem se encarniçou comigo foi mesmo uma repórter paraibana, que vinha de Brasília acompanhando a comitiva responsável pela divulgação da campanha do anticandidato à presidência da República. Como não havia nenhum “apartamento” sobrando, o único meio de se manter relação sexual era nas redes, ao seu balouçar no embalo das ondas do rio Amazonas. Esse caso amoroso e rápido como uma estrela cadente, serviu para quebrar um pouco a monotonia da viagem.

Ao falar em público, para uma legião de ribeirinhos, Ulisses sabia poder se expor à vontade e criticar com veemência o regime militar. O que não ocorria quando era entrevistado por jornalistas de emissoras de rádio e televisão. A censura não permitia a exposição do parlamentar que ousava, insistia com sua campanha propondo a volta imediata ao regime democrático. Ulisses morreu em um acidente aéreo, junto com o então ministro Severo Gomes. Chegou a realizar parcialmente o seu sonho democrático e foi um dos responsáveis pela nova Constituição, a quem ele chamou de Cidadã. Ulisses deixou sementes que brotaram e florescem até os dias de hoje na mente dos que lutam pela permanência de um regime que, segundo uma definição, é o melhor dos piores.

Nesse mesmo período, cobri a vinda do general Ernesto Geisel, que substituíra o outro general, Emílio Garrastazu Médici, na presidência da República, para a inauguração do aeroporto internacional Brigadeiro Eduardo Gomes. Os jornalistas sequer podiam se aproximar do presidente e vi, então, que passados quase uma década a truculência dos agentes de segurança continuavam. Isso porque, em 1968, quando o marechal Arthur da Costa e Silva, o segundo militar a ocupar a presidência após o golpe de 1964, esteve em Santo André para a inauguração da Petroquímica, até os prefeitos da região, presentes ao evento, sofreram restrições para ficar perto do primeiro mandatário da nação.

Nesse dia, estava ao lado do fotógrafo João Colovatti, com quem fiz uma aposta: quem pediria o melhor prato? Eu, usando de esperteza, solicitei ao garçom o mesmo prato que fosse servido ao presidente, num gesto considerado de esperteza por mim. E, o Colovatti, na tentativa de ganhar a aposta, foi direto na lagosta, achando que esse seria o melhor prato. Quando o garçom, trouxe a refeição para o presidente, percebi de antemão a derrota. Como Costa e Silva encontrava-se sob dieta alimentar, pedira banana São Tomé assada. Colovatti, ao olhar o prato, começou a rir e, eu, com uma fome de dar inveja a cão abandonado, tive que me contentar com aquelas bananas, enquanto Colovatti saboreava a sua lagosta.

Menos de dois meses sozinho em Manaus, decidi vir para Santo André e buscar a Eva, que permanecera na casa dos avós. Contei com o apoio do Calderaro, que me adiantou um salário. Começava a me endividar. A nossa casa, alugada, ficava quase no centro da cidade, a poucos quarteirões do Teatro Amazonas. No primeiro dia de sua estada na Zona Franca, Eva fez questão de visitar a primeira igreja que viu, a de São Benedito. Entrou e fez uma promessa pedindo para ser feliz na nova cidade, ao lado do marido.

Levei a Eva, no início, a conhecer os balneários locais. A viagem mais longa, em sua companhia, eu fiz em uma barcaça, de Manaus até Santarém – o mesmo percurso feito pela comitiva liderada por Ulisses Guimarães. Só que desta vez não era política e sim uma pauta do Jornal do Brasil para o suplemento de turismo, mostrando pormenores de como fazer um passeio de barco no Amazonas e ir conhecendo as cidades ribeirinhas. Não demorou muito e começaram os desentendimentos. Eu, com conhecidos no governo Enock Reis, conseguia passagens aéreas e vez ou outra estava embarcando para Santo André e a Eva sabia: era para me encontrar com a Ilca.

Foi no intervalo de uma dessas viagens, que ela tomou uma decisão que iria marcar as nossas vidas para sempre: quando regressei, ela tinha adotado uma criança e pedia para registrá-la como filho legítimo. Ainda atordoado, sem saber o porquê a levara a adotar o menino, fiz o seu registro e, mais por desatenção do que por vaidade, o registrei apenas com o meu sobrenome. Assim, passei a ser pai de Marcelo, Marcelo de Marqueiz, porque sempre achei que o “de” entre o nome e o sobrenome dá um ar de superioridade à pessoa, assim como o alemão usa o Von e o sueco o Mac.

Não sei como, mas acabei convencendo a Eva a voltar para Santo André. Lembro-me até hoje ela partindo com uma criança de apenas dois meses no colo. O avião, ao decolar rumo a São Paulo, pareceu-me levantar vôo levando um pouco a pureza e o verdadeiro amor – tanto o carnal como o maternal. Cheguei a chorar nesse dia, talvez por arrependimento, talvez por remorso. Fizera tudo para que ela abandonasse Manaus e me deixasse só, pronto para receber outra mulher – a Ilca que, para vir ao meu encontro, precisava ainda terminar o curso colegial e fazer um acerto com a empresa onde trabalhava. Era uma questão de meses, que envolvia as festas do final de ano de um homem só.

Ao voltar para casa, encontrei uma carta sob a mesa. Esta carta, que li amargurado, serviu depois para que eu me baseasse no meu primeiro livro, a novela Ilha Humana, que ficou em terceiro lugar em um concurso literário promovido pela Prefeitura de Manaus. Aproveitei cada parágrafo para escrever um capítulo, técnica que não soube explorar muito bem, talvez por falta de experiência em uma narrativa mais longa e minuciosa a exigir certa distância da pessoa envolvida. Essa carta merece ser divulgada na íntegra pelo seu sentimento de paixão, pela certeza de sua partida representar a perda do marido e a decretação de sua vida à solidão. Só que, agora, ela tinha alguém sempre ao seu lado. Tinha um menino, tinha um filho.

A carta:

Quando tu tinhas dezoito anos, conheci um rapaz bonito e inteligente e de boa família... Ele era muito simpático. Namoramos dois anos. Para mim, foram dois anos de alegria e satisfação, porque pela primeira vez eu me sentia amada por alguém. Casamos no dia dezessete de setembro. Foi uma cerimônia simples, apesar do meu nervosismo. Ele estava todo elegante de terno marrom. Fizemos uma pequena recepção em nossa própria casa. Logo depois, saímos para a nossa lua de mel, que, na verdade, só foi lua. De mel, eu não vi nada. Ele, muito cansado, dormiu no sofá da sala e eu tive que acordá-lo para que fosse dormir na cama. Foi aí que começaram as decepções. Eu, como toda moça, sonhava com a verdadeira noite de núpcias, com muito amor e felicidade.

Ficamos apenas quatro dias e voltamos para casa, olhamos os presentes, a casa, tudo novo e limpinho. Tive uma sensação maravilhosa, apesar dos fracassos anteriores. Logo que chegamos, ele saiu. Depois dessa vez, ele não parou mais em casa. Sempre com desculpas do seu trabalho, ele me enganava. Eu sofria minha solidão. Tinha vontade de passear, dançar, colocar para fora tudo que eu tinha sufocado dentro de mim. Mas era impossível, porque o seu egoísmo era demais. Enquanto ele vivia, dançava, cantava, amava, esquecia-se que lá, bem longe disso, existia uma mulher que desejava muito ser amada e que ele não se lembrava de amar.

Sempre sonhei com um homem carinhoso e que me amasse muito. Mas, como sempre, continuava sozinha e sem amor, e não tinha coragem de amar também... O medo de passar tudo novamente era imenso. Então, eu ficava ali, tentando fazer com que ele gostasse um pouco de mim, ou que pelo menos, ele deixasse que eu o amasse da minha maneira. Mas ele não me permitia nem isso. Talvez ele não tivesse culpa. As recordações de coisas tristes que aconteciam com a gente me atormentavam demais.

Ele tinha muitas mulheres. Nunca ficou só comigo. Cansava de uma e logo depois arrumava outra. Eu sabia de tudo. Agradeço a Deus não ter sabido de mais coisas Eu sofria muito. Ficava horas e horas na frente de uma televisão esperando que ele chegasse. Ás vezes, ele chegava uma hora da madrugada, quando não, mais tarde. E eu ali, firme. Mas morrendo de fome, cansada, com sono e terrivelmente deprimida. Porque eu sabia que vinha mais uma mentira. Às vezes, eu fazia que acreditava e às vezes eu não aguentava e então começavam as discussões. Ai acabava eu para um lado e ele para o outro, como sempre. Muitas vezes, ele chegava em casa, me olhava e me dizia palavrões, saia e, às vezes, ficava horas ou dias fora de casa e eu nunca fiquei sabendo porque ele fazia isso. Que ele não gostava de mim, eu sabia. Agora, não sei por que ele me humilhava tanto. Acho que meu único defeito era querer ser amada por ele.

Passaram-se cinco anos assim, lutando terrivelmente para conservar o nosso casamento e para que a minha família não soubesse de nada. Eu mentia e ele fazia na frente de todos. Eu era apenas uma coitada para os outros, aquela que era enganada, humilhada e desprezada pelo marido. Muitas vezes eu quis acabar com tudo, mas eu pensava no meu pai, na minha querida vovó, que me criou, e até na própria mãe dele que queria que a gente vivesse bem e que fossemos felizes. E nesse tempo eu só pensei nos outros e esqueci de pensar em mim.

Mas, agora que tudo terminou e depois de cinco anos de solidão, despertou em mim uma nova vontade de viver. Agora, eu tenho algo muito lindo e que precisa muito de mim. Eu preciso tornar a viver e esquecer tudo de mal que me fizeram para poder fazer de meu filho um grande homem e para ensiná-lo a amar e a ser amado. Não me importa mais o que os outros irão pensar ou dizer, eu quero apenas viver, viver como meu marido viveu nos meus longos anos de solidão.

OBS: se servir para alguma coisa, fique à vontade. Se não servir, guarde como recordação da única mulher que te amou e que talvez te ame para o resto da vida. Eu só quero que você seja feliz, para um dia fazer o nosso filho feliz... (continua no próximo capítulo).
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Na próxima quarta-feira, o décimo capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50. (Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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Juninho e Fabiana acertaram o resultado do jogo de ontem, terça-feira, Brasil 2 x Coreia do Norte 1 e vão receber uma camisa oficial da Seleção Brasileira de futebol. Juninho, que se encontra na África do Sul e Fabiana, aluna da Metodista de São Bernardo, já entraram em contato com o blog e vão receber, via sedex, os brindes, que já foram enviados hoje para suas residências.

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RESULTADOS DOS JOGOS DESTA QUARTA-FEIRA (16-06) PELA COPA DO MUNDO NA ÁFRICA DO SUL:
CHILE 1 HONDURAS 0
ESPANHA 0 X SUIÇA 1 (Esse resultado ninguém esperava)
ÁFRICA DO SUL 0 X URUGUAI
3
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