quarta-feira, 19 de maio de 2010


"Eu sempre perguntava dos cachorros e dos gatos – nossos filhos. É que gostava de alimentá-los, acariciá-los. Inclusive os abandonados, que vagueavam famintos pelas ruas, à procura de comida e água. Até hoje não consegui compreender por que as pessoas se livram dos animais como se fossem produtos descartáveis".
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Usei a precária experiência obtida com “O Nabo”, pequeno jornal que eu e meu amigo Paulo Pereira criamos e comecei a editar um jornalzinho para circular internamente na Brastemp, a fábrica de geladeiras e outros eletrodomésticos, que marcou o meu primeiro emprego com carteira assinada. Tinha 14 anos. O jornal – se é que aquelas quatro páginas tamanho ofício, mimeografas, poderiam ser chamadas de jornal – se resumia em contar boatos sobre os funcionários da empresa, de diretores a simples empregados.

Na época, estourou o movimento militar, que implantou a ditadura, com a derrubada do então presidente João Goulart. Na verdade, Jango, como era mais conhecido, se tornara presidente em decorrência da renúncia de Jânio Quadros, que alegara ser o seu gesto motivado por “forças ocultas”. Analistas políticos, no entanto, asseguram que ele desejava mesmo era um golpe populista, que o mantivesse no poder com mais regalias.

Aproveitando-se da fragilidade do novo presidente, com evidentes tendências socialistas, os militares implantaram a ditadura, responsável pela perseguição aberta de intelectuais, artistas e cidadãos comuns que se opunham à queda do regime democrático que, praticamente, não completara dez anos depois do suicídio de Getúlio Vargas, o outro presidente amado e odiado ao mesmo tempo pelo povo brasileiro.
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Jovem, adolescente influenciado por idéias revolucionárias, logo me coloquei contra o regime e passei a usar meu pequeno jornal interno para publicar artigos e opiniões contrários à revolução, que o cronista Stanislaw Ponte Preta, ironicamente, chamava de “redentora”. Num desses números, publiquei a crônica de um funcionário, homônimo do meu amigo Paulo Pereira, abordando as crianças abandonadas, que viviam mendigando nas ruas. No mesmo período, fui visto lendo um livro ironizando o regime comunista, mas o título era incriminador: como ser um bom comunista. Só esse título bastou para que funcionários do alto escalão ficassem sabendo de minhas tendências marxistas-leninistas e me entregassem para a chefia, exigindo minha demissão, como se a minha posição comprometesse o interesses da empresas com o governo.
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Perdia, assim, o meu primeiro emprego e me tornei um das primeiras vítimas da revolução. Logo arrumei colocação, desta vez como entregador de avisos, para uma instituição bancária em Santo André, onde morava. Foi uma época tranquila. Só que não deixei de escrever contra a revolução dos militares, jogando em suas costas toda a culpa da pobreza e das injustiças reinantes no país.

Á época, fazia o curso básico em um colégio localizado no centro da cidade e conheci Augusto Maciel, um jovem moreno, de porte físico avantajado, bastante ligado ao meio teatral. Precisava de um amigo, uma vez que o Paulo Pereira distanciava-se em razão de um namoro sério, que o conduziria ao matrimônio.
Com Augusto Maciel, fui deixando o bairro aos poucos e convivendo mais com o pessoal da cidade. Entre esses, Hildebrando Pafundi, outro jovem, só que oito anos mais velho que eu, este ligado ao jornalismo: fazia uma coluna social em um semanário local: a Folha do Povo.
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Sabendo do meu interesse por literatura e jornalismo, conseguiu espaço para minhas crônicas nesse jornal. Mais tarde, eu e o Hildebrando, passamos a fazer reportagens sobre personalidades literárias e chegamos a entrevistar escritores como Jorge Amado, Ligya Fagundes Telles, José Mauro de Vasconcelos. Ignácio de Loyola Brandão, em seu início de carreira e outros.
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Desta vez, talvez em razão de minhas crônicas discorrendo sobre a pobreza nas ruas centrais da cidade, acabei demitido, também, da agência bancária – essa se tornava a segunda perseguição por causa de minha ideologia. Fiquei sabendo depois que o gerente temia ser acusado de estar apoiando um subversivo... Eu, subversivo, com apenas 16 anos...

Meu terceiro emprego era para ter sido na fábrica onde Paulo Pereira trabalhava. Mas no mesmo dia em que começara, uma empresa de arames, não muito distante de casa, me chamara, oferecendo um salário equivalente. Preferi o perto de casa ao de perto do meu amigo, que continuava a se distanciar. No primeiro emprego, no entanto, conheci uma pessoa que muito me ajudou depois: Aderbal Cavalcanti que, sabendo do meu interesse por jornalismo, pediu para que eu me apresentasse a sua irmã Eulina Cavalcanti, editora do suplemento feminino e literário News Seller – o semanário mais prestigiado da região.

Eulina morava perto da fábrica do meu novo emprego. Apresentei-me uma tarde, em sua residência e ela pediu para que eu fizesse uma sugestão de reportagem.
Certo dia, lendo um jornal da capital paulista, fiquei sabendo da estada de Vinicius de Moraes em um hotel, na avenida Ipiranga, no centro da capital paulista. Mesmo sem ter contato com o poeta, me prontifiquei a Eulina a fazer uma entrevista. Nesse dia, ela não só autorizou a reportagem, como me cedeu um fotógrafo para a missão: Clovis Cranchi Sobrinho.

Era a senha para a entrada no mundo jornalístico. Escreveu, anos mais tarde, o diretor do jornal, Fausto Polesi, ao fazer a apresentação do meu livro Villas Boas e os Índios: "José Marqueiz, o autor deste livro-reportagem, descobriu pendores para o jornalismo quando era ainda garoto de seus 16, 17 anos. Na época, trabalhava como auxiliar de escritório na cidade onde morava, Santo André. E Santo André possuía o semanário News Seller, com circulação em toda a região do Grande ABC. Eu era diretor-fundador do jornal e cuidava da redação, recebendo visitas e colaborações de diversos candidatos a jornalistas. Certa vez, recebi a colaboração – reportagem-entrevista com Vinicius de Moraes – de alguém chamado José Marqueiz. Li, gostei e publiquei. A partir daí começou a carreira jornalística do nosso herói".

Sim. Deixava a vida na fábrica e iniciava meu trajeto pelo jornalismo, sem esquecer a literatura. E hoje, quase um século depois, fico pensando se eu e o Paulo tivéssemos uma visão empresarial seríamos precursores do lançamento de jornais de bairro e de empresas, se aprimorássemos os jornais como “O Nabo” e, eu na Brastemp, o jornal sobre os bastidores dos funcionários. Certamente, seríamos empresários bem-sucedidos e gozando de uma excelente condição econômica e financeira. Feliz ou infelizmente, levamos essas iniciativas como brincadeiras da juventude. E seguimos nossas vidas, cumprindo a sina já estabelecida antes mesmo do nosso nascimento, para usar das palavras de minha mãe, analfabeta e sábia.

Estava reagindo bem ao tratamento quimioterápico intensivo, embora nos primeiros dias tenha convivido com uma dor de cabeça ininterrupta. Os enfermeiros, depois de me aplicarem injeções e me fazerem engolir várias cápsulas, decidiram por apelar à equipe da Central da Dor. Numa das manhãs – todas as manhãs são iguais no quarto de um hospital – apareceu um médico dessa central e indicou uma mistura de três remédios, sendo um injetável e dois por via oral.
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Como por encanto, depois de quase cinco dias, minha cabeça parou de dor e pude, com mais tranquilidade, continuar com o tratamento e, ainda, dar os primeiros passos pelo corredor, tendo ao lado um acompanhante – geralmente uma visita amiga, um dos meus irmãos ou a dona Neide, contratada pela minha mulher para me fazer companhia à noite. Essa atitude ela tomou depois que, ao levantar-me para ir ao banheiro, senti tontura e cai ao chão. Não me machuquei, mas acabei por assustar o colega de quarto, que ocupava a cama ao lado, e a enfermeira que apareceu minutos depois. Era tontura, provocada por uma espécie de fraqueza e também pelos efeitos colaterais da medicação.
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Pela manhã, como sempre fazia, a Ilca apareceu para saber (e ver) como eu estava. Mesmo se eu estivesse com péssimo aspecto, ela me incentivava e dizia que eu me encontrava melhor e havia até rejuvenescido. Seu otimismo chegava a contagiar, se eu realmente acreditasse em suas palavras. Percebia o seu cansaço – depois de oito horas de serviço em um sindicato patronal, onde trabalhava como secretária da presidência, ela se deslocava para o hospital. Eu sempre perguntava dos cachorros e dos gatos – nossos filhos. É que gostava de alimentá-los, acariciá-los. Inclusive os abandonados, que vagueavam famintos pelas ruas, à procura de comida e água.

Até hoje não consegui compreender por que as pessoas se livram dos animais como se fossem produtos descartáveis. Um dia pensei em escrever sobre os cachorros que viviam em um canil. Comecei, mas não conclui. Estava saindo muito triste, cheio de histórias tristes. Deixei o material arquivado – talvez eu volte ainda a terminar esse projeto.
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Nessa manhã, a Ilca chegou dizendo que a Eva, minha primeira mulher, havia telefonado para saber do meu estado de saúde. A Ilca, como não podia deixar de ser, informou que minha saúde era de causar inveja e que eu estava ótimo, prestes a receber alta. Essa última afirmativa era verdadeira em parte, porque, minha alta seria de 21 dias. Teria que passar por mais quatro sessões de cinco a seis dias cada. Um longo e dolorido caminho a seguir.

Ao ficar sozinho, sem nenhuma companhia, comecei a me lembrar de quando conheci a Eva. Ela havia sido contratada para trabalhar como recepcionista no recém-lançado Diário do Grande ABC. Era uma jovem de 18 anos, cabelos negros, olhos castanhos, lábios carnudos e bastante simpática. Galanteador como sempre, elogiei a sua beleza e, ao saber que ela fumava, a presenteei com um maço de cigarros – era uma época em que não havia campanhas alertando que fumar causava mal à saúde. Fumar era um ato de elegância.

Quando encerrou o horário do expediente, me ofereci para acompanhá-la até o ponto de ônibus – naquela época, também, poucos eram os que tinham carro. Ela se fez de rogada, mas acabou aceitando, com uma ressalva: ela não iria para o ponto de ônibus, mas para a sua residência. Morava a poucos quarteirões da sede do jornal. No caminho, fiquei sabendo um pouco de sua vida. Seus pais eram separados. Ela fora criada pelos avós paternos e o seu irmão, Adão, pela mãe. O pai vivia amasiado com outra mulher e, da mãe, ela pouco tinha notícias.

Aos 18 anos, Eva alimentava um sonho comum a todas as mulheres: casar, ter uma casa só para ela, o marido e os filhos, e levar uma vida pacata. Nada mais. E quando eu lhe falei em namoro, ela foi categórica: só se fosse para casar. Eu, sabendo que não assumia mesmo nenhum compromisso mais sério, mas para garantir o namoro, fui categórico: é lógico que o meu namoro com ela era para terminar em casamento. E, realmente, dois anos após, eu me casaria com a Eva. Um casamento que iria durar pouco mais de cinco anos.
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Na próxima quarta-feira, o sexto capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. Nesta quinta-feira o texto final da crônica “Epístolas Paulianas”, escrita pelo professor João Paulo de Oliveira, não deixe de acompanhar. (Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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