segunda-feira, 10 de maio de 2010

E.S.P.E.C.I.A.L

O DIA EM QUE MORRI (I)

Esta série é dedicada à médica Liliana Diniz

Aviso: Não é ficção. Tudo que será contado foi real!

COMO TUDO COMEÇOU

Foi numa tarde de sábado, muito quente, em novembro do ano 2000. Eu tinha acabado de chegar em casa, voltando de um almoço com um dos meus filhos, o André. Fomos comer no famoso botequim Galinheiro, ali na Vila Madalena, que tem um dos melhores frangos grelhados da cidade. Geralmente não bebo, mas naquele dia de calor enxuguei com especial prazer uma bela cerveja espumante.

Coloquei o carro na garagem, estava fechando o portão, quando comecei a me sentir mal. Minha namorada chegou de carro, estacionou, e eu apenas disse: “fecha tudo e depois sobe” (minha casa é um sobrado). “Estou me sentindo mal e vou deitar”.

Era o infarto se instalando.

Nos primeiros sintomas achei que era uma indisposição estomacal e culpei a cerveja. Só que aí o bicho pegou! Passei a sentir tudo ao mesmo tempo: dor na barriga, nos músculos dos braços, cabeça, garganta, olhos, ânsia de vômito. E o pior: muita falta de ar. “Vou fazer um chá”, disse a namorada, prescrevendo uma pueril receita caseira. “Chá?” - questionei, com o natural mau-humor de quem está numa situação assim. Já tinha caído minha ficha. “Querida, estou tendo um infarto. Vamos para o hospital!”

Ela não acreditou e procurou minimizar. “Infarto? Você tá louco, magina...”

Aí vocês não vão acreditar. Vou fazer aqui, pela primeira vez, uma confidência íntima. Uma coisa que, por excesso de pudor, nunca contei a ninguém, nem aos médicos. Ela estava cheirosa, gostosa, deitou ao meu lado me acariciando e... não resisti. Transamos assim mesmo. Eu infartando e... transando. Acho que isso acelerou o coração, estimulou o sistema circulatório, dilatou as artérias, irrigou as células, sei lá, mas o fato é que por um momento esqueci completamente do infarto e fizemos amor como se nada de anormal estivesse acontecendo. Camuflou, digamos, a doença. Permitiu-me reagir, pela troca do desânimo pela excitação. Vejam que receita que é isso! A energia da vida! Cura tudo!

Tomamos um banho rápido, consultei o guia do plano de saúde, e tocamos para o hospital. Escolhi um tal de Hospital Iguatemi, cujo endereço era ali na área nobre da Av. 9 de julho, nos Jardins. Ela dirigindo e eu reclamando do mal-estar, principalmente quando passava em buracos. Cada buraco da rua fazia trepidar meu corpo de forma muito desagradável e aumentava o mal-estar. Já era começo da noite quando chegamos ao hospital e observamos que não havia movimento. Estava tudo vazio e quase escuro, só havia um vigia sonolento e entediado sob uma luz, no fundo de um corredor. Chamamos o cara enfiando o rosto numa porta de grades. Ele veio arrastando os pés, com má vontade. E informou que há mais de um ano o hospital havia se mudado para o quinto dos infernos, lá para os lados de Taboão da Serra, BR-116, algo assim. Longe pra caramba.

Quando a gente está na situação em que eu estava, passa a não ter cérebro. Não raciocina. Ela tinha que assumir o comando da situação, com energia, mas não fez isso. Deixou as decisões por minha conta. E nessa hora, desculpem a expressão, a gente só faz merda. Decidi voltar para casa. Pode? Poder não pode, mas foi assim, infelizmente.

Passei a noite enfartando, muito mal, e em casa. Poderia ter morrido, e isso só não aconteceu por uma razão orgânica que vou explicar em outro capítulo. Pedi para ela mudar de quarto, para não precisar me aturar. No meio da madrugada abria a janela e buscava ar, desesperadamente. Ligava e desligava a TV. Rolava na cama quente, só de cuecas, porque a sensação de falta de ar causa essa vontade de ficar pelado, parece que tudo abafa você. Com calor, pior ainda. Lá pelas tantas, não sei nem a que horas, exausto, adormeci.

Pela manhã, domingo, chegou meu sobrinho, que era piloto da Varig e estava de passagem por São Paulo. Quando contei, ligou na hora para minha sobrinha Roberta, irmã dele, que é médica anestesista em Porto Alegre. “O que esse cara está fazendo em casa?” questionou Roberta, furiosa. “Leva já o tio para o hospital!”, ordenou.

O detalhe é que amanheci bem melhor e achava que o pior já havia passado. Mais tranquilo, mas sendo pressionado por meu sobrinho, fomos para o Incor – Instituto do Coração, ali na Rebouças.

Tiram sangue, fazem três eletrocardiogramas, medem pressão, colocam termômetro no meu braço, medem isso, medem aquilo. Um carnaval danado, e eu ali, só olhando, na enfermaria do PS, cercado de dezenas de outros pacientes deitados em macas. Engulo um comprimido e poucos minutos depois já estou me sentindo zero bala, prontinho para voltar para casa, até pensando no baile daquela noite. Desço da maca e me colocam numa salinha. Ficamos lá esperando, eu, meu sobrinho e a namorada. De repente, entram três médicos, juntos. Três! Uma moça e dois rapazes, com seus aventais brancos e estetoscópios pendurados no pescoço. Caramba, pensei, a enfermaria está cheia de gente e eles vem falar comigo em comissão? Comecei a sentir o drama. Eles me olhavam sem disfarçar que estudavam o paciente, certamente buscando novos sinais da minha doença. Isso não me incomodou, pelo contrário, foi bom sentir o interesse deles.

“A notícia que eu tenho não é boa”, disse um deles, que parecia ser o chefe da equipe. “Infelizmente, seu caso é grave e vai ter que ficar internado”. “Não posso ir em casa pegar roupas e livros?”, perguntei, com aquela inocência idiota dos pacientes de primeira vez num hospital. “Você só sai daqui para outro hospital, em ambulância, e com médico ao lado”, respondeu o doutor.

Aí, gente, pela primeira vez em toda a história, eu finalmente entendi que estava ferrado.

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*Milton Saldanha é jornalista e escritor.
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Não percam amanhã, no segundo capítulo de O DIA EM QUE MORRI - O Hospital São Camilo e uma triste história.