quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

QUARTA-FEIRA, 29 DE DEZEMBRO DE 2010



Natal se aproxima. Enfeites. Luzes faiscantes. Papai Noel. Há prenúncio de chuva miúda. As pessoas se apressam nas ruas, buscam o agasalho dos prédios, proteção das paredes. Carregam presentes, pacotes coloridos. Sob a marquise do edifício comercial, acocorada no cimento úmido, está a mulher. Cobre-se com um velho cobertor encardido, esgarçado nas bordas. Em seu colo, a criança, raquítica, com os olhos captando o espanto da vida.
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A cena, com toque de tragédia, retrata a imagem da mãe que tenta proteger o filho. Lembra, também, um desenho surrealista de Nossa Senhora, talvez aprofundada em anos, com rugas, sofrendo seguidos acessos de tosse. A piedade parece distante, sufocada na indiferença dos transeuntes.
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O casal surge, de repente, desviando-se do lixo que se amontoa na calçada, onde pessoas-corvos disputam restos de comida. A moça se encanta com a primeira visão, chama o companheiro para a aventura de contemplar o mistério.
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- Venha, José.
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- Onde, Maria?
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- Aqui, logo, veja.
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- O quê?
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- A boneca, linda, diferente.
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- É mesmo?
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A mãe está entretida, distante da realidade. Com mãos trêmulas, embala o filho, esquecida das antigas canções de ninar. No chão, junto às pernas, aparece a boneca azulada. A boca levemente rasgada dá um toque de ironia ao rosto nostálgico.
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Maria se esquece do perigo que representa conversar com estranhos. Aproxima-se, afasta o medo. Respira profundamente antes de se pronunciar.
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- Encantadora. Fiquei apaixonada.
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Com gestos lentos, a mulher ergue a cabeça, deixa escapar um leve sorriso. A voz sai pausada.
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- Gostou da criança, madame?
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- Da boneca, minha senhora.
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- É de meu filho.
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- Sei. Em que loja foi comprada?
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- Eu mesma fiz, aprendi no terreiro da mãe Inácia, com os santos.
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- Maria morde os lábios, sente a agonia do desejo. Acaricia José.
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- Compre, meu bem.
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- A boneca?
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- Claro.
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- Para quê? Não temos filhos.
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- Eu guardo. Ainda chegarão.
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- Não sei. Melhor caminharmos, a chuva não tarda.
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- Eu quero.
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José cede aos encantos de Maria. Negocia a compra da boneca.
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- Quer vender?
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- A criança?
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- A boneca. Pago bem.
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A mulher tosse. Estuda a oferta.
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- Não é direito.
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- Quanto quer?
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- Vendo com uma condição.
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- Qual?
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- Se a criança for também. Jesus. É o nome. Ele e a boneca são inseparáveis.
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José estende as mãos, apanha a criança, entrega a boneca a Maria. Não há despedidas. Os rios de lágrimas secaram.
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No instante em que o jovem casal se afasta, a mulher se ergue, conta o dinheiro. Depois, avança em direção ao primeiro bar. Carrega a esperança de encontrar namorado disposto a fabricar um novo filho para ser vendido na esquina.
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*Guido Fidelis é jornalista, escritor e advogado
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