quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

DOIS GRAUS CENTÍGRADOS
Até domingo, tenho de matar 37 mil pessoas.
Está abafado, o suor brota na raiz dos cabelos, me inunda a testa, a nuca, o pescoço, não há como se habituar a esse maldito calor. Alguma dúvida? Nenhuma. Procedimento? O de sempre: chegada ao alvorecer, vias de fuga cercadas, não se deve deixar testemunha nem ter pena de ninguém, há sempre que vencer o impulso natural de querer se poupar as crianças. Certo? Certo.
– E o moral de seus homens, como está?
Hesito. O major Camilo curva-se um pouco para a frente, estreita os olhos, na leitura implacável de minhas reações. Estamos sempre sob avaliação.
– Em geral é bom, mas oscila – digo a verdade – O senhor sabe como é.
– Sei. Vou mandar um novo carregamento de Transformid.
Balanço a cabeça, em concordância. As malditas pílulas viciam, deixam os homens fora de si, enlouquecidos.
Passeio os olhos pela parede do QG forrado de mapas, num deles está circulado em vermelho o campo de refugiados a ser “apagado”, na nossa gíria. Noutros, estão assinalados alvos das demais unidades, em geral a média é de quatro incursões por mês para cada uma delas. A consumação de cada trabalho, mesmo com o nosso armamento moderno, exige horas e uma energia absurda. Armas bacteriológicas seriam mais discretas, mas seus efeitos poderiam se voltar contra nós. Bato continência, peço licença para me retirar. Quando estou saindo, o major grita:
– Ah sim, capitão, nem preciso dizer, a tropa vai ganhar uma remuneração extra por esse trabalho.
– Obrigado, major.
Pego o jipe elétrico, dirijo-me para o aquartelamento da UL Zeta, que comando. Todas as Unidades de Limpeza foram batizadas com uma letra do alfabeto grego, como Beta, Alfa, Gama, Delta e por aí vai. Alguns homens limpam armas no alpendre, outros jogam basquete na quadra de esportes, outros mais levantam pesos à sombra de uma árvore, são maneiras que têm de descarregar o estresse; eles detêm-se um momento ao me ver chegar, sabem que fui receber ordens, o que significa ação imediata. Matar, destruir, vira uma cachaça, uma necessidade, tem um componente quase orgástico; quando você arranca sangue, quer ver mais, sempre mais, alguns parecem não poder mais viver sem isso, o componente sádico muito forte dentro de nós. O problema é que a maioria, passada a orgia, entra em depressão, tem pesadelos à noite, todas as unidades registram elevado índice de suicídios.
Vou direto para o meu PC, desabo na poltrona, abro a blusa de brim, ligo o ventilador. Pego na caixa um lenço de papel, me ponho a limpar os óculos rayban.

Mundo filho da puta. A culpa de tudo é a insaciável voracidade de nossa espécie: o leão, uma vez alimentado, deixa os restos da presa para o chacal; o homem não, quer mais, mais e mais, nunca se sacia. Sempre foi assim. Os políticos, que tanto desprezamos, sempre fizeram o jogo que no fundo queremos, daí vem a força que têm. E foi por isso que as tentativas, há pouco mais de trinta anos, de um acordo para deter o aquecimento global fracassaram. Ninguém, países desenvolvidos, em desenvolvimento, subdesenvolvidos, queria abrir mão de nada. Para fazer pasto para o gado, derrubaram-se florestas; e alguém desistiu de seus automóveis? Do consumo sem limites, como se as matérias primas fossem inesgotáveis? Como se a terra espoliada pudesse se renovar eternamente? Chaminés significam empregos, alegava-se; e quem não quer progresso? E mudar uma economia baseada em combustíveis fósseis seria contrariar poderosos interesses estabelecidos, seria mudar o eixo do poder. E assim, toneladas de CO2 continuaram a ser jogadas na atmosfera, resultando em mais aquecimento, num processo já quase irreversível.
Vozes alertavam contra a insensatez, aqui, acolá; mas um bloco de gelo se desprendendo no Ártico, a milhares de quilômetros, parece um acontecimento remoto demais para perturbar o nosso cotidiano, para nos fazer crer em sua realidade, para nos obrigar a levantar da cadeira e tomar uma atitude. Verdade, os cientistas sempre souberam, o aquecimento da Terra é um acontecimento natural, cíclico, ao qual se sucede um resfriamento, alguns calculam que aconteça a cada vinte mil, 25 mil anos: a contribuição deletéria do homem na verdade não significa mais do que dois ou três graus no aumento da temperatura média do globo. Mas esses dois graus foram exatamente a gota que fez o copo transbordar, com a elevação dos mares e as catástrofes que daí decorreram. Pobre Havaí, pobre Holanda, pobre Indonésia.
Passo um lenço pela cara, pelo pescoço, bebo um copo de água gelada. Não estou com pressa de convocar os tenentes e sargentos, essa gente toda tão bem treinada e na expectativa aguda das novas ordens, homens escolhidos a dedo. Primeiro, preciso me recuperar desse cansaço que me esmaga. Quando chamá-los, preciso estar feroz e determinado, o maior erro de um comandante é demonstrar qualquer hesitação. A verdade é que tudo foi previsto. O que não se esperava é que acontecesse tão depressa.

Hoje aquele primeiro grande massacre, o de setembro de 2042, já foi assimilado, tornou-se um mero fato histórico, como a batalha de Salamina, a bomba de Hiroshima, o atentado a Nova York de setembro de 2001, poucos se lembram agora da comoção mundial que provocou, embora a grande maioria tratasse logo de buscar os argumentos que o justificavam. Desesperados pela fome e a sede, centenas de milhares de africanos, que haviam visto seus rios secarem, seus animais e colheitas morrerem na savana esturricada, como se à voz de um comando invisível, embarcaram num enxame de embarcações de todos os tamanhos e feitios em direção à Europa, encheram com elas o Mediterrâneo, que alguns órgãos de comunicação, com humor macabro, chamariam depois de Mar Vermelho. Cientes da catástrofe que se abateria sobre si, impotentes para impedir a enxurrada de miséria que se aproximava, as marinhas da França, Espanha, Itália e Portugal, numa ação conjunta, mandaram suas corvetas e fragatas varrerem para longe, para o fundo, para o inferno, aquela turba escura e esquálida, abafando seus gritos e seu espanto com a voz forte dos canhões e metralhadoras. E apenas podíamos então pressentir que aquela seria a primeira mortandade na série que se seguiria. Àquela altura, o nível dos oceanos não cessava de subir, engolindo em pouco tempo boa parte do Rio, Nova York, Xangai, Hong Kong, Marselha, Liverpool e outras centenas de metrópoles litorâneas, fazendo de Veneza um mito comparável ao da Atlântida. O Ártico encolheu na forma de um pequeno solidéu branco, países ilhéus do Pacífico sumiram do mapa, o Ceilão virou uma ilhota. Enquanto grandes porções do planeta convertiam-se num braseiro, outras, como a Inglaterra, congelavam por causa do desvio das correntes marítimas que amenizavam o clima.
Com a produção agrícola e toda a economia mundial em colapso, multidões de refugiados climáticos vagavam de um lado para o outro, buscando uma quase impossível sobrevivência em meio à grande fome. Foi então que os países maiores fizeram aquele grande pacto secreto e foram criadas as unidades militares de extermínio. Não havia alternativa. A esterilização em massa não resolvia o problema da superpopulação, seus efeitos, muito demorados, serviam quando muito para travar o índice de crescimento populacional, nada mais que isso; e havia gente demais no planeta e comida de menos; chegou-se então à decisão fatal: para que um núcleo humano, afinal de contas, sejamos francos, a elite da humanidade, sobrevivesse, era preciso acabar o quanto antes com os excedentes, com aquelas multidões subnutridas empilhadas em acampamentos da periferia, que geravam doenças de toda espécie e eram uma ameaça o tempo todo de distúrbios, saques e invasões. E a escolha era uma só, lógica, imperativa até: o extermínio dos mais fracos, mais ignorantes, mais desprotegidos – os menos aptos.
Olho o relógio, depositado sobre o tampo da mesa. Um militar bem formado não discute ordens, cumpre-as. Vou chamar meu pessoal, repassar as instruções. É preciso não amolecer, não sentir pena, ressaltou o major. O novo alvo está estabelecido, a data também: o próximo ataque ocorrerá dentro de 48 horas, num réveillon em que fogos e gritos não serão de deleite. O pior são os gritos: atravessam as bolas de cera que entopem nossos ouvidos, continuam a ecoar depois de tudo terminado; por causa deles, muitos soldados preferem ouvir rock pesado enquanto trabalham. Depois, escavadeiras abrirão covas coletivas, tratores empurrarão os resíduos para dentro delas. Extenuados, embarcaremos em nossos helicópteros, regressaremos em silêncio para o quartel como zumbis, sacudidos por tremores, cada qual dono de suas próprias visões, à espera da próxima missão. Não fui eu que moldei este mundo. Ele não é o mundo que desejei para meus filhos. Mas que alternativa tenho eu?
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*Rubem Mauro Machado é jornalista e escritor, radicado no Rio. Com "A idade da paixão", historia de formação ambientada nas pensões da Porto Alegre de 1961 (Editora José Olympio), ganhou o Prêmio Jabuti de melhor romance nacional de 1986. Reescrito pelo autor, o livro foi relançado pela Editora Bertrand em 2006, em edição comemorativa dos vinte anos do prêmio. Seu romance "Lobos" (Record), de 1997, retrata a vida nas redações e nos quartéis nos Anos de Chumbo da ditadura militar e acaba de ser lançado na Itália com o titulo Lupi. "O executante" (Record) reúne três histórias de suspense e ação, ambientadas no Rio de Janeiro. Alguns de seus contos estão traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. É autor ainda, entre outros títulos, de "Jacarés ao sol" (Ed. Ática, contos) e "Não acreditem em mim" ­- Memórias dos Anos Dourados (Ed. Saraiva), este voltado para o público juvenil.
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