quinta-feira, 28 de maio de 2009

POBRE É QUE SABE LEVAR VIDA GOSTOSA...

Edward de Souza
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E A MUDANÇA DE POBRE, QUE DELÍCIA...
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Quem foi gerado em fecundo ventre e veio transitar no Planeta Terra é vencedor e recebeu a dádiva da vida, é merecedor dos sabores da existência. Entretanto, o terrestre que não é pobre é um ser incompleto, infeliz. Vive-se bem apenas o pobre. Somente o pobre curte, aproveita, suga a vida plenamente. Com certeza, só o pobre desfruta de alguns prazeres terrenos. Coisa maravilhosa, por exemplo, é, num dia chuvoso, depois do trabalho, esperar o ônibus no ponto de parada durante uns quarenta minutos. Quando o lotação chega é um grande alívio, uma satisfação, uma alegria. Se estiver realmente lotado de passageiros, o calor humano é imediato, intenso. Os cheiros se misturam, os odores se homogeneízam. Todos compartilham catingas (chulé, cecê e puns). E é fofoca, conversa fiada, todo mundo reparando todos. Fazem-se amizades e vira festa. Só o pobre tem também o ultra-prazer orgásmico de liquidar a última de um carnê de 36 prestações referentes à compra de um tanquinho de lavar roupas adquirido na promoção das Casas Bahia (tomara que o Samuel Klein não me processe). As notinhas vão todas amassadas e apertadas na mão e o dinheiro enfiado na meia para evitar ser roubado. Para comemorar a quitação do bem, nada melhor que comer um pastel com caldo de cana ou refrigerante. É a realização de um sonho, uma vitória, conquistada com dignidade e esmero.
O pobre vive mais. Aproveita mais a vida. Diferentemente do rico, o pobre precisa aproveitar mais a coisa, mastigar até secar o bagaço. É aí que se encontram as grandes nuances do sabor. É só o pobre que chupa a manga até branquear o caroço, que detona a melancia até na parte dura, que desperdiça da laranja só as cascas e as sementes, que come o vento do pastel, que devora os talos da couve, que amacia o lombo-grosso com limão, que planta mandioca no quintal, que faz doce de limão china, que vai assobiando para o trabalho de bicicleta, que sabe esquentar a marmita com um pouquinho de álcool que carrega na garupa da bicicleta a melancia comprada na promoção do varejão, que fica sem comer o dia inteiro só para encher a pança, à noite, na festa do primo rico, que fica o dia inteiro pescando no “corgo” e explode de alegria quando vai para casa levando os lambarizinhos e os pacuzinhos de mistura. Ser pobre é bom demais. Quer coisa mais sublime que mudança de pobre? É simplesmente sensacional. Para começar, o transporte é feito com veículo da carroceria aberta. Tudo fica à mostra: os penicos, o pano rasgado do colchão, a estrado das camas amarrados com arame, as gaiolas dos passarinhos, o vaso com cheiro-verde plantado, o outro vaso com o comigo-ninguém-pode, a bandeira dos Santos Reis e tudo de mais atraente e exótico. A bandeira do Corinthians amarrotada não pode faltar. Sempre vai amarrada na parte de trás do caminhão ou carroça, pra todo mundo ver.
As roupas da casa são acondicionadas em grandes trouxas e vão amarradas entre a geladeira, o fogão e o armário azul-calcinha da cozinha. As panelas amassadas, a frigideira empenada, os pratos de esmalte branco e os copos aproveitados de requeijão vão amarrados num saco com jornais velhos para não quebrarem.
Os chapas, carregadores de coisas, são os próprios compadres da Dona da mudança. Vão a troco da pinga e do pão com salame e torresmo. O bravo é agüentar o bafo, mas tudo bem, eles carregam tudo direitinho e não deixam os móveis se arranharem. Até ajudam a montar as camas e os pés da geladeira.Quando os cômodos estão vazios e o quintal limpo (levam até os chuchus pequenininhos), o caminhão fica lotado na porta do barracão, é até bonito, parecendo uma pirâmide de tranqueiras e badulacas. Vale à pena tirar uma foto e mandar para o Guinnes’ book, pois é tanta coiseira velha reunida num só lugar que bate recorde. De tão brega, parece chique.
Os ex-vizinhos são uns bobos e curiosos. Ficam olhando para o caminhão, na esperança de esquecerem algo no passeio. As velhas da redondeza ficam nas janelas e nas muretas espiando, proseando e bisbilhotando. O cachorro, o Rex, coitado, vai amarrado num pau da cama, meio enforcado, apertado entre os tamboretes e o bujão de gás. É o que mais sofre. Da carroceria do caminhão fica dando a última olhada para o já saudoso lar. Algumas furtivas lágrimas caninas saem oprimidas de seus tristes olhinhos. O motor é ligado, o veículo começa a sair aos poucos e o Rex vai latindo e uivando pelas ruas do bairro. Na porta do outro barraco, quando a família chega com a mudança, os novos vizinhos se aglomeram na rua e a fofoca corre solta: Credo! É pobre também. Olha que móveis mais feios! Olha o colchão então! Nesse meio tempo, muita coisa foi perdida pelo caminho, como algumas panelas e alguns pés de mobília. O Rex fica vagando no novo quintal, meio perdido, sem o cheirinho conhecido do habitat anterior. Dá uma tristeza...
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*Edward de Souza é Jornalista e radialista. Trabalhou nos jornais, Correio Metropolitano, Folha Metropolitana, Diário do Grande ABC e O Repórter, da Região do ABC Paulista. Em São Paulo, na Folha da Tarde, Gazeta Esportiva, Sucursal de "O Globo", Diário Popular e Notícias Populares, entre outros. Atuou nas Rádios: Difusora de Franca, Brasiliense de Ribeirão Preto, Rádio Emissora ABC, Diário do Grande ABC, Clube de Santo André, Excelsior, Jovem Pan, Record, Globo - CBN e TV Globo de São Paulo. Participou de diversas antologias de contos e ensaios. Assina atualmente uma coluna no Jornal Comércio da Franca, um dos mais tradicionais do interior de São Paulo.
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