domingo, 1 de agosto de 2010


ENQUANTO DORMEM

AS CRIANÇAS



A tormenta se desenha no céu: faiscar de relâmpagos. Chicotes de fogo, semelhantes ao piscar incessante de luzes fantasmagóricas, iluminam com rastros afogueados e aterradores a densa camada de nuvens cinzentas que se aproxima. Potentes trovões ribombam, revelam a manifestação ruidosa da fúria da natureza. Sinal de alerta máxima: chuvarada forte, tempestade e ventos avassaladores, perigo de inundações em diversos pontos da cidade, graves consequências para a população das áreas de risco.

Transeuntes se apressam, cruzam as vias com passos rápidos, buscam o refúgio de abrigos seguros ou aguardam conduções lotadas que chegam com atraso aos pontos, engarrafadas no trânsito caótico. Moradores de rua e drogados zanzam de um lado para outro, sem destino, olhares perdidos no horizonte, à espera de um milagre que não se realiza.

Ouve-se, não muito longe, o insistente latido de um cão. Talvez esteja faminto, abandonado pelo dono. Ou mesmo ladrando para alertar sobre a presença de intrusos prestes a invadir uma propriedade. Cachorros são guardiões fiéis, atacam desconhecidos. E são muitos os que se aproveitam do pânico e do desespero que assolam os moradores diante da iminência de um temporal para roubar.

Dois meninos, irmãos de 7 e 8 anos, estão alojados na casa simples, erguida com blocos e madeira, coberta com telhas de amianto. A residência modesta se localiza num bairro da periferia desprovido de benfeitorias. A rua onde se situa o imóvel é esburacada, escura, com entulho e lixo esparramados nas imediações.

No aposento minúsculo, de paredes desbotadas, com manchas de insetos esmagados, os dois estão amarrados nas camas, impossibilitados de tentar uma desesperada fuga. As bocas foram amordaçadas para evitar gritos. Os únicos móveis são as camas velhas, além dos colchões encardidos, cheirando a mofo. A janela fechada está protegida por enorme cadeado. As crianças mais parecem desmaiadas que adormecidas após exaustivo dia de terror. O sono não é tranquilo, percebe-se agitação. As fisionomias revelam cansaço e medo. A propriedade, locada em nome de um laranja, fora um achado do Comando para servir de base e esconderijo.

Os sequestradores, três deles, estão na sala, inquietos, diante de uma garrafa de bebida. Parecem tensos, mantêm as armas junto aos corpos, dispostos a qualquer tipo de violência. São pistolas de grosso calibre, com balas explosivas, contrabandeadas por um fornecedor de confiança. O mais jovem, magrelo, aparenta vinte e poucos anos. Tem estatura mediana, braços cobertos por enigmáticas tatuagens e indecifráveis inscrições cabalísticas, usa um boné escuro. Súbito, ergue-se, caminha em círculos, coça a orelha, dirige-se ao mais velho do grupo. A voz é estridente:

- E aí, mano? Tô aqui neste mocó do fim do mundo, chumbado, sinto falta de uma cheirada. Quanto tempo de espera? Os nervos começam a mexer comigo, ta pegando mal.

O homem que parece ser o chefe tamborila com os dedos na mesa, franze o cenho e se levanta da cadeira vagarosamente. O porte é atlético, ele é alto, mais de um metro e oitenta. Possui cabelos ralos, barba por fazer, desleixada. Conhece a rudeza dos presídios, cumpriu condenação por assalto e tentativa de homicídio, mas foi beneficiado com a progressão das penas e escafedeu-se da penitenciária na primeira oportunidade. Esboça um sorriso:

- Calma, Biriba, apague o pavio, ele é curto, você parece doidão.

- Sei não, sei não, Cunha, tô com o pensamento confuso, tem alguma coisa errada, mau pressentimento, um bicho martela aqui na cabeça. Ouço vozes, confusão, coisas de mau agouro. Preciso mandar fechar o corpo, lavar o esqueleto com sal grosso, oferecer presentes pros santos. Tô em dívida, Pai Preto mandou e eu não fui.

Chapéu, o terceiro homem, mais velho, cabelos grisalhos, rosto impassível e duro, barriga saliente, fugitivo da penitenciária onde cumpria pena por estupro, intervém, gesticula com os braços peludos:

- Também estou ansioso, com frio na barriga, as horas passam, vem tempestade por aí. Detesto temporal e é chato ficar parado, ter de esperar. Gosto mesmo é de ação, movimento, assalto é mais emocionante. Pimba, passe pra cá, otário, a casa caiu. Divertido, o cara amolece, derrete feito sorvete, entrega o que tem. Embolso a grana, cartão de crédito, anéis, celular, todo o bagulho, liquido a fatura, fim de papo

Cunha acalma os companheiros

- Devagar, gente, disse e repito. Vamos pra cabeça, é só o começo, manos. Mas é galinha morta, bolada firme, na mão, pra encher os olhos. O negócio terminou, o pai das crianças concordou em pagar oitocentos mil. Foi o máximo que deu pra conseguir, mas ta de bom tamanho.

- É pouco, merreca, quanto vai sobrar? Temos de dividir com o Comando, a ordem veio do presídio, a logística, as dicas para pegar os meninos na saída da escola.

A ação de captura das crianças fora rápida e eficiente. Surpreendidas enquanto aguardavam a chegada da mãe, foram arrastadas e colocadas no banco traseiro do veículo, ameaçadas caso gritassem. Depois, os sequestradores trocaram de carro e as levaram ao cativeiro. Os contatos foram feitos com o pai dos meninos e resultaram em entendimento. Os dois seriam libertados após o recebimento do resgate exigido. Se ele chamasse a polícia as crianças seriam mortas.

- E a minha situação, mano? – indaga Biriba. Trabalhei pro cara, segurei a barra, aturei desaforos, fui funcionário dele pra checar as informações, espreitei, descobri que ele guarda bufunfa no cofre. Tive de engolir desaforos, segurei os pontos pra não mandar o idiota pro inferno. Tudo bem, tudo bem. Agora pergunto: e se eu for reconhecido pelos garotinhos que estão lá em cima? Claro, quem se ferra sou eu. Nunca fui pego, meu. Prefiro morrer a me entregar. E garanto: não vou sozinho.

- Você tava de capuz, mano. Qual é o galho? Foi tudo beleza, numa boa, ganhamos, eles perderam.

- Os meninos são espertos. Será que se ligaram na minha voz? Vejo um negócio estranho nos olhos deles, parece coisa de bruxaria.

- É só ideia maluca, mano. Lembre-se: pedimos dois milhões, oitocentos mil foi a quantia que ele pode arranjar, que tinha disponível, prazo curto, certo? Não se pode bobear, deixar o cavalo fugir. Às vezes é pegar ou largar. Se ele fosse sacar no banco, tomar empréstimo ou vender bagulho pra levantar capital podia complicar, sabe como é. Não vale a pena dar moleza pra polícia.

- Certo, então podemos ficar com os moleques, mudar de cativeiro, pedir mais, damos um tempinho maior. Se o velho resistir a gente envia de presente uma orelha ou um dedo como aviso. O cara se intimida, borra as calças e se vira. Depois a gente embolsa e dá um chega pra lá, dá um sumiço nos dois, joga na represa, põe no microondas, é mais seguro, apaga tudo, não deixa vestígio.

As luzes piscam, a tempestade se aproxima rapidamente, as primeiras gotas martelam no telhado, parecem pedras arrebentando a cobertura.

O chefe procura conversa com os comparsas, fala sobre o final da operação:

- Negócio seguinte, manos. Negão tá de campana, o pai das crianças vai deixar a pasta na Marginal, num ponto escolhido. Sozinho, sem ser seguido, cumpre o trato, larga a encomenda e dá o fora. Se negar fogo, tchau, as crianças dormem para sempre. Negão apanha a carga em segurança e traz pra cá. Logo mais ele telefona. Tá na hora. Diabo, a chuva vai engrossar.
Aguaceiro, raios, rajadas de vento. Galhos se partem, árvores caem, telhas voam, a enxurrada se avoluma, ruas ficam interditadas, águas lamacentas sobem de nível, transformam-se em riachos de forte correnteza. O lixo arrastado bóia ao lado de móveis velhos, travesseiros, utensílios domésticos..

Negão está feliz, apesar do transtorno. Após conferir, verificar de longe, aproximou-se para recolher a mercadoria. De posse da maleta contendo o dinheiro pago para que as vítimas sejam libertadas, acelera a moto expropriada de um motoqueiro durante assalto. Embora não seja a máquina de seus sonhos, quebra o galho. Terminada a missão será abandonada. Ele telefonou para informar aos companheiros que a grana estava a caminho. Podia festejar numa boa, arrumar umas minas e cair na farra. Curtição, o mundo que se danasse.

Súbito, zunido, buzina, freada brusca, barulho de colisão. O carro emparelhado desliza na lâmina de água e bate na moto. Negão voa, parece avião caindo, despenca na avenida, o corpo rola muitos metros, o nariz sangra, os dentes estão quebrados. Respira com dificuldade, a dor é insuportável. Não consegue se levantar, a perna está fraturada, fratura exposta. O resgate demora, ele se contorce, a maleta escapou da mão, está ao lado, aberta. Uma viatura policial estaciona, conseguiu furar o bloqueio das vias interditadas, invadidas pela inundação.

Na casa, os bandidos se impacientam, estranham o atraso. Negão não telefonou novamente, podia dar uma explicação. O chefe também se irrita:

- É a maldita chuva, o trânsito, fiquem frios. De qualquer modo não dá para sair, a coisa tá preta, o estrago tá feito. Negão não é de embromar, é cabra de confiança, chega logo. O celular deve estar fora do ar.

O resgate demora, os policiais cercam Negão, desconfiam do dinheiro. Iniciam ali mesmo o interrogatório. Negão se complica, não consegue explicar a origem. Os militares pressionam, exigem respostas imediatas. Pelo rádio, solicitam informações do suspeito. Descobrem que a folha pregressa do homem registra três condenações por roubo e assalto a mão armada.

Sem opção e sob ameaça dos policiais, não resiste. À espera de socorro, com fortes dores pelo corpo todo, quer ser levado a um hospital. Desaba, abre o bico, dá com a língua nos dentes, delata toda a operação e informa a localização do cativeiro.

Alertadas, várias viaturas rumam para o local indicado. Agentes treinados cercam a moradia, ordenam a rendição imediata, gritam para que joguem as armas e se entreguem. Diante da recusa, iniciam a invasão. Os criminosos abrem fogo, atiram a esmo, no escuro, guerra de tiros, fogo cruzado. Um policial é atingido, cai de costas no chão, ensanguentado. Dois bandidos agonizam. Biriba, mesmo com ferimento no braço, consegue escapar, esgueira-se entre o matagal e desaparece na noite.

A polícia, finalmente, domina a situação, entra na residência, vasculha os cômodos. No quarto, as crianças permanecem adormecidas. Um filete de sangue escorre pela cama.

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*GUIDO FIDELIS é jornalista, escritor e advogado
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