quarta-feira, 21 de abril de 2010

UMA SÉRIE INÉDITA ESCRITA POR JOSÉ MARQUEIZ - PRÊMIO ESSO DE JORNALISMO


DEPOIMENTO SOBRE MARQUEIZ
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SONIA NABARRETE- JORNALISTA

"Com talento, Marqueiz transformava linhas mal redigidas em textos irretocáveis".

Uma vez, em um baile, admirei um homem que era disputado quase a tapa pelas damas. Ele dançava divinamente e as mulheres se sentiam privilegiadas em compartilhar com ele alguns rodopios pelo salão. Quis saber o que o fazia tão especial e ele me disse: “Para mim, dançar é um prazer, uma coisa que faço brincando”.
Depois disso, comecei a reparar que pessoas realmente boas no que fazem executam suas tarefas como se fosse uma deliciosa brincadeira. Não é responsabilidade, é diversão. Para José Marqueiz, a grande brincadeira era escrever. Algo que ele fazia com a naturalidade de quem respira. Uma prova disso é que, como passatempo, gostava de reescrever textos mal escritos que lia em alguns jornais. Com talento, transformava linhas mal redigidas em textos irretocáveis. Era um copydesk e tanto.
Conheci Marqueiz antes mesmo de me tornar jornalista. Eu fazia o cursinho pré-vestibular e uma amiga, que era secretária em uma revista, me apresentou dois colaboradores da publicação. Eram Marqueiz e seu inseparável companheiro Hildebrando Pafundi. Naquele momento, nasceu uma amizade que durou toda a vida e que só me fez bem. Com Marqueiz, aprendi não só lições de jornalismo, mas de vida.
Eu me sinto privilegiada por ter convivido com esse grande profissional e ser humano singular, que na montanha russa da vida nunca perdeu a paixão de viver.
Não me admira que num momento de dor e reflexão, quando enfrentava a recidiva do câncer, ele tenha decidido escrever. Deve ter sido muito difícil enfrentar a doença, quando desfrutava a serenidade pós-muito álcool e o amor verdadeiro ao lado de Ilca.
Conhecer seus sentimentos em uma situação tão dolorosa se contrapõe às lembranças dos momentos de tanta alegria que compartilhamos. Mas é também uma forma de conhecer um pouco mais desse grande amigo que, por meio do seu texto, continua presente.
Ilca, obrigada pela generosidade em tornar público esse relato do Marqueiz.
SEGUNDO CAPÍTULO
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Quando vi a Ilca, aquela menina de pouco mais de dezoito anos, cabelos longos e dourados, olhos grandes, lábios sensuais - que mais tarde iria descrever como de anjo -, não resisti e tentei conquistá-la.
Como uma borboleta, ela voava de flor em flor, abraçava e beijava os colegas próximos, sem compromisso, iludindo a todos com a possibilidade de uma chance, espontânea, livre...


A Medicina sempre procura mais conforto para o ser humano. Uma iniciativa simples, mas de grande utilidade, estou conhecendo antes das sessões de quimioterapia. Como serão necessárias várias ampolas de medicamentos, e para que, a cada mudança, seja feita uma nova perfuração nas veias dos braços, o paciente agora recebe um cateter no peito, e que servirá para abrigar a todas as incubações durante os trinta dias em que ficarei nesta enfermaria.

Quem cuida dessa pequena implementação cirúrgica é um jovem médico, supervisionado por uma veterana cardiovascular, bem humorada. Ao ouvir o seu companheiro dizer que pretende aproveitar os próximos feriados – é dia em que se comemorara a fundação da cidade de São Paulo e será prolongado, por ser uma quinta-feira – para festejar o seu primeiro aniversário de casamento. Sem ambição, ou sem dinheiro, não sei, ele revela que pretende passar esses dias de folga com a mulher em uma cidade do interior paulista, famosa pelas suas águas medicinais.

Ela o induz a voar mais longe e sugere Portugal, Itália e França – com destaque para o primeiro e o último. Mesmo antes dele se mostrar interessado ela passa a discorrer sobre as belezas desses países europeus. E ao falar desses locais, lembro-me de quando, aos 25 anos de idade, ganhei um prêmio de jornalismo com direito a fazer essa viagem. Foi um sonho de adolescente que realizava ainda jovem. Sozinho, com pouco mais de duzentos dólares no bolso, embarquei de avião para Lisboa. Nessa capital, andei a pé, da cidade alta à cidade baixa. Passei pelo Tejo, de onde os livros escolares de história diziam ter partido as caravelas que descobriram o Brasil.
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Encontrei uma Lisboa com aparência de abandono, com muros e fachadas de prédios pichadas, muita gente desempregada. É que neste ano – 1975 – os portugueses comemoravam o primeiro aniversário da vitoriosa Revolução dos Cravos, que culminara com fim da ditadura de quase meio século no país. Com apoio dos militares, Portugal usufruía das liberdades de um novo regime político e procurava encontrar o rumo do desenvolvimento em comum acordo com outros países europeus.
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No dia seguinte pegava um trem com destino a Paris – queria conhecer o cemitério de Montparnasse, onde estava enterrado Guy de Maupassant e outros escritores franceses, como Gustave Flaubert, Anatole France, Émile Zola...
Sabendo apenas poucas palavras em francês, desci na estação ferroviária de Auterlitz e peguei um táxi: queria ir até a rua de Plantes, onde sabia morava o muralista Emeric Marcier, naturalizado brasileiro. O motorista de táxi corrigiu de imediato a minha pronúncia. Não era rue de Plântes e, sim, rue de Plantê...


Levava para o muralista alguns números da revista Visão, que trazia na capa a foto dele, anunciando uma reportagem que eu havia feito sobre os murais pintados por ele em uma pequena capela em Mauá, cidade do ABC Paulista. Como era noite, calculei que ele iria me convidar para pernoitar em seu apartamento. Decepção. Ao me ver, pegou as revistas e sequer me convidou para entrar. Despediu-se na porta, alegando que tinha companhia e, como consolo, me deu um guia de Paris.

Andei à noite por Paris como que perdido e, de vez em quando, parava em um bar e tomava conhaque, solicitado no balcão por meio de sinais. O mesmo meio que utilizei, em um restaurante simples, para comer. Cheguei, vi um casal saboreando um prato com frango ao molho, e apontei para o garçom, querendo dizer que eu desejava um prato igual.
A ideia deu certo e, nos dias seguintes em que permaneci em Paris, usei e abusei da mímica, inclusive para ir ao banheiro – muitos desses, ficam na esquina dos quarteirões, para uso público.
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Enfim, pensei, uma cidade que entendia das necessidades fisiológicas do ser humano. E, ao contrário do tão propalado mau humor francês com relação aos turistas, considerei os moradores de Paris bastante educados e solícitos. Talvez, ou certamente, por sentirem-se condoídos de minha situação – um latino-americano perdido em Paris, e expressando-se apenas em português. Foi uma viagem rápida, entre Lisboa e Paris. Menos de uma semana depois, regressava para São Paulo, mais precisamente para Santo André, onde a primeira coisa que fiz foi ir ao encontro da Ilca – o novo amor que nascia em mim.

A Ilca – com a quem convivo há mais de 32 anos – surgiu como apenas uma das minhas várias conquistas amorosas. Tanto que, no dia em que a encontrei, numa praça, duas mulheres se encontravam no local e o pior – namorava as duas. Uma, jornalista, três anos mais velha que eu, e, a outra, uma loira, balzaquiana, separada do marido industrial. Esta acabaria na cama comigo naquela tarde, por ser mais insistente. A outra, bem, a outra ficou para um novo dia.
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Mas, quando vi a Ilca, aquela menina de pouco mais de dezoito anos, cabelos longos e dourados, olhos grandes, lábios sensuais – que mais tarde iria descrever como de anjo -, não resisti e tentei conquistá-la. Como uma borboleta, ela voava de flor em flor, abraçava e beijava os colegas próximos, sem compromisso, iludindo a todos com a possibilidade de uma chance, espontânea, livre...
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Sem ser correspondido, contentei-me em tirar algumas fotos dela naquela tarde no parque, onde se realizava um festival de bebidas. Eu era um dos membros do júri e, salvo engano, deveria estar bastante alcoolizado quando a fotografei. Depois, a vi partir em um carro junto com outras colegas. Sequer se despediu.
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Semana seguinte, as fotos reveladas, olhei para aquela jovem que parecia olhar para mim, me atiçar para um beijo, me enrolar em um abraço... Naquela tarde, ela não me quis. Mas, como sempre ocorria nesses casos, não me via como fracassado. Quem sabe, não sou o tipo do homem que ela gosta. E tem tantas mulheres bonitas ainda a serem conquistadas... Era um sábado... Pela manhã, descia uma rua comercial da cidade quando, para minha surpresa, vi a menina do parque, a menina da foto, no interior de uma loja. Não lembrava o seu nome... Só o seu rosto, o seu sorriso, os seus lábios esperando serem beijados...
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Joguei com o único trunfo que dispunha. As fotos... Será que ela não estaria interessada em ver as fotos? Sim, claro, por que não? Fomos até a redação da sucursal do jornal, onde estavam as fotos. Ela olhou quase sem interesse e, se as levou, talvez porque insisti. Convidei-a, então, para um aperitivo no bar mais próximo. Ela não só concordou em me acompanhar como também pediu um aperitivo. Excelente companheira, pensei. Vou me dar muito bem com ela.
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Saímos outras vezes. Em uma delas, fomos até Paranapiacaba, uma vila construída pelos ingleses no final do século XIX e que hoje é considerada um ponto turístico. Naquela época, no início de 1970, era pouco conhecida e poucos eram os visitantes. Aproveitei as suas matas solitárias e a levei para um passeio. Nesse dia, pela primeira vez, senti seu corpo em quase toda a sua sensualidade.
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Esse meu desejo foi satisfeito num final de semana, em Ubatuba, no Litoral Norte Paulista. Saímos em um Fusca, à noite, e seguimos em direção às praias. Chegamos de madrugada, provavelmente guiados por Deus, por que, à noite, pouco enxergo. Ficamos, de início, em um quarto na Pensão do Maestro, que costumava frequentar. Nesse mesmo dia, nos transferimos para um apartamento em um hotel perto da praça principal da cidade.
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Nesse hotel, passamos a nossa primeira noite. A primeira noite em que a tive como menina, como mulher, como amiga, como amante e companheira. De regresso, a despedida, sem compromisso. Talvez, nunca mais a visse. Mas desta vez, algo me dizia que ela não sumiria. Ilca ficou em meu pensamento – e mesmo se eu não a visse jamais, a imagem dela permaneceria para sempre comigo...
_____________________________________________________________________ *Na próxima quarta-feira, o terceiro capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. (Edward de Souza / Nivia Andres ) Arte: Cris Fonseca.
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