terça-feira, 16 de junho de 2009

ASSISTINDO A GUERRA PELA JANELA

General Lott coloca Lacerda pra
correr e garante a posse de JK
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PRIMEIRA PARTE
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Do livro inédito “Periferia da História”, adaptado para nosso blog.
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Milton Saldanha
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11 de novembro de 1955. Quem conhece a História contemporânea do Brasil sabe a importância desta data. Para quem não sabe, mais adiante eu explico. Foi há 54 anos, eu tinha 10. Aquele dia ficou na minha memória nos mínimos detalhes. Garoava e fazia até um pouco de frio, raro no Rio de Janeiro. Acordei bem cedo, com minha mãe agitada, quase aos gritos, repetindo: “O Lott deu o golpe!” Corri à janela e vi o quartel do 1º Regimento Escola de Infantaria, do outro lado da avenida de duas pistas, na maior agitação. Centenas de soldados com fuzis embalados, baioneta calada, e sargentos com metralhadoras Ina e bornais de munição a tiraloco caminhavam de um lado para outro ao longo da calçada que acompanhava o extenso muro. No portão tinham colocado sacos de areia e metralhadoras pesadas.
Não demorou muito e meu pai, capitão, voltou da ESAO – Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, em uniforme de campanha, revólver no coldre, calçando coturnos pretos, reuniu a família e deu instruções: “se a aviação atacar vocês deitem todos no chão, deixando os colchões em pé, contra a parede, para ajudar a proteger”.
Pertinho dali, o Campo dos Afonsos estava cercado por tanques e canhões. Nesse local eram treinados os jovens pilotos de guerra da Aeronáutica, nos barulhentos e temíveis aviões T-6 (falava-se “T-meia”). Para quem, como eu, crescia praticamente dentro de quartéis, sem chance até então de ver aquele aparato todo em uso real, e que só via guerra no cinema, aquilo tudo era demais! Realmente uma festa, fantástico! Meu irmão mais velho, Rubem, parecia o único ali com juízo. Eu e minhas duas irmãs, todos crianças, ficamos realmente eufóricos com aquela situação, principalmente com a possibilidade de presenciar um ataque aéreo, tiros, bombardeio. Torcemos para que acontecesse, era excitante ver e viver ação. Não tínhamos pálida noção da tragédia iminente, muito menos do nosso próprio risco, morando a poucos metros do quartel, na Vila Militar do Rio de Janeiro.
Felizmente, não houve ataque, nem aéreo, nem terrestre. Mas ficamos acompanhando pelo rádio e pela janela do nosso apartamento, no primeiro andar de um pequeno prédio, aquela grave crise político-militar que culminou com a deposição do presidente da República interino Carlos Luz pelas forças leais ao general Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra (cargo que depois passou a se chamar ministro do Exército). Lott, alguns anos depois, perderia de lavada para Janio Quadros a eleição para presidente.
Na verdade, não foi um golpe e sim um contragolpe desfechado por Lott, com apoio de outros generais influentes, como Odilo Denys, para assegurar a posse constitucional de Juscelino, o popular JK. Setores mais retrógados da Aeronáutica e da Marinha, tendo em Carlos Lacerda sua inspiração, tentavam impedir a posse de JK, democraticamente eleito pelo povo. A alegação era de que JK não tinha alcançado maioria, porque a soma dos votos dos demais candidatos (Juarez Távora e Adhemar de Barros) era maior. Naquele tempo não havia segundo turno e a legislação eleitoral permitia essa possibilidade, ou anomalia, como queiram. JK, portanto, estava legalmente eleito, não havia o que contestar. E o vice-presidente era eleito em separado. Podia-se votar para presidente num candidato de um partido e, para vice-presidente, de outro partido. Deu João Goulart, o Jango, com mais votos que JK. Depois Jango foi vice de Jânio e assumiu o poder com a renúncia.
O general Lott, respeitadíssimo no Exército, militar inflexível na disciplina e de honra pessoal inatacável, famoso pela honestidade (e mais tarde também pela ingenuidade política), colocava toda sua força e prestígio a serviço da legalidade constitucional e da democracia. Lançou suas tropas na rua, tomou o Rio de Janeiro, e botou o deputado federal Carlos Lacerda para correr. Lacerda se refugiou no encouraçado Almirante Tamandaré, que saiu da Baia de Guanabara para alto mar sob tiros de advertência dos poderosos canhões do célebre Forte de Copacabana, hoje museu do Exército e área de lazer, aberta ao público. Ou os caras eram muito ruins de pontaria, ou houve uma deliberada intenção de não acertar o navio, o que é mais provável. Da nossa casa, do outro lado da cidade, em Deodoro, na Zona Norte, é claro que não deu para ouvir os tiros. Mas quem estava na Zona Sul ficou muito assustado.
Lott derrubou Carlos Luz porque ele estava fazendo abertamente o jogo do golpe para impedir a posse de JK, ocorrida em 1956. Luz foi presidente só 3 dias, de 9 a 11 de novembro de 1955. Estava substituindo, como presidente da Câmara, a Café Filho, vice que assumiu com o suicido de Vargas. Café tinha se licenciado para uma cirurgia. Nunca mais reassumiu. Nereu Ramos exerceu mandato tampão até 31 de janeiro de 1956, quando entregou a presidência a JK.
Lott, se quisesse, teria se tornado ditador naquele 11 de novembro. Mas o fato é que mandaria prender na hora qualquer pessoa que lhe fizesse tal sugestão. Meu pai era fã assumido do Lott. Quando se formou na ESAO recebeu seu diploma das mãos dele. Nossa família toda estava lá. Nós, crianças, fazíamos farra com a careca suada e muito brilhante do Lott, um tipo germânico, sisudo, de tez avermelhada.
Na noite de 13 de novembro, eu e minhas irmãs, Sonia e Vera, ficamos na sacada acompanhando, ao vivo, nova saída de tropas. Parecia um 7 de setembro especial para nós. Jipes e caminhões rebocando canhões, carros de combate, tanques, foram deixando em fila o Regimento de Infantaria. Aquilo parecia que não tinha mais fim. Recordo que, apontando com o dedo, num gesto bem infantil, contamos uma a uma as viaturas, que totalizaram 160. Teríamos, naquele momento, sido notáveis fontes para qualquer jornal, porque com certeza só nós tínhamos esse dado com exatidão. Fizemos aquilo meramente por curiosidade, sem perceber que naquele momento éramos testemunhas da História, ainda que três crianças.
Nosso pai contou depois uma versão sobre essa saída de tropas, destinadas a substituir aquelas que já estavam na rua, cansadas. Oficiais golpistas teriam tentado impedir a saída do comboio. Sargentos se rebelaram, prenderam os golpistas no cassino dos oficiais e, com apoio de oficiais legalistas, garantiram o acatamento às ordens de Lott. O Brasil daquele período, ainda com o trauma do suicídio de Getúlio Vargas não cicatrizado, era um país tenso. Lembro-me que a todo momento o Exército entrava em prontidão. Nós, de família militar, sabíamos. Os civis nem ficavam sabendo.
Eu pensava e agia como criança, o que era o normal, mas hoje percebo como mesclava isso com um impressionante e precoce interesse pela política. Acompanhava tudo de perto, atentamente, e até já assumia posições, influenciado pelas conversas que ouvia em casa, claro. Tinha a maior bronca do Lacerda, por exemplo, e simpatia pelo Lott. Aquela coisa despida de malícia política, tudo no plano pessoal mesmo, bem maniqueísta. Pô gente, eu tinha só 10 anos!
Esse interesse aguçava minha curiosidade sobre o que pensavam os oficiais ali da Vila Militar, mais próximos de casa. Sabendo que não podiam se manifestar, e jamais faziam isso, fui gradualmente descobrindo o pensamento político de cada um de uma maneira muito simples: sondando a garotada, os filhos, em certos momentos até de maneira provocativa. Os filhos reproduzem o que ouvem dos pais. Todos iam abrindo. Era um horror, só havia oficiais simpáticos a golpes de direita. Apenas um, médico, era legalista, como meu pai, veterinário. Ambos, portanto, oficiais de apoio, sem comando de tropa e sem liderança na caserna. A mãe de um dos garotos percebeu meu interesse e ficou desconfiada. De uma hora para outra, eles que eram lacerdistas roxos, viraram “lottistas”. Eu chegava para brincar na casa deles e a mulher e o garoto, visivelmente instruído para isso, achavam um jeito de me dizer que eram a favor do Lott. Certamente pensaram que meu pai pudesse ser de algum esquema de informações, de quem estava no poder, e que eu puxasse tais assuntos para depois dar o serviço em casa. Os receios deles não eram infundados. Muitos oficiais golpistas foram removidos para unidades distantes, sem expressão, geralmente nas fronteiras, ou para postos burocráticos, sem tropa com poder de fogo.
O clima de guerrinha ainda durou uns dois meses em toda Vila Militar, depois daquele 11 de novembro. A gente percebia claramente, pela experiência de vida, que os quartéis permaneciam de sobreaviso. A Guerra Fria, com Estados Unidos e União Soviética disputando o mando do planeta, tinha fortes reflexos na nossa política interna, estimulando as radicalizações.
Nossas emoções foram se dissipando junto com as dos militares, na volta gradual à rotina. Eu esquecia a política e voltava a ser moleque, com a turma da vizinhança. Tínhamos um “forte”, na verdade um buraco no gramado do prédio, com “canhão” e tudo, que certo dia foi tomado num ataque de surpresa pela turma do quarteirão ao lado.

(Capítulo de amanhã: Brizola sobe, Jânio renuncia).
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*Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho da fronteira, é jornalista profissional, com mais de 40 anos de atividades. Começou em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1963. Foi repórter e exerceu cargos de chefia em alguns dos principais veículos do Brasil, como Rede Globo, jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, Diário do Grande ABC, revista Motor 3, Folha da Manhã (RS) e outros. Foi repórter em Última Hora, trabalhando com Samuel Wainer. Já assinou artigos e reportagens em mais de uma centena de publicações de todo o Brasil. Trabalhou também em assessoria de imprensa, para empresas e entidades públicas, como Ford Brasil, Conselho Regional de Economia e IPT- Instituto de Pesquisas Tecnológicas. É autor do livro “As 3 Vidas de Jaime Arôxa”, pela Editora Senac Rio, e participou como cronista da antologia “Porto Alegre, Ontem e Hoje”, pela Editora Movimento, do Rio Grande do Sul. Assinou também orelhas de diversos livros sobre dança e música, de autores brasileiros. Um ano antes de se aposentar, quando era editor-chefe do Jornal do Economista, em São Paulo, fundou o jornal Dance, que em julho completa 15 anos. Tem novo livro pronto, ainda inédito. É “Periferia da História”, onde conta de memória 45 anos da recente história brasileira. Trabalha em novos projetos editoriais, como jornalista e escritor. Na área de dança, organiza uma coletânea com os melhores editoriais publicados no Dance. Atualmente prepara um livro sobre Maria Antonietta, grande mestra da dança de salão carioca, que morreu recentemente. Apaixonado por viagens conhece quase todo o Brasil e já visitou cerca de 40 países. Por hobby e paixão é dançarino de tango.
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