quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

ARMAZÉM DE AROMAS



Observa o velho homem ali deitado. Fisionomia tranqüila, embora abatida. Está magro, pálido, quase sem cor. Poucos cabelos brancos cobrem-lhe a cabeça, mas reconhece o rosto carinhoso dos bons tempos em que espalhava alegria. Dobra-se sobre ele e respira fundo para constatar se ainda exala aquele perfume tão característico da infância. Não. Não. Não. Agora, o cheiro é frio. Apenas lágrimas, flores e ausência. Não usa mais aquela blusa de lã tão impregnada dele. Está elegante de paletó e gravata, embora sem sapatos. Imagina que anjos flutuam, não precisam de nada nos pés, por isso ele calça somente meias. Fecha os olhos ardidos e ele ressurge, com os cabelos ainda pretos e poucas rugas. Está levantando novamente a antiga porta corrediça de aço. Gesto simples, mas que abre um horizonte mágico. O chão quadriculado de preto e branco, as prateleiras rústicas de madeira rigorosamente arrumadas, cheias de alimentos dispostos de maneira ordenada. Festival de cores, aromas, texturas e sabores que extasia as crianças. O armazém de secos e molhados guarda tesouros mais valiosos que qualquer pirata. Inspira e sente novamente a bruma de produtos diversificados, freguesas que apalpam o queijo faixa azul, feirantes suarentos em busca de mercadorias, dinheiro... Corre até o fundo do empório. Debruça-se sobre os imensos tonéis de madeira, que escondem em água salgada deliciosos petiscos. Azeitonas verdes, pretas, grandes, pequenas, chilenas, portuguesas. Com a grande escumadeira, retira um punhado e começa a devorá-las ali mesmo, ainda na ponta dos pés, sentindo cócegas no nariz pelo excesso de sal. Receia levar bronca se acidentalmente derrubar os caroços dentro de algum barril. E, pior, ser proibida de desfrutar novamente daquele festim. O armazém é um banquete para todos os sentidos. A boca se enche de saliva quando os olhos encontram gelatina colorida, doce de leite, rapadura, maria-mole... Sabores perfumados típicos do interior. Doces simples, com gosto de saudade. Os pelinhos das narinas fazem festa ao respirar aquele ar encantado. As mãos ficam molhadas e lambuzadas. E os ouvidos se alegram ao escutar o plec-plec-trim da máquina registradora. O auge da felicidade é ter permissão para operar o caixa. Apertar os botões, abrir as gavetas, contar notas e moedas. No fim do dia, sorri ao sentir no corpo a fragrância marcante de todos os negócios fechados ao longo do dia, dos queijos, das guloseimas, das brincadeiras, das explorações nos quatro cantos daquele estabelecimento. Uma vez por semana, repete o mesmo ritual: estaciona a antiga kombi azul em frente ao portão da casa cheia de jardins e de sóis. Toca a campainha e entra com passos impacientes, carregando uma sacola branca. Nela, queijos e manteiga fresca, que compra diretamente do produtor em Minas Gerais e entrega pessoalmente aos filhos e netos. Vai embora com a mesma pressa. Outra festa começa: espetar um pedaço de queijo no garfo para derretê-lo na chama do fogão. A cozinha fica impregnada daquela fumaça de felicidade interiorana, que abraça a família toda. Todos o cercam em retribuição ao amor daquele homem simples, nascido em cidade de nome tão apropriado para sua figura – Santo Antonio da Alegria. É o guardião da família, o centro de todas as reuniões e encontros, a força que move todos. Nas férias, o sítio que cultiva no interior é outro espetáculo para olhos, bocas, mãos e narizes, especialmente os infantis, tão ávidos por novas descobertas. O cheiro urbano do armazém se transporta para o mato, transforma-se em aventuras olfativas. Naquela casa rural, mostra outras habilidades, espalha novos aromas com as mãos habilidosas na cozinha. Prepara pão de queijo, assa pernil, frita mandioca, enrola pamonha, estoura pipoca. Adora observá-lo no fundo do quintal, sentado calmamente, debulhando os milhos plantados ali mesmo. No começo, pensa que a palha é um bicho muito feio. Mas ao ver o carinho com que separa as espigas, percebe que é coisa da natureza. Certa vez, nas travessuras com os primos, quase destrói o milharal com uma bombinha de São João. O artefato solta faíscas que, em questão de segundos, se transformam em labaredas. A tragédia é evitada pelos parentes, que apagam o fogo com a água do lago, o mesmo onde ainda percebe o forte odor das brincadeiras, dos mergulhos e do barco a remo, quase sempre rebocado pelo cachorro, para alegria geral. Os peixes – cascudos, bagres, traíras – saltitam felizes, dançando a pororoca com a criançada. Com os olhos ainda ardidos e o nariz entupido pelas lágrimas, percebe que é um bálsamo para a alma lembrar daquele aroma de tantos momentos bons da infância. Brincar com o bravo cão pastor, rodar a manivela da máquina de moer cana e beber garapa fresquinha, colher abacates no pomar, montar cabana de lençóis na cama beliche e criar um mundo à parte, balançar forte na rede, ter medo dos morcegos e dos fantasmas na porteira, ouvir os grilos da madrugada, correr atrás das galinhas e fazer greve de fome quando alguma aparece na panela, despertar com o perfume de café fresco passado em coador de pano, adormecer quentinha pelos cobertores de amor. Sacode a cabeça, como se pudesse espantar aquela triste imagem de sua frente. Não. Não é mais uma menina. E ele continua ali deitado, braços cruzados sobre o peito, terço enrolado nas mãos. Não. Não pode ir embora assim, sem pelo menos guardar numa caixa florida aquela blusa de lã com a qual a cobria quando sentia frio, tão repleta dos aromas alegres de quando era criança. Um armazém de cheiros das peripécias do sítio, das bonecas, dos abraços tímidos, da kombi barulhenta, dos queijos e azeitonas e guloseimas. Esticado no caixão, o avô leva embora sua infância. Resta apenas o perfume da ausência e da enorme saudade coalhada pelo tempo.
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Lara Pezzolo Fidelis é jornalista e escritora. Armazém de Aromas venceu o Mapa Cultural Paulista – Expressão Literatura, na categoria crônica, em 2008. O projeto está vinculado à secretaria de estado da Cultura e visa incentivar e identificar as diversas expressões culturais por todo o Estado de São Paulo. Na categoria crônica, a jornalista Lara Pezzolo Fidelis venceu com o texto Armazém de Aromas, que remete a seus tempos de criança. "É um texto memorialista da minha infância. Fala dos aromas que me lembro do armazém de meu avô", explica a moradora de Santo André, cidade que representou no concurso. Entre outras atividades profissionais, Lara mantém um blog na internet, o Lagarta de Fogo:
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Bom dia, amigos e amigas do blog!

Com muita satisfação, vamos enviar os dois exemplares do livro O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez, para os amigos

Dalva Regina, de Santo André, São Paulo e
Olavo Cortes Marques, de Londrina, Paraná.

Solicitamos que entrem em contato pelo e-mail niviaandres@gmail.com, enviando seus endereços completos, para que possamos fazer chegar até vocês o nosso presente.

Agradecemos a participação de todos e vamos continuar sugerindo obras literárias aqui neste espaço, com o objetivo de incentivar o saudável hábito da leitura - uma janela aberta para o mundo.