segunda-feira, 25 de maio de 2009

TIRO DE GUERRA, OS TERRORISTAS E UMA INGÊNUA E SEDUTORA HISTÓRIA DE AMOR

Ademir Medici
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A ordem era atirar no meio da testa
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Os acordes de “Pra não dizer que não falei de flores”, na voz do seu criador, Geraldo Vandré, vinham fortes e sem censura da Secretaria do Tiro de Guerra de São Bernardo. Era o segundo semestre de 1969, tempo de ditadura militar e de políticos que, na sua grande maioria, alojavam-se nas fileiras do partido oficial, a Arena, de Aliança Renovadora Nacional. E a ordem que chegava ao TG era para que a guarda de quartel fosse dobrada, reforçada, para impedir o que os sargentos chamavam de ação de guerrilheiros, subversivos, terroristas e inimigos da Pátria amada Brasil no industrializado ABC que corria o risco de ser transformado em área de segurança nacional.
Os jovens recrutados de 18, 19 anos, tinham formação política quase nula. Estavam mais interessados nos bailinhos do Odeon, da Dulcora e do Bochófilo. Mas o comentário de que ninguém desligou o rádio durante a execução daqueles versos que falavam em “caminhando e cantando” era uma prova de que, mesmo sem tanta profundidade, havia entre os atiradores os que sabiam que aquela era uma música maldita, odiada pelos militares. Mesmo assim, a canção foi tocada por inteiro no rádio e sucedida pelo sucesso mais recente do rei Roberto.
O TG de São Bernardo ficava no “fim da Rua Marechal Deodoro”, ao lado da Churrascaria Pára Pedro. No comando, o subtenente Bataglia e as turmas dos sargentos Ludovico (muito severo), Gumercindo (de formação evangélica), Mário (bonachão), Miranda (mais ou menos) e Valdir (muito severo). O tempo de serviço militar era ainda de 10 ou 11 meses – somente no ano seguinte, já nas atuais instalações do TG, pelo lado do Jardim Silvina, o tempo cairia para seis meses, com dois pelotões servindo anualmente.
A temperatura era fria e úmida quando chegou a ordem de reforço da guarda. Além dos atiradores que se revezavam nas duas guaritas, outros dois se revezariam nos jardins da casa do comandante – uma casa antiga ao lado do quartel – e nos fundos da Travessa Monteiro Lobato, que hoje dão acesso à TV dos Trabalhadores, à gráfica, ao Centro de Formação Celso Daniel e a outros setores do poderoso Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, ainda sem uma sede definitiva e que, para as assembléias maiores, como as dos dissídios coletivos, reunia-se em espaços cedidos, como a sede do Odeon Clube e da Associação dos Funcionários Públicos.
Os atiradores viam contradição na filosofia da chamada Revolução Militar. Os milicos tomaram conta do País sob a alegação de que era preciso vencer as forças vermelhas e também a corrupção. Mas muitos dos atiradores foram abordados, antes do início das atividades, por um funcionário fuinha do Departamento Estadual de Saúde que propunha encontrar um meio de liberar o exercício militar mediante uns trocados. Ou seja: a corrupção não havia sido de todo eliminada.
Já as forças vermelhas, ou os comunistas, incomodavam em plena vigência do Ato Institucional nº 5 e da Guerra Fria. Somente podia ser isso, dada a ordem de reforçar a guarda do TG.
Numa das preleções, o atirador Roberto ousou indagar do sargento Gumercindo qual a atitude deveria tomar em caso de ocupação, durante o seu período, das instalações do Tiro de Guerra. A resposta veio rápida e encerrou qualquer diálogo.
- Atire para assustar: mire no meio da testa do terrorista...
Os fuzis eram carregados com pentes de balas, os melhores armamentos disponíveis, pouco mais modernos do que os usados nas marchas e desfiles cívicos como os de 20 de agosto, aniversário de São Bernardo, ou os dois realizados em São Paulo, no Anhangabaú e Praça da Sé – dizia-se que aqueles tinham sido fabricados no final do século 19. E a ordem era clara: atirar na testa do infeliz que ousasse invadir o glorioso tiro de guerra.
Até então, a preocupação maior dos atiradores era com o juramento à Bandeira no final do exercício militar, o que significaria estar quites com o Serviço Militar e poder, enfim, tocar a vida. Agora, mais essa: o reforço da guarda, mais sentinelas a postos – o intervalo entre uma e outra guarda ficaria menor.
“Há soldados armados, amados ou não, quase todos perdidos com armas na mão. Nos quartéis nos ensinam antiga lição: de viver pela Pátria ou morrer sem razão”...
E eis que chega a noite de Roberto fazer parte do reforço da guarda. Um frio de matar. E como cenário a frente da casa do comandante. Mal dá para avistar a Rua Marechal Deodoro, devido à neblina que desce vinda da Serra. Atrás de uma árvore, fuzil pendurado às costas, uma vontade enorme de tirar uma soneca, e eis que o atirador tem a atenção despertada por uma perua que estaciona bem em frente à casa do subtenente Bataglia.
Faróis e lanternas permanecem acesos. Passam-se alguns segundos. Ninguém desce. De repente, alguém abre a porta do veículo e procura por alguns papeis enrolados no interior da perua. Segura o que parece ser um rolo de cartazes. Leva o material até a mureta da casa do comandante. Coloca sobre a mureta. Pronto, ele vai querer pular a mureta e invadir o quartel pelo jardim da residência.
“Mire no meio da testa” – repete a voz do sargento Gumercindo no subconsciente do atirador inexperiente e cagão.
E agora: atirar ou sair correndo? O tempo parece uma eternidade. Finalmente, o rapaz começa a grudar alguns cartazes na banca de revistas ao lado. Termina o seu serviço e busca novamente a perua, naturalmente em direção à próxima banca.
Afasta-se a perua. Pé ante pé, o atirador dirige-se até o ponto mais próximo da banca e observa que os cartazes colados eram da edição daquele mês da revista Capricho, com notícias do rádio, TV e cinema e, como atração maior, uma fotonovela que, absolutamente, não trazia qualquer tema político, apenas uma ingênua e sedutora história de amor.
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*Ademir Medici é jornalista e escritor, formado pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Trabalha na imprensa do Grande ABC desde 1968 e especializou-se na área de resgate e reconstituição da memória. Possui um acervo de 32 livros escritos, sendo 24 publicados e oito inéditos. Ademir também ganhou, em 1976, o Prêmio Esso de Jornalismo, em parceria com o jornalista Édison Motta, pela série “Grande ABC: A metamorfose da industrialização”. Atua no jornal Diário do Grande ABC desde 1972. Foi repórter especial, editor de Cidades e Política e secretário de Redação. Atualmente é responsável pela coluna Memória, uma das mais lidas do jornal e do quadro "MEMÓRIA", no programa "ABCD Maior em Revista".
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