quarta-feira, 23 de junho de 2010



"Sinto-me muito mais só nesse quarto de hospital, tendo como companhia uma pessoa já idosa, com fortes dores no abdômen. Ele chega a dar gritos, surdos, abafados pelo cobertor. Os enfermeiros se revezam, dando-lhes injeções e pílulas, mas a dor persiste. A esposa dele, sentada ao lado da cama, segura suas mãos, acaricia seu rosto, massageia parte de sua barriga, mas ele geme e seus gemidos chegam a me dar aflição. Também sinto dor na cabeça e tonturas quando me levanto para ir até o banheiro, segurando a haste onde estão dependurados os sacos plásticos com os medicamentos. É uma aventura ir da cama até o banheiro. A fraqueza, a dor na cabeça, tudo contribui para um desânimo maior, desânimo que aumenta quando as visitas vão se embora e ficam apenas os dois pacientes, sem falar, sem diálogo, e sem disposição para assistir qualquer programa no canal de televisão".
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No segundo dia dessa nova etapa do tratamento quimioterápico recebo duas visitas carinhosas: Paulo Pereira e de Severino Ferreira da Silva, conhecido pelo apelido de Jacaré desde os tempos de sua juventude, quando trabalhava na linha de montagem de uma empresa multinacional – a Ford, instalada em São Bernardo do Campo. Estou fraco, quase sem voz, deitado, na cama. A falta de ânimo é absoluta e Paulo percebe. Volto a dizer a ele que se for encaminhado para a UTI, dificilmente voltarei à enfermaria. Paulo senta-se ao lado da cama e permanece em silêncio. De vez em quando, tira os óculos e enxuga os olhos. Percebo que chora, como da última vez. Chora, mas não quer ser visto com lágrimas nos olhos, principalmente por mim.

Fico a imaginar ele pensando na minha partida definitiva, na perda deste que é seu amigo desde o tempo da adolescência no Bairro Paraíso, em Santo André. Uma amizade que enfrentou um hiato de alguns poucos anos, em decorrência de minha transferência para Manaus e também por nós termos nos casado e mudado nossos hábitos, nossos costumes e encontrado outras amizades. Nesse dia, não me lembro de Paulo ter se despedido. Acredito que ele saiu em silêncio, aproveitando-se de minha sonolência.

Jacaré chegou no mesmo dia, logo depois. Mais otimista, mas sem comentar o meu estado, ele quis saber se podíamos dar um passeio pelo corredor do hospital. Ele caminharia ao meu lado e serviria de apoio. Convenceu-me a praticar esse exercício, que não exigia muito esforço de minha parte. Essa pessoa espetacular, eu conheci há pouco menos de dez anos, quando minha mulher comprou a nossa casa própria em uma localidade não muito distante do centro da cidade: o Jardim Progresso. Nos primeiros meses em minha nova residência, ainda bebia de maneira desregrada e só fui parar com o excesso de bebidas alcoólicas alguns meses depois, em julho de 1997, no dia em que minha mulher fazia mais um aniversário. Para ela, esse meu gesto foi considerado o melhor presente que ela recebeu.

Começaria uma nova vida, mas, constatei depois, já estava estigmatizado como um cachaceiro e por muitos anos viveria carregando esse fardo e ouvindo a frase corriqueira: é um bom profissional, mas... E vinha a palavra fatal: bebe. Mesmo os pequenos jornais me repudiavam. Até que um conhecido assumiu a direção administrativa de um novo jornal em São Bernardo e me convidou para ser chefe de reportagem, sem antes me advertir sobre o problema da bebida alcoólica.
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Jacaré, mesmo distante, sempre se manteve do meu lado, porque vivera a mesma situação que a minha: fora também um alcoólatra e só se redimiu depois de ser internado em uma clínica para viciados em drogas – e pinga, conhaque e outros aperitivos são drogas, apesar de não serem reconhecidas como tal e serem liberadas inclusive para menores de idade. Esse ex-metalúrgico ainda seria o meu braço direito por duas vezes: quando do primeiro e do segundo tratamento no Hospital do Câncer, quando precisei ir diariamente para as sessões de radioterapia e, uma vez por semana, da quimioterapia. Paulo Pereira e Severino Ferreira da Silva, duas pessoas completamente diferentes, mas iguais para mim quando se fala de solidariedade, em amizade e dedicação ao próximo.

Olhando pela janela do quarto onde estou internado, vislumbro uma cena incomum existente quase no coração da capital paulista. Uma ampla área, ao lado do quartel de um batalhão da polícia militar, uma variedade de árvores frutíferas. Laranjas maduras sobressaem-se entre o cinza poluído da região e pássaros aproveitam para fazer um festim de canto e dança. Fico então a pensar no quintal da casa alugada em Manaus, onde frutificava um grande pé de cupuaçu, um fruto típico da região norte brasileira, que convivia pacificamente com um bicho-preguiça lá residente desde a minha chegada. Chegava a ficar longo tempo presenciando aquele pequeno e inofensivo animal se movimentar, como se nada o apressasse. Cheguei a sentir inveja de sua calma, de sua tranquilidade, de sua indiferença pelo mundo exterior. Nada parecia afetá-lo naquele pé de cupuaçu, o seu universo verde e intocável.

O tempo que lá fiquei, não me lembro de ter visto o bicho preguiça ter se locomovido mais de dois metros. E fiquei em Manaus por quase um ano. Nesse período, após as festas de Natal e Ano Novo, a Ilca apareceu – o curso colegial concluído, mas sem fazer o acerto formal na firma onde trabalhava. Acabou sendo dispensada por se ausentar por mais de três dias do local de trabalho sem justificar-se. Um lapso dela, que poderia fazer um acerto e receber alguma quantia como indenização. Para recepcioná-la comprei várias dúzias de rosas e, com suas pétalas, fiz do piso da casa um tapete – um gesto romântico de um homem apaixonado.

Em companhia da Ilca fiz apenas uma grande reportagem: visita a todos os municípios do Amazonas e traçar um perfil de como era e como vivia a sua população ribeirinha. Sozinho, estive em vários estados do norte a serviço do Jornal do Brasil. A maioria com uma miséria exposta a ponto de não parecer fazer parte do território brasileiro. Rio Branco, a capital do Acre, por exemplo, me marcou pela precária situação de sua população ribeirinha. Crianças ainda, com no máximo treze anos, se prostituíam à noite, por uma ninharia em dinheiro. Uma dessas me abordou e eu perguntei por que ela frequentava aquele local, concorrendo com velhas prostitutas. A resposta era que precisava de dinheiro para levar ao pai, um viciado em bebidas alcoólicas. Dei-lhe o máximo que ela poderia faturar aquela noite vendendo o seu corpo, com a garantia de que ela fosse para casa e não voltasse mais, ao menos àquela noite. Sabia que o meu gesto não iria consertar a situação nem resolver o problema da menina, mas, ao menos, pude dormir tranquilo.

No dia seguinte, entrevistei o governador do Acre e o prefeito de Rio Branco. Toquei no assunto sobre a prostituição infantil e eles viram nesse meu interesse apenas uma curiosidade comum em turistas ou em pessoas que visitavam a região pela primeira vez. Como se diz, fique mais um tempo aqui que você se acostuma. Faz parte da cultura regional.
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Ainda como correspondente do Jornal do Brasil, consegui trazer alguns amigos e conhecidos para visitar Manaus, obtendo passagens com o departamento de turismo do Estado do Amazonas. Vieram os jornalistas Fausto Polesi, diretor do Diário do Grande ABC, Ricardo Kotscho e Raul Martins Bastos, do “Estado”, acompanhados das esposas, a repórter Sonia Nabarrete, o publicitário Darvei Dotto, o meu irmão Luiz Antonio e, como não poderia deixar de ser, a minha amada Ilca – que, desta vez, encontrava-se na casa de sua mãe, em Santo André.
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Com o Fausto Polesi, viajamos para Maués, no interior do Amazonas, onde fizemos uma reportagem denunciando o contrabando de ouro dessa pequena comunidade para os EUA. Os jornais deram destaque, inclusive alguns norte-americanos, uma vez que eu também despachava, via telex, para a agência de notícias UPI (Unidet Press International).

Deixei Manaus antes das eleições de outubro de 1976, quando Juarez Bahia me telefonou dizendo que eu “ganhara” férias de três meses, não remunerada. Era uma espécie de demissão, que não assimilei na época. Abandonei tudo, móveis, eletrodomésticos... Voltei para São Paulo apenas com a roupa de corpo e mais alguns trajes. Logo na primeira semana, sofri um pequeno acidente caseiro, o suficiente para receber auxílio doença do instituto de previdência social.
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Quando os três meses passaram, telefonei para o Juarez Bahia me colocando à disposição do jornal. Esperava que fosse transferido para a sucursal de São Paulo ou, então, retornaria para Manaus. Não. Findo os três meses de férias não-remuneradas, acabei demitido. Foi um nocaute para mim. Convicto de que voltaria para o Jornal do Brasil, não me interessava em manter contatos com meus colegas de São Paulo e até de Santo André, onde ficava o Diário do Grande ABC. Voltava, então, a ser um jornalista esquecido e desempregado.
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Dói-me a cabeça. Choveu de madrugada e o dia amanheceu nublado e frio. Estou só nesse quarto. O meu companheiro, ao lado, seguiu para o Centro Cirúrgico, onde deverá ser operado do estômago. Peço a Deus que dê tudo certo e ele regresse em breve. Decido dar uma caminhada pelo corredor, carregando os sacos plásticos com a salada medicamentosa. Nesse caminhar, deparo com um menino, sendo conduzido em uma cadeira de rodas. Ele sorri para mim. Tem o cabelo raspado como o meu, só que a sua cabeça é menor e mais brilhante. Não deve ter mais que oito anos e esse fator me leva a questionar os médicos.
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Quando constataram o tumor em minha garganta, na primeira vez, justificaram dizendo ter sido em razão de minha vida desregrada na juventude, com o abuso do fumo e do álcool. Agora, pergunto: e esse garoto, que sequer começou a segunda fase da vida, nunca usou fumo e álcool e ali se encontra, talvez em pior situação que a minha? Certamente, desta vez, alegaram que era fator genético. Eles, os médicos, sempre têm uma saída. Mas, ao ver aquela criança, de repente, não mais que de repente, como escreveu Vinicius de Moraes, fui levado para os caminhos de minha infância e cheguei a Bálsamo, pequena cidade na região noroeste do Estado de São Paulo e distante cerca de 450 quilômetros da capital paulista...
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Na próxima quarta-feira, o décimo primeiro capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.
(Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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RESULTADOS DESTA QUARTA-FEIRA (23-06) DOS JOGOS DA COPA DO MUNDO DISPUTADOS NA ÁFRICA DO SUL:
ESLOVÊNIA 0 X INGLATERRA 1
ESTADOS UNIDOS 1 X ARGÉLIA 0
GANA 0 X ALEMANHA
1
AUSTRÁLIA 2 X SÉRVIA
1
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