sexta-feira, 15 de outubro de 2010

QUINTA-FEIRA, 14 DE OUTUBRO DE 2010


No passado, geralmente, aos 18 anos, as mocinhas tinham acabado de debutar, estavam nos inocentes bailinhos, escrevendo diários românticos com capas cor de rosa, sonhando com belos jovens para namorar, ou deles desfrutando num banco de pracinha... Nem todas.
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Quando Dilma Rousseff tinha 18 anos havia uma feroz ditadura militar no Brasil. Esse regime mantinha um Congresso como fachada democrática, ao mesmo tempo em que censurava a imprensa, cometia impunemente todo tipo de corrupção, nomeava governadores e senadores biônicos, torturava e matava presos políticos, inclusive aqueles que não concordavam com a luta armada e combatiam a ditadura de forma pacífica. Os casos são numerosos, mas o mais emblemático foi o do jornalista Vladimir Herzog, diretor da TV Cultura, que causou grande comoção. Foi nessa idade que Dilma se engajou na luta contra a ditadura. Até para os padrões de hoje, ou principalmente nestes tempos de individualismo exacerbado, tem que se reconhecer nisso uma precocidade especial, de maturidade política. O sentido aqui não é de experiência e sim de consciência social. Dilma não era caso isolado. Foram os jovens, em esmagadora maioria, que tiveram coragem de reagir com ações práticas contra a ditadura. A maior prova disso foi o movimento estudantil, universitário e secundarista, com suas passeatas nas ruas, duramente reprimidas pelas forças policiais, bem equipadas e treinadas para esse objetivo. A segunda prova foi a luta armada. Ainda que equivocada, sem qualquer chance de vitória no campo militar, e deflagrada no momento errado, quando a classe média vivia a euforia do “milagre econômico”, fruto na verdade de uma grande oferta internacional de crédito, a luta armada precisa ser respeitada pelo ideal dos jovens nela engajados, egressos do movimento estudantil.
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Foi um erro? Sem dúvida, principalmente porque fortaleceu a ditadura, na medida em que o povo não entendeu o que estava acontecendo, manipulado por forte contrapropaganda, e porque unificou bolsões de discórdia dentro do próprio regime, principalmente nas Forças Armadas. Foi um grande erro da esquerda, que aumentou a sobrevida da ditadura e deu os motivos que eles queriam para seu maior radicalismo. Só que essa análise fica fácil hoje, transcorridos quase cinquenta anos desde 1964, ou exatamente 42 anos, desde 1968, quando a resistência democrática foi para as ruas e partiu para a ação. Naquele momento, quando se vivia o medo físico do Estado, arrocho salarial, intervenção e controle dos sindicatos, inflação descontrolada superando os dois dígitos, todo tipo ostensivo de opressão, corrupção generalizada e impossível de denunciar, fechamento de jornais pela força, falta de liberdade de opinião, proibição de votar para cargos majoritários, entre outros horrores até de maior gravidade, ficava mais difícil adotar uma posição com visão crítica totalmente lúcida e pragmática, e sobretudo isenta e desprovida de emoção.
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Se hoje, com toda a paz e liberdade democrática em que vivemos, com a chance do povo escolher soberanamente seus governantes, as eleições já despertam paixões e ódios, alguns cegos e quase incontroláveis, com visões maniqueístas dos dois lados, imaginem então como eram os sentimentos das pessoas sob um regime sem esperanças e de absoluta opressão. Esperar o quê, principalmente dos jovens politizados? Paciência e resignação? Centenas de jovens morreram no sacrifício da luta democrática, ou padeceram nos centros de tortura patrocinados por banqueiros, grandes empresas nacionais e multinacionais, em colaboração e conivência com o estado autoritário. Os nomes dessas empresas já foram exaustivamente divulgados na literatura sobre o tema, é uma lista longa, e entre elas se destacou a Ultragaz, então presidida pelo tristemente célebre empresário norueguês Henning Albert Boilesen, que participava pessoalmente das torturas e recentemente virou tema de filme. O financiamento para a montagem do aparato repressivo, em 1969, foi a partir de uma reunião com empresários liderada em São Paulo por Delfim Netto, juntamente com o lobista de empreiteiras Luiz Macedo Quentel. Mas o maior incentivador foi o banqueiro Gastão Vidigal, dono do Banco Mercantil de São Paulo, que convocou seus colegas. (Fonte: trilogia de autoria do jornalista Elio Gaspari sobre a ditadura).
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Para quem passou toda a vida acompanhando atentamente a política, meu caso desde os dez anos de idade, parece quase inacreditável, hoje, que nomes que fomentaram a repressão ditatorial e deram suporte financeiro aos torturadores, como Delfim Netto e o então prefeito Paulo Maluf, agora estejam alinhados com o governo Lula e até declarem o voto em Dilma, a mesma que foi presa e torturada indiretamente por eles. Porque o crime, como já preconizava Sófocles na tragédia grega, no belíssimo texto da peça Elektra (“a mão foi minha, o gesto foi teu”), não é só pela mão que o comete, mas também pela que o induz. Ou nada fez para impedi-lo. Assim é a política. Fria e calculista. Atrelada ao jogo da busca do poder por todos os meios, não raro os mais condenáveis e manipuladores, como mostra claramente esta eleição, que remete o Brasil ao início do século passado quando questiona a fé religiosa dos candidatos. Um pouco mais e teremos de volta a Santa Inquisição. Nesse retrocesso assustador, avança o poder de padres e pastores que fariam os piores chefões da máfia se sentirem amadores. Mas duro mesmo é ver todos os candidatos se dobrando a isso.
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Voltando ao passado recente, a quem tiver especial e mórbido interesse por detalhes da tortura recomendo a leitura do livro “A Ditadura Escancarada”, página 182, do insuspeito jornalista Elio Gaspari, que na ditadura chefiava a redação da revista “Veja” e era amigo íntimo do general Golbery do Couto e Silva, homem forte do regime. Lá está o depoimento de um torturador, com detalhes. No mesmo livro ele conta que em 1970 “o regime tinha cerca de 500 pessoas nos seus cárceres. Mais da metade deles eram estudantes, com idade média de 23 anos”. O lado do governo também teve baixas a se lamentar, mas em número muito menor, e nenhum torturador e estuprador foi punido.
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É indispensável perceber que esses jovens não estavam lá para enriquecer, muito menos para fazer carreira política, pois viviam na clandestinidade, sem usar sequer o próprio nome. Na vida legal seria mais fácil, e oportunidades de carreira não lhes faltariam, principalmente no caso de Dilma, de uma família mineira próspera, frequentando boas escolas particulares católicas. Viver na clandestinidade e sendo caçado pela polícia política significou imensos sacrifícios, como a restrição de movimentos, alimentação precária e irregular, não ter um teto e uma cama própria para dormir na próxima noite. Fora a tensão permanente, o medo natural e humano, do confronto armado, ser preso, torturado, morto. Cada passo, na rua, tinha que ser em estado de alerta, observando o entorno, se não havia alguém seguindo. E, dentro de casa, nunca definitiva, a mesma tensão a cada ruído, sirene, gente ou carro parando na frente.
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Essa luta consumiu de forma dramática aqueles que seriam os melhores anos na vida daqueles jovens. E quem passou pela tortura, ainda que controle seus sentimentos e tente erradicar isso da memória (esforço inútil), carregará para sempre, em menor ou maior grau, conforme cada pessoa, um trauma irreversível e irreparável em qualquer sentido. Não serão, portanto, as reparações financeiras aos anistiados que irão apagar seus pesadelos depois de tanto sofrimento. Inimaginável sofrimento. Isso apenas lhes assegura um certo conforto na velhice e o reconhecimento de que o Estado errou ao fechar os olhos aos mais básicos direitos humanos daqueles que estavam sob sua tutela. Dilma Rousseff fez parte dessa geração. Teve a sorte de não tombar, mas sofreu a prisão e tortura. Por má fé, ou ignorância histórica, é apontada por alguns como “terrorista”. Quem fala isso desconhece, ou finge desconhecer, que o termo foi criação da ditadura para desqualificar a luta dos seus opositores. Qualquer pessoa que caísse nos porões do DOI-CODI, chefiado por majores do Exército, ou do Deops, chefiado pelo delegado Romeu Tuma (ele mesmo, o atual senador que fala em Cristo), era chamada de terrorista. Eu sou prova disso. Nunca tive treinamento militar, sequer sei atirar com espingarda de rolha, jamais vi de perto uma bomba, mas quando fui preso, em dezembro de 1970 (no mesmo ano e local onde Dilma foi presa), e novamente detido “para averiguações”, em 1975, sofrendo coação moral, lá fui tratado e chamado como “terrorista”. Para a ditadura não havia democratas ou simplesmente opositores, todos eram “terroristas”, este ser covarde que ataca oculto e busca alvos civis sem capacidade de defesa. Coisa que nossos combatentes jamais fizeram. Muito menos Dilma, com seu humanismo que a projetou naquelas trevas.
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Ainda que equivocada e grande erro estratégico, a luta armada tem que ser interpretada como um tempo de guerra civil. Nisso pesa uma grande contradição dos militares. Eles não reconheciam seus inimigos como combatentes, também soldados. Para eles eram apenas “terroristas”, sem direitos humanos. Mas os militares envolvidos na repressão eram considerados formalmente como combatentes em tempo de guerra. Havia até condecorações, em solenidades internas. Ganhavam soldos dobrados e contavam tempo de serviço também em dobro, entre outras regalias não extensivas aos seus colegas em tarefas rotineiras da caserna. E as equipes de buscas, aquelas que saiam para prender as pessoas, efetivamente com risco de vida, tinham o prêmio do saque nas casas que invadiam. É claro que isso não era oficial, mas tolerado clandestinamente pelos comandos.
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Meu apartamento foi invadido e enquanto estive preso eles levaram tudo, à luz do dia, sem ligar para o testemunho dos vizinhos. Quando voltei para casa sequer tinha cuecas para vestir. Por sorte, eles desprezaram um velho calção de banho. Fizeram o saque como se fosse uma mudança normal, contaram depois os vizinhos. Vejam, não estou falando de assaltantes comuns e sim de agentes do Estado, investidos de autoridade sem limites. Existem centenas de histórias sobre seus abusos. Quando meu irmão, também preso comigo há 11 dias, sem direito sequer a advogado, reclamou do saque a um oficial do DOI-CODI, ele respondeu com a ameaça de nos manter presos por mais tempo. Isso, amigas e amigos, era a ditadura!
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Dilma dedicou grande parte de sua juventude a essa luta sem nenhum glamour e sem nenhuma perspectiva real de vitória. Rodeada de incerteza e medo cotidiano, a cada minuto. De desconfiança de tudo e todos. Resumindo: um inferno. Não muito diferente do mesmo inferno que José Serra também viveu, como ex-presidente da fase mais radical da UNE (que apoiava Cuba), em 1964; clandestino; depois no exílio; e no golpe do Chile. Estavam do mesmo lado, só que lutando com métodos diferentes. A luta armada não era para qualquer um. Requeria sólida estrutura moral e ideológica, e acima de tudo aceitação do risco de morrer. Este último quesito não se encaixava na personalidade de Serra, nem poderia, com sua ambição doentia de algum dia se tornar presidente. Para isso ele joga pesado e mente, prometendo tudo que não fará, e faz aliança até com o diabo. Que o diga esse DEM, reunião de tudo de ruim que existe na política brasileira.
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A opção de morrer também não me empolgou, por isso não avancei, o que significaria ir para a clandestinidade e receber treinamento militar. Mas reconheço que a coragem de Dilma foi admirável, pois era uma garota idealista. O oposto não era covardia, apenas a opção de cada um. Eu comecei a militar na política aos 17 anos, em 1963. Em 1970 já estava convencido que o povo pelo qual lutava não merecia minha vida. Povinho ordinário, que anos depois me provou isso elegendo o desvairado Collor, hoje em repugnante aliança com Lula. Argumentam que desejavam trocar uma ditadura de direita por outra, de esquerda. Isso contém verdade e mentira. A mentira fica por conta da generalização, pois a esquerda, assim como a direita na época, também era dividida nas mais diversas correntes. Nos dois lados havia facções radicais e também democratas. Os militares atrapalhavam os projetos também dos políticos da direita, acirrando suas contradições. E não custa lembrar que até o conservador jornal “Estadão”, que não apoiava a luta armada, se tornou opositor ao regime, lutando contra a censura. O mesmo “Estadão” que em 1964 conspirou para derrubar João Goulart, o Jango.
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Que cada eleitor faça sua opção de forma muito consciente e responsável. Por falta de melhor opção, já que anular é pior, e considerando que ladrões existiram em todos os governos, não tem jeito, vou votar em Dilma. Bem ou mal, ruim por ruim, como diria o filósofo Tiririca, me agradam mais as políticas sociais do governo Lula do que as privatizações irresponsáveis e lesivas ao Brasil da era FHC. Minha escolha não é a infantil da simpatia pessoal, e sim da discussão no campo macroeconômico. Se é para falar de escândalos, então vamos puxar o pior da História, que foi o PROER, do FHC, quando socializaram o rombo dos bancos, sem colocar nenhum banqueiro na cadeia. Já os lucros astronômicos nunca pensaram em socializar. O povão, coitado, imerso em sua ignorância sobre economia e finanças, pagou e nunca soube disso.
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Mas a biografia da Dilma não pode ser deturpada e cruelmente manchada como fruto, repito, de má fé ou ignorância. Ou, certamente, ambos. É levianamente chamada de assassina sem que se aponte o nome de uma única vítima. Cadê a prova, pedra basilar da Justiça? Falam que assaltou bancos, sem apontar quais e onde. Quem acusa tem que provar. Ou não é mais assim? E mais: é injusto discutir sua militância, isso é passado, porque com culpa ou sem culpa ela já cumpriu duplamente sua punição: primeiro, sendo torturada, uma violência inaceitável e inqualificável sob qualquer prisma; segundo, ficando 3 anos na cadeia. O que querem mais? Até quando? Em que limite? Não é a pessoa de Dilma que incomoda e sim o que ela representa, como antítese da acomodação e das ambições mais mesquinhas da classe média, que só aspira ao dinheiro, desprezando valores morais e humanos, sem o mínimo sentimento de solidariedade social. Basta ver como gritam contra o Bolsa Família, para socorrer miseráveis, com um valor microscópico perto de tudo que os barões já roubaram e continuam roubando neste país. Mas a esses barões eles se curvam em admiração submissa e servil. E não percebem o principal: o Bolsa Família não é a fundo perdido. O dinheiro volta positivamente, pois a formação de classes consumidoras irriga a economia, gerando investimentos e empregos. Isso está acontecendo no interior do Nordeste e explica a larga vantagem de Dilma naquela região.
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Se existiu violência, ela começou no golpe de 1964, com a derrubada pela força de um governo constitucionalmente eleito, pelo voto popular. Se havia alguma razão para tirar o presidente João Goulart, lá estava, pela via legal, o Congresso Nacional. Como aconteceu depois com Collor. Equivocada ou não, a luta armada foi uma resposta a uma violência que começou antes, subtraindo os direitos e garantias dos cidadãos. Em última análise, foi legítima defesa, comparável aos movimentos civis de resistência ao nazismo durante a II Guerra Mundial. Os assaltos a bancos, financiadores diretos da repressão, eram a fonte de sustentação das organizações. Nessas ações jamais tocavam num único centavo de qualquer correntista presente. Tiravam, portanto, dinheiro do inimigo, no contexto da luta nacional. Quem fizer julgamento moral tem que ser isento e considerar também o financiamento da tortura pelos banqueiros. A militância engrandece a história de Dilma, porque representou um ato de muita coragem e de renúncia ao conforto pessoal. Foi doação sacerdotal de uma jovem idealista ao seu povo e ao seu país, enquanto outros se aliavam ao arbítrio e se lambuzavam em sua lama.
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*Milton Saldanha - Jornalista profissional e escritor, 65 anos, SP.
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