domingo, 4 de abril de 2010

CONTOS E CRÔNICAS DA PÁSCOA

UM INESQUECÍVEL
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DOMINGO DE PÁSCOA
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Por que as pessoas não se empolgam mais com a Páscoa? Antigamente - na época de outrora, sabe? Aquela que os tempos não trazem mais - todos ficavam felizes quando a Páscoa se aproximava, já pensando na Sexta-Feira Santa e na tradicional bacalhoada regada a muito azeite português, batatas pré-cozidas com folhas de louro, pimentões vermelhos, azeitonas pretas, ovos cozidos, no melhor estilo da culinária portuguesa, acompanhada de couve e um arroz branquinho.

O que se passava na Semana Santa no seio das famílias era de uma simplicidade primitiva e tocante. “Porque Nosso Senhor estava doente”, a casa não se varria, os empregados não trabalhavam, os meninos não brincavam nas calçadas. Não se cantava, não se dançava, não se tocava. Falava-se baixinho, jejuava-se, rezava-se. As donas de casa “ficavam de olho” em empregados desobedientes e nos meninos traquinas para um ajuste de contas quando rompesse o Sábado de Aleluia. As lojas faziam decorações mirabolantes, as pessoas elaboravam planos do que fazer na data, as crianças escolhiam seus ovos com base no sabor (e não no brinquedinho que vem dentro), as famílias se reuniam... Era tudo tão mais mágico, tão mais meigo.
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Verdade que hoje os ovos de chocolate estão custando os olhos da cara, e que os diet, para os diabéticos, mais caros ainda! Certo que o bacalhau e os pescados estão pela hora da morte. Mesmo assim é gostoso poder presentear com chocolate, oferecer nosso carinho envolvido em celofane e papel metalizado colorido, um ato que nos faz crianças novamente, desembrulhando delícias, desvendando o que há dentro dos ovos, mesmo já sabendo o que se irá encontrar. Será que ainda é assim para todos ou é um traço infantil, imaturo que persiste em mim?

Nesse período cristão recordo minha infância, quando meu irmão e irmãs buscávamos os ovinhos coloridos de chocolate no fundo do quintal, ovos da Kopenhagen, que não tinham os preços proibitivos de hoje. Era costume na família os pais esconderem os ovos de Páscoa no quintal, para que os filhos os encontrassem. Hoje, esse hábito transformou-se e, quando muito, cultiva-se escondê-los dentro de casa, apesar de predominar o costume de presenteá-los diretamente.
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Do mesmo modo que a árvore, que perde folhas no inverno e ganha flores na primavera, acumulamos perdas e ganhos que formam nossa memória de recordações e conduzem ao caminho da experiência.

Foi num bonito domingo de Páscoa com muito sol, há muitos anos, que toda minha família se reuniu na ampla casa térrea de meus pais, localizada perto da praça central de Franca. Eu tinha apenas 9 anos de idade e apenas duas irmãs haviam nascido, a Lúcia e a Lusineti. A Dalvinha e o Arlindinho viriam anos depois. Minha mãe Dalva, auxiliada por minhas tias ultimava os preparativos para servir um bom almoço de Páscoa, enquanto os homens conversavam e bebericavam no quintal, sob as sombras de frondosas jabuticabeiras.

Eu e as duas irmãs, depois da “caçada” aos ovos de chocolate, brincávamos na rua. Fomos orientados severamente pela minha mãe, nada de abrir os ovos de chocolate antes do almoço. Deixei as guloseimas sobre minha cama e estava ansioso esperando o almoço ser servido, comer pouco e depois fazer a festa com os ovinhos de Páscoa, dois deles enormes, um que ganhei de meus pais e o outro da minha avó.

Meia hora antes do almoço minha mãe chamou os três para dentro de casa e nos fez tomar um belo banho. Deixou sobre minha cama, perto dos ovos de Páscoa - que tentação! – minha roupa mais bonita. E sentamos todos para almoçar. A mesa partia da copa e seguia até o final da enorme cozinha. Minha mãe, em pé, fez uma oração, acompanhada em silêncio por todos nós.
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Assim que terminou, a campainha de casa soou. Meus tios, indiferentes, começavam a se servir e mamãe foi ver quem era. Estranhamos. Naqueles tempos era costume no interior deixar as portas e portões destrancados. Vizinhos e conhecidos entravam em casa sem bater. Quem poderia estar tocando a campainha? Para surpresa de todos nós, mamãe entrou amparando dois garotos maltrapilhos e anunciou: “esses dois garotos vieram pedir um pedaço de pão, estão com fome e vão almoçar conosco”. Buscou duas cadeiras e as colocou do meu lado, pedindo aos meninos para se sentarem.

Mamãe percebeu quando fiz um gesto tentando me levantar. Segurou-me com carinho pelos ombros, fez com que me sentasse e cochichou aos meus ouvidos: ”também são seus irmãozinhos, devem ter a sua idade e precisam de sua companhia, trate-os bem”. Incomodado, fiquei observando mamãe servir os dois garotos ao meu lado. Um deles, depois soube que se chamava Marquinhos, olhou para mim e disse: “que bom ter uma mãe como a sua, nós só temos pai e ele está doente em casa, desempregado”.

Começaram a comer com vontade, estavam mesmo famintos. Acompanhei os meninos e comecei a conversar com os dois. Meu coração de criança estava sensibilizado, depois de ouvir a triste história que me contaram. Haviam perdido a mãe muito cedo, o pai, doente e desempregado não teve como pagar aluguel da casa que moravam e foram despejados. Moravam num barracão improvisado, na periferia da cidade. Com fome, em pleno Domingo de Páscoa, resolveram sair às ruas em busca de comida. Queriam também levar para o pai deles. Contei isso para minha mãe quando nos levantamos da mesa.

Enquanto mamãe preparava comida para os meninos levarem para o pai, eu os levei até meu quarto. Os olhinhos dos dois brilharam ao ver tantos brinquedos e tantos ovos de chocolate jogados sobre minha cama. Pensei em dar um ovinho para cada um. Depois, segurando os dois ovos de chocolate maiores, um que ganhei de meus pais e o outro da minha avó, não vacilei. Dei um para cada um. Eles abraçaram os ovos, encantados, parecia que não estavam acreditando ser tudo aquilo verdade. Exclamei feliz: “podem levar, tenho outros”. Não havia percebido que mamãe estava encostada na porta. Olhou-me com aprovação e saiu.

Os meninos saíram de casa agarrados aos ovos de chocolate, com muita comida para levar e deixaram o endereço onde moravam. Meus pais e tios passaram a cuidar do pai doente e dessas crianças. Um dos meus tios deu emprego para ele em sua fábrica de calçados e a vida desses meninos melhorou. Marcos e Luiz. A última vez que me encontrei com eles faz uns 20 anos. Um é advogado, o outro arquiteto.

Sem a força da amizade o ser humano não tem lugar no palco da vida. Assemelha-se a um tronco queimado, morto, onde nenhuma ave constrói seu ninho. Mas a amizade exige compartilhamento de ideais, cumplicidade, fraternidade. O caminho da alegria está dentro de nós. Um sorriso, um gesto de bem querer são suficientes para que se encontre o tesouro da amizade, a prova de que há muitos anjos ao nosso redor.

Ao invés de comer e beber tudo o que tem direito, a reunião familiar do domingo deveria continuar servindo para acertar diferenças, procurar no real significado da Páscoa, a meditação, o diálogo em paz, a harmonia e o perdão, pregados por Cristo.

FELIZ PÁSCOA!
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*Edward de Souza é radialista e jornalista
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