quinta-feira, 18 de junho de 2009

O RIO GRANDE EM PÉ, PELA LEGALIDADE
TERCEIRA PARTE
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Capítulo inédito do livro “Periferia da História”.

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Milton Saldanha
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No dia seguinte à renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, começou a crise político-militar. Vou resumir e simplificar ao máximo o que ocorreu: os ministros militares, liderados pelo general Odilo Denys, ministro da Guerra, achavam que Jango (João Goulart), o vice de Jânio, não poderia assumir o poder. Motivos: era comunista (nunca foi), ou simpático ao comunismo; defendia interesses populares; dizia-se herdeiro político de Getúlio Vargas; tinha pacto com sindicatos, etc. Os ministros tentaram o golpe, aproveitando que Jango estava em visita oficial à China, do outro lado do mundo. Tinha ido por delegação de Jânio, como parte da sua estratégia no frustrado golpe da renúncia.
Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, colocou a Brigada Militar protegendo o Palácio Piratini, desceu para o porão já armado de metralhadora, e requisitou com força policial a rádio Guaíba, do grupo Caldas Júnior , uma das mais potentes do Estado. Antes tomou o cuidado de colocar um batalhão inteiro da Brigada protegendo os transmissores e antena. Diretamente do porão do Piratini, microfone na mão, Brizola anunciou ao país que não aceitaria a ditadura militar, defendeu a posse do vice-presidente constitucional, e anunciou que não recuaria, nem que isso lhe custasse a vida. A partir daquele momento o Rio Grande do Sul começava a parar e se engajava maciçamente na resistência, movimento que ficou conhecido como Legalidade.
A Legalidade começou num dia bonito em Santa Maria, a 307 km de Porto Alegre, com céu muito azul, temperatura agradável. Ligamos o rádio por volta das 10 horas da manhã, acho que era um sábado ou domingo, porque a família estava toda em casa. As quatro rádios da cidade (Imembui, Santamariense, Medianeira e Guarantã) já estavam em rede com as rádios de Porto Alegre. Com profunda emoção, cheio de ênfase, mas ao mesmo tempo mantendo uma serenidade admirável, o escritor regionalista Manoelito de Ornellas, um grande prosador, locutor número 1 da Cadeia da Legalidade, diretamente do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, convocava o povo para a luta de resistência armada:
- O Rio Grande está em pé pela Legalidade!
- Querem rasgar a Constituição brasileira, mas o III Exército não aceita a ditadura!
- Salve o III Exército, salve o glorioso exército de Caxias!
E assim prosseguiu horas, com palavras de ordens. Em todas as rádios, mais de cem em cadeia, cobrindo todo o Estado, de ponta a ponta, só se ouvia aquilo. Nada de programação normal, nem de comerciais.
A voz de Manoelito de Ornellas, uma dicção privilegiada, mestre do improviso e de transformar qualquer fato numa história saborosa, tinha como fundo marchas militares, que subiam de volume e ocupavam os intervalos entre cada proclamação à nação. De vez em quando o próprio Brizola voltava ao microfone, com discursos contundentes da sacada do palácio, sob aplausos da multidão que já se formara ali na frente, na Praça da Matriz. A Rede da Legalidade se propagou cada vez mais, incorporando inclusive os rádio-amadores, com seus equipamentos domésticos, para que seu som chegasse nos mais remotos rincões dos pampas. Tinha também emissoras de Santa Catarina e Paraná.
Brizola passou todo o tempo entrincheirado no palácio, sob proteção do Batalhão Bento Gonçalves, da Brigada Militar. Porto Alegre vivia a maior ebulição de sua vida, com uma multidão cada vez maior se aglomerando na praça, onde já estavam instalados alto-falantes. Até se confirmar a notícia da adesão do general Machado Lopes, comandante do III Exército, a tensão foi enorme. Na preparação para a luta cinco mil revolveres e caixas de balas foram distribuídos a civis. Esse contingente armado ficou conhecido como Patrulha Taurus, a marca da arma. Foram distribuídos também lenços de pescoço para identificar os membros da patrulha. Quando a crise acabou poucas armas foram devolvidas.
O general Machado Lopes havia recebido ordens de Brasília para prender o governador e calar a Rede da Legalidade, a qualquer custo. Consta que Lopes num primeiro momento ficou indeciso, mas acabou aderindo à resistência por pressão de alguns oficiais e principalmente sargentos, dispostos inclusive a tomar o quartel. Meu tio, Paulo Drozinski, era sargento, servia justamente no QG, e foi um dos que se ocultou numa espécie de sótão, com armas, inclusive metralhadoras ponto 50, as maiores, aguardando pela definição do comando. Foram momentos de extrema tensão naquele quartel. Numa situação parecida a V Zona Aérea, da Força Aérea Brasileira, seguiu o Exército. Lá a situação também não foi fácil, ou bem pior. Os golpistas expediram uma ordem de bombardeio aéreo do palácio. Sargentos legalistas sabotaram aviões e colocaram tonéis na pista. Em discurso dramático, Brizola anunciou que resistiria até a morte, se preciso fosse. Teve a adesão e solidariedade de D. Vicente Scherer, arcebispo metropolitano. A Igreja Matriz fica ao lado do Piratini.
Quando a notícia da adesão do III Exército foi divulgada o povo entrou em delírio na praça. O general Machado Lopes se dirigiu do seu QG para o palácio, não muito longe dali. Lá formalizou a aliança e a subordinação da Brigada Militar ao seu comando.
Nós, lá de casa, em Santa Maria, acompanhando tudo pelo rádio (ainda não existia TV), chorávamos de emoção. Meu pai, oficial do exercito já na reserva, e que serviu muitos anos no Rio Grande do Sul, tinha um nó na garganta. “Este é o meu Exército, sinto orgulho do meu Exército”, dizia. Logo depois do almoço, sempre com o rádio ligado, fui com ele para o centro da cidade, onde já tinham colocado postos de alistamentos. Por toda parte, nas ruas centrais, tinham instalado equipamentos de som que reproduziam a Rede da Legalidade. Meu velho, em terno de linho branco e chapéu, todo orgulhoso, entrou na fila e assinou a lista, antecedendo seu nome com o título de tenente-coronel. Os encarregados do posto gostaram, fortalecia o movimento. Depois dele eu me alistei. Aquele alistamento, na verdade, era simbólico, mais uma forma de mobilização e comprometimento moral das pessoas. Não se pedia documento, não importavam sexo e idade. Se tivessem que recrutar combatentes civis para valer, com certeza a coisa seria bem diferente. Mesmo assim, quando chegamos em casa e contei, excitado, com pose de herói, que estava alistado, minha mãe ficou assustada, como se a gente fosse no dia seguinte para o front. Imaginem, eu não sabia atirar nem com espingarda de rolha. Muito menos tinha idade para isso. A mobilização do Estado para a luta foi total. Ninguém, nem um político sequer, ousava dizer uma única palavra contra aquele movimento. Os mais ferrenhos inimigos do PTB simplesmente ficaram quietos em suas casas, entre eles o famoso e conceituado advogado Walter Jobim, nosso vizinho, filho de um ex-governador e pai do atual ministro da Defesa, Nelson Jobim. Detalhe: brinquei na rua algumas vezes com Nelson Jobim e seus irmãos. Mas nunca existiu uma amizade forte entre a gente, como tive com Tarso Genro.
O movimento da Legalidade aglutinou totalmente o povo gaúcho. Foi inclusive mais forte do que a união paulista na Revolução Constitucionalista de 1932, porque em São Paulo havia federalistas declarados e claras divisões no meio militar, logo neutralizadas. Já o RS se levantou em bloco, inclusive com a imediata adesão do general Pery Bevilacqua, que comandava a 4ª Divisão de Infantaria, em Santa Maria, a mais poderosa do Estado. O mesmo aconteceu com as tropas da fronteira, sob o comando do notável general Oromar Osório, sediado em Santiago, que, aliás, já havia aderido antes mesmo de Machado Lopes.
Porto Alegre era o foco de todas as atenções. No centro da cidade havia um pavilhão grande, dos serviços de turismo, conhecido como Mata Borrão. Gaúchos tradicionalistas, com todo aquele aparato de desfiles, lanças e bandeiras, enfiados nas suas botas, bombachas, lenços no pescoço e chapéus de abas largas, acamparam no Mata Borrão. Ficavam lá tomando chimarrão e enchendo o tempo com fanfarronices de machões, tudo muito divertido. A guerra parecia também uma grande festa. O trabalho e as aulas estavam suspensos. Os bancos fechados e os postos de gasolina com restrições severas de consumo, para que não viesse a faltar combustível para as viaturas militares.
Ali aprendemos com nosso pai, ex-oficial de estado maior, duas medidas indispensáveis numa ameaça de guerra civil: 1) Tirar rápido todo o dinheiro do banco. 2) Encher o tanque do carro e não rodar, se possível guardando um galão extra de combustível, como ele fez. Numa guerra isso é um bem precioso.
Em Santa Maria as emoções eram também muito intensas, por todas as características da cidade, então centro ferroviário e estudantil, e principalmente porque tem até hoje uma das principais guarnições militares do Brasil. O general Pery Bevilacqua depois se tornou muito famoso e influente no meio militar. Conforme ele próprio contou, e disso fui testemunha ao ouvir seu pronunciamento na Semana da Pátria, na Praça Saldanha Marinho, no auge da crise Brizola ligou do palácio querendo saber sua posição. Pery respondeu prontamente: “Governador, como soldado não sei o nome do presidente da República. A Constituição tem que ser respeitada”. Isso, decisivamente, seleva a unidade do Rio Grande, em pé, em armas, em defesa da democracia.
Santa Maria, com suas bandas marciais, adorava desfiles. A Legalidade também teve o seu. Marcharam pela avenida Rio Branco, central, milhares de alistados, inclusive enfermeiras e médicos, com seus uniformes brancos, e representações dos militares. Como eu era escoteiro, fui fardado, por minha conta, porque o grupo ainda não estava oficialmente inserido no movimento. Só no dia seguinte o comissário distrital, uma espécie de chefe geral dos escoteiros da cidade, reuniu todos os grupos, com seus chefes, e informou que seríamos acionados no momento oportuno, em tarefas urbanas de apoio ao Exército e à Brigada Militar. Isso incluía, por exemplo, dirigir o trânsito, já que todos os PMs seriam mobilizados para ações armadas. Poderíamos também ser estafetas, com bicicletas, levando mensagens, medicamentos, o que precisassem. Essa perspectiva de convocação mexia com nosso imaginário, nos excitava, gerava muita vontade de entrar em ação. A gente se inseria mais ainda no clima geral, pois a população toda estava ouriçada.
O dia de maior emoção foi o do embarque de tropas, na estação de trens, deslocadas para a divisa com o Paraná. Os soldados, com mochilas e fuzis pendurados ao ombro, ganharam alguns minutos para as despedidas pessoais, na plataforma abarrotada de gente. A banda tocou o Hino Nacional e a Valsa do Adeus. O trem, “maria fumaça preta”, soltando vapores para os lados, apitou três vezes, patinou ruidosamente nos trilhos e arrancou, com a soldadesca debruçada nas janelas, abanando e deixando para trás um vale de lágrimas de mães, esposas, namoradas, amantes, crianças, autoridades e curiosos. Tínhamos, ao vivo e reais, aquelas cenas clichês tão conhecidas dos filmes de guerras.
Numa tarde, quando menos se esperava, apareceu sobre Santa Maria um avião T-6, aqueles caças barulhentos, remanescentes da Segunda Guerra Mundial. Despejava panfletos sobre a cidade, inclusive sobre os quartéis. Lembro-me do avião em rasante, ainda bem que em vez de tiros e bombas despejando só papéis. Vinha tão baixo que dava para ver que era pilotado por um homem só. O panfleto defendia o golpe, acusando Jango. Mal feito, uma bobagem. Numa guerra de verdade o caça teria sido abatido, mas voou livremente e fugiu. Não resta dúvida que o piloto foi ousado, ou talvez se tratasse de um belo porra louca. Foi o único incidente de maior repercussão em termos de oposição à Legalidade.
Outro pequeno episódio foi pitoresco. Um avião trouxe dois oficiais, em nome do ministro golpista, que foram tentar aliciar o comando local. Os oficiais foram detidos tão logo definiram sua missão no QG. Aí os legalistas mandaram uma patrulha num caminhão para tomar o avião e prender o piloto, na base aérea de Camobi. Só que havia um código qualquer combinado entre o piloto e os dois oficiais. Quando o caminhão verde-oliva apareceu na estrada e não parou, não piscou faróis, não sinalizou nada, o piloto sacou que o esquema tinha furão, ligou às pressas os motores e decolou. Ainda teve tempo, olhando pela janela aberta, de fazer uma banana com o braço para o caminhão que já se aproximava da pista. O avião fez uma curva no ar, antes de se mandar, sob os olhares de bobos dos milicos, em pé ao lado do caminhão, com suas armas na mão.
No rio Guaíba, em Porto Alegre, estava ancorada uma canhoneira da Marinha de Guerra, em visita ao Estado. Zarpou, solidária aos golpistas. Outro barco de guerra, chegando no porto de Rio Grande, teve um motim a bordo, liderado por um tenente telegrafista, e aderiu à Legalidade. Ficou lá até o fim do movimento. Correu também um grande boato de que o porta-aviões Minas Gerais estava descendo o Atlântico para atacar o Rio Grande do Sul.
Ex-recrutas que participaram das tropas legalistas deslocadas de Santa Maria para o Paraná contavam depois, em mesas de bares, que tinham ficado separados das tropas “inimigas” apenas por uma ponte, num rio qualquer de divisa estadual. Sargentos e oficiais, dos dois lados, costumavam atravessar a ponte para bater papo e até mesmo compartilhar, na mais autêntica confraternização sulista, de uma roda de mate, com a cuia passando de mão em mão enquanto a prosa rolava solta. Dá para acreditar que iriam trocar tiros depois?
A guerrinha foi assim, pacífica, tolerante, folclórica, ainda que muito bonita. Na Faculdade de Medicina de Santa Maria estudavam alguns bolivianos, nossos amigos. Eles acompanhavam tudo aquilo incrédulos. “Se fosse no meu país já teriam matado uns duzentos”, comentou um deles. (Amanhã o último capítulo da série, aguardem)
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*Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho da fronteira, é jornalista profissional, com mais de 40 anos de atividades. Começou em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1963. Foi repórter e exerceu cargos de chefia em alguns dos principais veículos do Brasil, como Rede Globo, jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, Diário do Grande ABC, revista Motor 3, Folha da Manhã (RS) e outros. Foi repórter em Última Hora, trabalhando com Samuel Wainer. Já assinou artigos e reportagens em mais de uma centena de publicações de todo o Brasil. Trabalhou também em assessoria de imprensa, para empresas e entidades públicas, como Ford Brasil, Conselho Regional de Economia e IPT- Instituto de Pesquisas Tecnológicas. É autor do livro “As 3 Vidas de Jaime Arôxa”, pela Editora Senac Rio, e participou como cronista da antologia “Porto Alegre, Ontem e Hoje”, pela Editora Movimento, do Rio Grande do Sul. Assinou também orelhas de diversos livros sobre dança e música, de autores brasileiros. Um ano antes de se aposentar, quando era editor-chefe do Jornal do Economista, em São Paulo, fundou o jornal Dance, que em julho completa 15 anos. Tem novo livro pronto, ainda inédito. É “Periferia da História”, onde conta de memória 45 anos da recente história brasileira. Trabalha em novos projetos editoriais, como jornalista e escritor. Na área de dança, organiza uma coletânea com os melhores editoriais publicados no Dance. Atualmente prepara um livro sobre Maria Antonietta, grande mestra da dança de salão carioca, que morreu recentemente. Apaixonado por viagens conhece quase todo o Brasil e já visitou cerca de 40 países. Por hobby e paixão é dançarino de tango.
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