quinta-feira, 7 de maio de 2009

CAREQUINHA, O TERROR DO ABC PAULISTA

Edward de Souza
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Um capeta em forma de gurí

No final dos anos 70, a Vila Luzita, em Santo André, Região do ABC Paulista, estava em pleno crescimento. Muitos terrenos baldios espalhados, mas também existiam casas bem construídas, árvores que durante a primavera se coloriam de frutas e algumas ruas sujas e sem asfalto manchavam o nome do bairro de classe média e envergonhavam seus moradores "Alguém devia remover esse monte de ladrões", diziam os bem apessoados moradores do bairro. Alguns diziam que aquilo era uma maloca e a prefeitura deveria varrer "aquela sujeira". Ali nasceu Carequinha. Aos 11 anos de idade o menino já era temido por todos no bairro. Carequinha nunca quis estudar, nunca quis trabalhar, nunca foi à igreja, nem conhecia Deus! Só sabia roubar e fazer maldades. O pai estava preso e ele nem sabia o porquê. Vivia apenas com a madrasta e outros cinco irmãos. A viatura encostada naquela rua indicava o que já se esperava e lá se ia o carequinha entrando no camburão. Nunca era levado à Delegacia, muito menos ao Juizado de Menores. Sempre para as margens da Represa Billings, onde acabava levando uma bela surra dos policiais. Voltava para casa dolorido e cada vez mais revoltado. Aquele menino franzino, de cabeça raspada, ao completar 13 anos ficou conhecido da mídia. Numa sexta-feira eu estava na redação do Diário do Grande ABC, quando fui informado que um menor de idade havia entrado no pátio do 1º Distrito Policial de Santo André, onde delegados, investigadores e carcereiros guardavam seus carros. O menino, aproveitando de um descuido, entrou no carro do delegado Tiossi Bernardes, titular daquela delegacia e fugiu em alta velocidade pelas ruas da cidade. Com o carro do jornal acompanhei a perseguição policial. Até tiros foram dados para o alto, mas nada fazia aquele garoto parar. Ousado, atravessava semáforos com sinal fechado, provocou acidentes entre veículos, até que, depois de mais de duas horas, perdeu o controle do carro e chocou-se contra um poste. Com pequenas escoriações saiu do veículo e tentou fugir, mas foi detido pela Polícia. Levado ao 1° DP foi feito o boletim de ocorrências e Carequinha foi conduzido para uma pequena cela onde ficaria à disposição do Juizado de Menores. Quando conversei com aquele menino na delegacia, confesso, fiquei com pena. Uma criança indefesa, tímida. Seu olhar transmitia desconfiança e tristeza. Nesse dia Carequinha chorou, lembrando-se do dia em que, sem nada para comer em casa, roubou uma banana de um comerciante e levou uns bons tabefes do milico que o pegou. Deixei o Distrito Policial pensativo, principalmente quando soube que, naquela idade, sua ficha policial de furtos e roubos já passava de 3 metros de comprimento.
Foi a primeira vez que Carequinha saiu nas páginas policias do Diário do Grande ABC. Sua foto, de costas (menores não podem ter o rosto publicado), ilustrava a manchete policial daquele dia: “Carequinha rouba carro de delegado e provoca o caos no trânsito”. Dias depois ele estava nas ruas e voltava a atormentar a polícia. Usando um revólver de brinquedo, Carequinha invadiu um estabelecimento comercial no centro de Santo André, rendeu os funcionários da loja e se apoderou do dinheiro que estava no caixa. Quando tentou a fuga, foi perseguido por populares e acabou sendo detido. Mais uma vez na delegacia e depois ao Juizado de Menores. Desta feita, o menino, já com 13 anos, foi encaminhado à Febem no Tatuapé (na época a responsável pela guarda de menores). Tudo indicava que a população teria sossego por um bom tempo. Ledo engano. Em menos de uma semana Carequinha estava nas manchetes de todos os jornais de São Paulo e do ABC. Comandou uma fuga em massa daquele estabelecimento penal de menores, não sem antes ter ateado fogo nos colchões e provocado um estrago de monta. Desapareceu por umas duas ou três semanas, até que, numa sexta-feira, mais uma vez fui chamado para cobrir uma ocorrência policial, no mínimo estranha. Um ônibus repleto de passageiros havia sido sequestrado por um menor, e ziguezagueava em alta velocidade pelas ruas de Santo André. Carros saiam da frente, chocavam-se contra outros, batiam em muros e o ônibus desgovernado continuava rodando pelas ruas da cidade, nessa altura com muitas viaturas da Polícia Militar, civil e dos bombeiros em seu encalço. Eu não tinha dúvidas. Sabia que Carequinha estava ao volante daquele coletivo. Depois de muito trabalho a polícia conseguiu cercar o ônibus, que se enfiou pela Travessa Lourenço Rondinelli, no centro de Santo André e ficou sem saída. Passageiros deixaram o ônibus em pânico, outros, revoltados, queriam linchar o autor dessa façanha, mas foram contidos pela polícia. Cheguei a tempo de ver Carequinha descer do ônibus sorrindo, arrastado por um bando de policiais. Consegui me aproximar do menino e assim que me viu, foi logo dizendo: “viu só, fui dar uma voltinha de ônibus e me prenderam novamente”. Eu já era, nessa altura, velho conhecido do menino. Para encurtar a história, deixei de relatar muitas outras detenções de Carequinha que culminaram em nossos encontros. De volta à Febem, desta feita o gurí estava bem vigiado. Ficou por lá alguns meses até fugir novamente. Ousado, Carequinha aprontou sua última façanha em Santo André, ao completar 14 anos. Tentou furtar um carro do Corpo de Bombeiros, mas foi detido antes que saísse com o veículo. Carequinha foi levado ao 1° DP de Santo André, na rua Xavier de Toledo e colocado numa pequena cela que sempre improvisavam para deixar pequenos infratores por algumas horas. Contou-me muitas histórias, sua triste vida sem carinho, sem apoio dos pais e a vontade enorme de não ter nascido. Talvez por isso desafiava a todos sem nenhum receio. Mais uma vez saí triste desse encontro. Foi a última vez que conversei com Carequinha. No dia seguinte ele foi encontrado morto na cela fria. Com um lençol se enforcou durante a madrugada.
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*Edward de Souza é Jornalista e radialista. Trabalhou nos jornais, Correio Metropolitano, Folha Metropolitana, Diário do Grande ABC e O Repórter, da Região do ABC Paulista. Em São Paulo, na Folha da Tarde, Gazeta Esportiva, Sucursal de "O Globo", Diário Popular e Notícias Populares, entre outros. Atuou nas Rádios: Difusora de Franca, Brasiliense de Ribeirão Preto, Rádio Emissora ABC, Diário do Grande ABC, Clube de Santo André, Excelsior, Jovem Pan, Record, Globo - CBN e TV Globo de São Paulo. Participou de diversas antologias de contos e ensaios. Assina atualmente uma coluna no Jornal Comércio da Franca, um dos mais tradicionais do interior de São Paulo.
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