quarta-feira, 5 de agosto de 2009

NO TEMPO EM QUE DROGA NÃO ERA DROGA

GUIDO FIDELIS
*
COCAÍNA ERA RARA NOS ANOS 60

Fumar era moda, elegante. Fumava-se em todos os ambientes. Diferentes marcas, com ou sem filtro, às vezes utilizando-se elegantes e charmosas piteiras. Baforadas longas, fumaça subindo em círculos, igual ao que se podia ver e copiar nos filmes, em branco e preto, belos clássicos de luz e sombras. Boates e barzinhos eram impregnados de fumaça. Amores desfeitos, novos romances, conversas amenas ou existenciais somente com o cigarro na boca. Ele era uma espécie de força vital que encorajava, ajudava a superar a timidez que paralisa diante do inesperado, quando alguém nos pede um discurso de improviso numa festa ou solenidade. Permitia, ainda, vencer noites insones e de solidão. Impossível beber e ouvir música sem a companhia do cigarro. O tango jamais existiria sem um cigarro na boca de Gardel. As ruas também eram pacatas no início da década de 60. Por elas se podia transitar sem riscos de assaltos. Crimes eram raros, exceção para os vigaristas que ludibriavam otários que se achavam espertos, vítimas da ganância, do incontrolável desejo de ganhos fáceis, caídos do céu. Muita gente acreditava em bilhetes premiados, máquina de fabricar dinheiro e pacos. E algumas prostitutas, enquadradas por crime de vadiagem, que portavam nos sutiãs, entre os seios, habeas corpus preventivos para livrá-las do flagrante.
Ainda se vivia a comemoração do nascimento de Brasília e a consequente inflação que se seguiu. Também se iniciava o movimento hippie e os Beatles lançavam seu primeiro disco, “Please, Please Me”, em 1962. O clima pré-revolucionário ganhava contornos, preparando-se as senhoras católicas para engrossar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, muitas delas insufladas por membros da TFP – Tradição, Família e Propriedade, entidade ultra-direitista.
Pouco ou quase nada se falava em drogas. Cocaína dificilmente aparecia no noticiário, embora se soubesse da existência de consumidores, mas sempre nas altas rodas. O produto era raro, acessível apenas a quem tivesse bom poder aquisitivo. Maconha era mais comum. Mas poucos usuários se atreviam a usá-la em público. Sob desconfiança, eventuais consumidores eram apontados, chamados de maconheiros. No caso da maconha, tanto traficante quanto consumidor eram sujeitos às penalidades previstas. Lança-perfume ainda rolava nos bailes carnavalescos. Produto desodorizante com aroma de perfume, em forma de spray, era fabricado pela Rhodia, com a marca Rodouro. Logo, passou a ser inalado, pois proporcionava estado de euforia e excitação. Acabou proibido ainda na década de 60, embora continue a ser fabricado e consumido na Argentina.
Outras drogas eram livres, não se inseriam no rol de proibidas, consideradas crimes diante da lei. Algumas, com incentivo e aplausos do mundo científico e intelectual, que revelava efeitos extraordinários para os candidatos às experiências. O LSD, substância sintética mais conhecida na época como ácido lisérgico, era utilizado em experiências terapêuticas. Conferencistas de renove apregoavam maravilhas. Santo André foi palco de uma delas, realizada na Biblioteca Municipal, com auditório lotado. Falava-se da sensação agradável, de cores brilhantes, da audição de sons incomuns. Na época, também se comentava o livro “As Portas da Percepção”, do escritor e pensador Aldous Huxley, fascinante relato sobre as experiências do autor com a mescalina, a descoberta de um fantástico mundo novo, céu o inferno. Huxley, dando ênfase à sua obra, cita o poeta William Blake: “Se pudessem limpar as portas da percepção, tudo se revelaria ao homem como é: infinito.”
Formou-se, em Santo André, um circulo de discussão e de experimentação. Diversos médicos participavam dos debates e muitas foram as sessões destinadas especialmente à experimentação da droga. Eu mesmo tive três oportunidades de provar o ácido lisérgico com a perspectiva de que viajaria por um mundo mágico, capaz de enxergar através das paredes. Numa delas houve desencontro, na segunda estava ausente na data. Na última, cheguei perto, fui até a porta do Hospital Jardim, onde a prova seria realizada, mas desisti no último momento por um instinto que não saberia explicar, pois nada poderia me impedir, não estava praticando nenhum crime.
Mais adiante, depois de proibida, passou a ser mais procurada pelos jovens, ganhou usuários que se transformaram em dependentes químicos. Hoje continua espalhada em muitos recintos, problema agravado com o crack, droga letal que ganhou as ruas, abastece os miseráveis, transformados em zumbis.
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*Guido Fidelis, jornalista, escritor cosmopolita, sensato, pé no chão, também advogado é outro dromedário da imprensa paulista. Ex-Última Hora, Diário do Grande ABC, A Nação e A Gazeta, sua pulsante literatura deixa pouca dúvida a respeito de suas preferências: drama policial com um aroma decididamente neonaturalista. Realmente, sua floresta urbana São Paulo é, mais frequentemente do que não, comprimida em um gênero ainda considerado opressivo. Guido Fidelis tem mais de uma dúzia de livros publicados. A última obra de Fidelis, Corredeiras do Tempo (Rapids of Time), mostra uma propensão marcante para a abstração acima da ação. Ao invés de policiais e ladrões, o leitor se encontra imerso em atmosferas densas caracterizadas por uma forte ênfase no simbolismo. No final, a narrativa filosófica de Guido Fidelis chega através de curtas-metragens, ricos em lirismo e um prazer para ler. Visite o blog de Guido Fidelis: http://guifidel.blogspot.com/
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