terça-feira, 30 de junho de 2009

A CASA MAL-ASSOMBRADA DE PIRITUBA
INÉDITO - NOTÍCIAS POPULARES
EDWARD DE SOUZA
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O FEITIÇO VIROU-SE CONTRA O FEITICEIRO
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Segundo Capítulo
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As luzes dos postes já começavam a se acender e, no ar, sentia-se o cheiro do jantar, mas os moradores daquela rua em Pirituba não arredavam pé das proximidades da casa “mal-assombrada” e faziam até apostas para saber a hora em que o fenômeno se manifestaria. “Eu acho que é coisa do diabo”, dizia um antigo morador do bairro, fotografado pelo Tarcísio. Chegaram até a dizer que o fenômeno era uma tentativa de um vizinho, assassinado há um mês, de pedir ajuda. Os vizinhos contavam que a hipótese de fenômeno sobrenatural foi a primeira a ser levantada pelos donos da casa. Eles correram chamar o padre da igreja do bairro para ajudar a resolver o caso. Foi o padre que recomendou chamar a polícia e a imprensa.
Eu, que não acreditava em nada daquilo que os moradores diziam, muito menos em fantasmas que atiram pedras, começava a sentir certo incômodo naquela sexta-feira cinzenta e já fria. Raios e trovões cada vez mais fortes. Era preciso fazer alguma coisa antes que tudo ficasse às escuras. Enquanto eu olhava para a multidão e percebia a chegada de uma emissora de TV, um gato preto correu atravessando a rua, calçada a calçada e penetrou no jardim da casa, escondendo-se. Era o que faltava para tornar aquele dia mais tenebroso. Tarcísio, o fotógrafo, puxou-me pelos braços e sugeriu uma volta pelos fundos da casa. Caminhamos juntos até que ele recuou. Havia se esquecido do flash no carro de reportagem. Estranho, pensei. Um fotógrafo experiente esquecer-se do apetrecho principal para fotos no escuro. Segui em frente. Aproximei-me de um barranco cercado de árvores que balançavam forçadas pelo vento forte. Repentinamente um galho despencou de uma árvore. Passou pelo alto, mas só podia ter sido arrancado pelo vento, imaginei. Dei mais uns passos à frente e outros galhos vieram em minha direção. Senti pela primeira vez que alguma coisa anormal estava acontecendo. E o infeliz do fotógrafo não aparecia. Ouvi um barulho vindo das árvores. Segundos depois pedras começaram a cair. Uma delas, enorme, passou bem perto da minha cabeça. Para quem tinha um pingo de juízo, havia chegado o momento de recuar. Quase correndo, por pouco não atropelo o Tarcísio, que vinha em passos lentos com sua máquina a tira-colo. Contei o acontecido, mas o danado achou graça. Não acreditou, ou fingia não acreditar em nada daquilo que eu contava. Arrastei-o pelos braços até os fundos da casa e lhe mostrei pedras e galhos espalhados pelo chão. Segurando para não cair na gargalhada, Tarcísio se recusou a fazer fotos, alegando que não eram provas. E tinha razão. Pedras e galhos no chão podem ser encontrados em qualquer lugar. Irritado, fiquei por alguns minutos ao seu lado, esperando que o fenômeno voltasse a se manifestar. Nada aconteceu. Voltamos para a frente da casa e já era noite. Batemos na porta, mas ninguém atendeu. Estava claro que os moradores estavam ali, mas, assustados, preferiram se esconder, apenas observando a movimentação pelas frestas das janelas. O correto seria voltar no dia seguinte, bem cedo para tentar ouvir os moradores da casa. Uma chuva fina começou a cair. Mesmo assim, meus olhos permaneciam atentos, observando os fundos da casa. Tarcísio procurava chamar minha atenção indicando-me o padre, que conversava com o repórter de uma emissora de TV dando as suas explicações sobre o que vinha ocorrendo naquele lugar. Não me interessava o padre, pelo menos naquele momento e depois de ter passado todo aquele sufoco. O fenômeno teria que se manifestar novamente, pensava eu. Não aguentava a cara de gozação do Tarcísio. Nisso, enquanto olhava para os fundos da casa, ouvi gritos. Pedras começavam a cair. Não se sabia o lugar certo onde saiam, pareciam claramente lançadas do alto. Observei que caíam vertical, atravessando a folhagem das árvores nos fundos da casa. O rosto de Tarcísio transfigurou-se. O ar de deboche desapareceu e ele fotografava tudo que podia, até os curiosos que, assustados, corriam para se livrar das pedras que continuavam a ser lançadas. Repentinamente um grito dos fundos da casa chamou a atenção de todos. Até o padre, que havia terminado de dar sua entrevista para a TV, correu para ver do que se tratava. Uma figura conhecida, de paletó xadrez, bigodes ralos, havia despencado do barranco, segurando uma bolsa vazia nas mãos. Atingido de raspão na cabeça por uma pedra, “paletó”, nosso prezado motorista, entrou assustado no carro de reportagem. Ficou tudo claro. Um filme passou em segundos na minha mente. Na noite anterior, os dois, Tarcísio e “Paletó”, tramaram toda a brincadeira na padaria, por isso cortaram a conversa assim que me viram. E tiveram a paciência de encher uma bolsa com pedras para levar e me fazer de vítima. Os galhos, certamente “Paletó” encontrou no chão. O motorista só não esperava que o fenômeno realmente se manifestasse e o transformasse em vítima. O feitiço virou-se contra o feiticeiro.
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O fenômeno poltergeist ou RSPK (psicocinesia recorrente espontânea), como é tecnicamente chamado em Parapsicologia, é ainda um dos mais intrigantes assuntos estudados na área. Esse fenômeno envolve ocorrências físicas tais como chuvas de pedras, movimentação, quebra, pirogenia, aparecimento de água, sons, luzes e outros objetos, sem nenhuma explicação "normal" para esses eventos. Nesta quarta-feira, saibam como ”Paletó” se transformou em manchete do jornal mais vendido em bancas do Brasil. Nossa entrada na casa “mal-assombrada” entrevista com o casal e as panelas que se mexiam nas prateleiras, enquanto copos voavam para todos os lados. Leiam amanhã no blog.
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*Edward de Souza nasceu em Franca, é Jornalista e radialista. Trabalhou nos jornais, Correio Metropolitano, Diário do Grande ABC e O Repórter, da Região do ABC Paulista. Em São Paulo, na Folha da Tarde, Jornal da Tarde, Gazeta Esportiva, sucursal de “O Globo”, Diário Popular e Notícias Populares, entre outros. Atuou na Rádio Difusora de Franca, Difusora de Catanduva, Brasiliense de Ribeirão Preto, Rádio Emissora ABC e Clube de Santo André; também nas rádios Excelsior, Jovem Pan, Record, Globo – CBN e TV Globo de São Paulo. Medalha João Ramalho, principal comenda do município de São Bernardo do Campo, outorgada pela Câmara Municipal daquela cidade pelos relevantes serviços jornalísticos prestados à região. Troféu PMzito, entregue pelo alto comando da Polícia Militar de Santo André por ter se destacado como o melhor repórter policial do ABC nos anos 70. Prêmio Sanyo de Rádio nos anos 80, como o melhor narrador esportivo do ABC Paulista. Menção Honrosa entregue em 2007 pela Câmara Municipal de Franca e outra pelo Rotary Clube Norte pela atuação brilhante na radiofonia da cidade. Participou da antologia O Conto Brasileiro Hoje, 7°, 8º, 9º e 10º edições, com os contos “Um Visitante Especial”, “Sonhos Dourados” “A Lua de Mel” e “O Sacristão”, além de diversas outras antologias de contos e ensaios. Assina atualmente uma coluna no Jornal Comércio da Franca, um dos mais tradicionais do interior de São Paulo.
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segunda-feira, 29 de junho de 2009

INÉDITO - NOTÍCIAS POPULARES: UMA
CASA MAL ASSOMBRADA EM PIRITUBA
EDWARD DE SOUZA
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Primeiro Capítulo
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Metade da década de 1970, no bairro de Pirituba, São Paulo, uma família se via assustada com eventos estranhos que ocorriam em sua residência, onde certo Espírito, entregando-se às suas evoluções ordinárias, lançava pedras, mexia os móveis, quebrava os vidros, até batia nas pessoas, sem que fosse possível descobrir como é que procedia. A modesta casa, que sempre fora extremamente limpa e bem cuidada, começou a sofrer ataques constantes de tijolos e terra. Sem que houvesse qualquer dano no telhado, eles se “atiravam” dentro dos cômodos, como se materializassem no ar, provocando muita sujeira e estragos nos móveis comprados com tanto sacrifício. Na cozinha, como se não bastassem esses ataques, pratos e xícaras “teimavam” em não permanecer dentro do armário, lançando-se ao chão, como se uma grande força os impulsionasse para fora das prateleiras. Por vezes, a luz do banheiro se acendia sem que ninguém estivesse naquele cômodo. Os fios elétricos que percorriam os caibros do telhado sem forro do quarto apareceram picados, como se alguém tivesse utilizado uma faca para fazê-lo. Vizinhos testemunhavam que em determinados dias, mais no final da tarde, pedras eram atiradas para a rua atingindo pedestres e carros parados nas proximidades.
Quando entrei no Notícias Populares fui privilegiado por um arranjo entre o saudoso José Lázaro Borges Campos - editor de polícia - e a direção do jornal. Como todo o jornalista na época, por determinação do Sindicato da categoria era obrigado a cumprir cinco horas de trabalho por dia, fui registrado como “Repórter Especial”, com isso recebendo duas horas a mais, sem a obrigação de cumpri-las. Era um meio de tornar meu salário mais atrativo. Mas, esse acerto tinha um custo. As principais matérias, quase sempre assinadas na primeira página do jornal mais vendido em bancas naquela década, eram feitas e assinadas por mim e, soube mais tarde, pelo Nelson Del Pino, outro grande amigo jornalista, falecido precocemente, que tinha o mesmo privilégio das duas horas extras. O fenômeno da casa mal assombrada sobrou pra mim. Achava aquele tipo de reportagem uma tremenda bobagem, mesmo sabendo do seu efeito sensacionalista. Tentei cair fora dessa incumbência. Estava acostumado a cobrir crimes da pesada, participar até de tiroteios entre policiais e bandidos - foram muitos - mesmo se escondendo, às vezes, embaixo de viaturas, mas era meu campo preferido. Tentei empurrar esse caso para o Del Pino, sem êxito, ele estava envolvido numa série sobre tráfico de drogas. Assim, marquei com o fotógrafo Tarcísio Leite e com o motorista do NP, apelidado de “Paletó”, que no dia seguinte, à tarde, horário onde o fenômeno sempre se manifestava, iríamos cumprir essa pauta, que eu nem imaginava, se transformaria numa série de reportagens. No final do expediente, quando deixei o prédio da Folha de São Paulo, na Rua Barão de Limeira – o NP ficava no quinto andar do prédio – encontrei-me com o Tarcísio e o “Paletó” na padaria situada quase em frente ao jornal. Percebi que mudaram de assunto assim que cheguei. Os dois, sorrindo sem graça, me ofereceram um copo de cerveja. Aceitei e o papo dos finais de tarde fluiu sem nenhuma novidade. Quando eu procurava tocar no assunto sobre a reportagem do dia seguinte, mudavam de conversa. Cheguei a pensar que estavam assustados diante da perspectiva de encarar o mistério da casa mal assombrada de Pirituba. “Paletó”, o motorista, era um sujeito engraçado. Pequeno, bigodes ralos e mal cuidados, cabelos longos e desgrenhados, tinha esse apelido porque insistia em usar um paletó xadrez - que era maior que ele - no frio ou calor. Bom motorista, conhecia São Paulo e região como ninguém. Tarcísio, um dos fotógrafos exclusivo do NP – os demais eram emprestados pela "Agência Folhas" - conversava pouco e era avesso às blusas ou paletós, mesmo com a temperatura baixa. Um dos melhores profissionais que tive oportunidade de trabalhar. Respeitado na profissão, contava com muitos prêmios de fotografias. Com todas essas qualidades, a dupla ficava sempre à disposição para reportagens especiais.
No final da tarde do dia seguinte, uma sexta-feira (só faltava ser 13, não era), no fusquinha azul com logotipo do NP, seguimos para o endereço da casa chamada por nós de mal assombrada, em Pirituba, distrito da zona noroeste de São Paulo, cuja origem do nome é o resultado da justaposição da palavra tupi, piri ("taboa", planta que nasce em brejos) com o aumentativo tuba ("muito"). Minutos depois que chegamos, uma multidão se aproximou, todos querendo participar da reportagem, alguns com depoimentos exagerados, dizendo que até geladeira tinha voado da casa. Depoimentos seriam usados nessa reportagem, mas era preciso prova do fenômeno, para isso Tarcísio lá estava com sua Canon com objetiva para documentar. Além dos vizinhos, seria preciso entrar na casa e conversar com os moradores, sabíamos disso.

Começo de noite. Nuvens escuras bailavam no céu de Pirituba e raios ameaçadores transformavam aquela casa, vista à distância por nós, num verdadeiro castelo de terror. Era apenas o começo do que estava por acontecer...
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Amanhã, no blog, “O feitiço vira-se contra o feiticeiro”, sequência dessa série da casa mal assombrada de Pirituba. Bom deixar claro que esse caso chamou a atenção de todos os órgãos de imprensa da época e não se tratava de sensacionalismo do Jornal Notícias Populares, ou fruto de ficção. Muitos pesquisadores investigaram o fenômeno, contado pelas próprias pessoas que vivenciaram essas experiências bizarras. São eventos típicos que compõem os chamados casos poltergeist (do alemão polter = barulhento; geist = espírito), começaram a ser assim chamados sistematicamente por Martinho Lutero (1483-1546) durante a Reforma Protestante para designar determinados eventos que, segundo se acreditava religiosa e popularmente, seriam provocados por espíritos desencarnados ou até mesmo por demônios.
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*Edward de Souza nasceu em Franca, é Jornalista e radialista. Trabalhou nos jornais, "Correio Metropolitano", "Diário do Grande ABC" e "O Repórter", da Região do ABC Paulista. Em São Paulo, na "Folha da Tarde", "Jornal da Tarde", "Gazeta Esportiva", sucursal de “O Globo”, "Diário Popular" e "Notícias Populares", entre outros. Atuou na Rádio Difusora de Franca, Difusora de Catanduva, Brasiliense de Ribeirão Preto, Rádio Emissora ABC e Clube de Santo André; também nas rádios Excelsior, Jovem Pan, Record, Globo – CBN e TV Globo de São Paulo. Medalha João Ramalho, principal comenda do município de São Bernardo do Campo, outorgada pela Câmara Municipal daquela cidade pelos relevantes serviços jornalísticos prestados à região. Troféu PMzito, entregue pelo alto comando da Polícia Militar de Santo André por ter se destacado como o melhor repórter policial do ABC nos anos 70. Prêmio Sanyo de Rádio nos anos 80, como o melhor narrador esportivo do ABC Paulista. Menção Honrosa entregue em 2007 pela Câmara Municipal de Franca e outra pelo Rotary Clube Norte pela atuação brilhante na radiofonia da cidade. Participou da antologia O Conto Brasileiro Hoje, 7°, 8º, 9º e 10º edições, com os contos “Um Visitante Especial”, “Sonhos Dourados” “A Lua de Mel” e “O Sacristão”, além de diversas outras antologias de contos e ensaios. Assina atualmente uma coluna no Jornal Comércio da Franca, um dos mais tradicionais do interior de São Paulo.
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sábado, 27 de junho de 2009

PERERECA BUROCRÁTICA
NA ESTRADA
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GUIDO FIDELIS
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Eis que de repente, para espanto geral, surge no meio da estrada em construção, como se fosse um fantasma saído das profundezas infernais, uma solitária perereca. Os trabalhadores encarregados da obra de construção da rodovia destinada a facilitar o escoamento da produção agroindustrial e o fluxo de turistas entre Brasil e Argentina, ficam assombrados com a súbita aparição.
Paralisados os serviços, renomados técnicos são convocados para solucionar o complexo problema. Mestres, doutores e especialistas em questões ambientais promovem reuniões, realizam simpósios, debruçam-se sobre a misteriosa origem da perereca.
Após muitos e muitos demorados debates concluem que não se trata de alienígena, provindo de um planeta perdido no universo, desembarcado de um objeto voador não identificado, apesar do pequeno porte e de possuir dedos terminados em ventosa, além de membrana elástica.
A fim de dirimir dúvidas e possibilitar o fim do terrível impasse, chegam intérpretes e investigadores, convocados de todas as partes do mundo. Interrogado com técnicas modernas de investigação, o anfíbio anuro, da família Hylidae, não responde às perguntas que lhe são dirigidas em inglês, francês e espanhol. Talvez seja uma perigosa perereca espiã, chegada da Rússia, da China ou do Paquistão com a missão de verificar nosso programa nuclear.
O tempo flui sem que se chegue a uma conclusão. Dirigentes de órgãos governamentais entram na discussão, bem como representantes de organizações não governamentais que defendem a preservação da flora e da fauna e que sonham com uma volta ao passado, quando bastava uma trilha para caminhar à pé ou montado num vistoso cavalo.
Sob sol e chuva os trabalhadores aguardam ordens, muitos são demitidos para diminuir custos operacionais. Máquinas enferrujam ao longo dos canteiros, trechos concluídos sofrem desgaste, deterioram, precisam ser recompostos. Prejuízos se acumulam diante da longa paralisação imposta pela burocracia sem limites.
Milhares de pesquisas são realizadas com a finalidade de descobrir se a perereca pertence a algum ramo em extinção e se deriva de alguma sub-família brasileira ou argentina, já que ela se colocou, como obstáculo, na rodovia de ligação entre os dois países, obrigando os trabalhadores a recuarem como se fossem militares que batem em retirada diante da iminente vitória inimiga na batalha que se trava.
Muitos tratados são escritos, centenas de artigos merecem publicação em revistas especializadas de universidades. O enigma persiste. Decorridos sete meses, o veredicto final é dado, uma sentença esclarecedora: a perereca não corre risco de extinção, pode ser removida para o seu habitat.
Inicia-se, então, nova etapa de reuniões para decidir o tipo de remoção mais indicado. Uma carruagem real puxada por belos animais? Um recipiente de ouro para oferecer-lhe conforto de deputado?
Súbito, um assessor do assessor, olhos lacrimejantes, aproxima-se e pede aparte. Diz, com voz embargada: “Trago uma triste notícia para a comunidade científica. Apesar de todos os cuidados, a perereca morreu. Quer que providencie um enterro de luxo? Antes, temos de verificar o impacto ambiental da abertura de uma sepultura na mata. Vamos debater a questão.”
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*Guido Fidelis, jornalista, escritor cosmopolita, sensato, pé no chão, também advogado é outro dromedário da imprensa paulista. Ex-Última Hora, Diário do Grande ABC, A Nação e A Gazeta, sua pulsante literatura deixa pouca dúvida a respeito de suas preferências: drama policial com um aroma decididamente neonaturalista. Realmente, sua floresta urbana São Paulo é, mais frequentemente do que não, comprimida em um gênero ainda considerado opressivo. Guido Fidelis tem mais de uma dúzia de livros publicados. A última obra de Fidelis, Corredeiras do Tempo (Rapids of Time), mostra uma propensão marcante para a abstração acima da ação. Ao invés de policiais e ladrões, o leitor se encontra imerso em atmosferas densas caracterizadas por uma forte ênfase no simbolismo. No final, a narrativa filosófica de Guido Fidelis chega através de curtas-metragens, ricos em lirismo e um prazer para ler.
Visite o blog de Guido Fidelis: http://guifidel.blogspot.com/
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sexta-feira, 26 de junho de 2009

EU AINDA EXISTO
J. Morgado
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A frase do título eu a extrai de um filme espiritualista intitulado “AMOR ALÉM DA VIDA”. Robin Willians e Cuba Gooding Jr. estão entre os principais atores dessa obra cinematográfica, datada de 1998, da Universal Studios.
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Nos últimos anos, o cinema americano tem produzido muitos filmes abordando o tema “além da morte” e a reencarnação. Alguns deles se aproximando bastante do que a Doutrina Espírita nos ensina. Infelizmente o misticismo e a fantasia ainda prevalecem. A explicação é sempre a mesma, o vil metal. Se assim não fosse, talvez eles não conseguissem atingir os objetivos comerciais almejados. Mas, de qualquer forma, nota-se que naquele país do hemisfério norte os simpatizantes do Espiritismo aumentam. Palestras proferidas por brasileiros que lá vão a convite divulgar a Doutrina dos Espíritos e os filmes produzidos por aquele país comprovam essa realidade. Verifica-se que quase todos eles tiveram suas bases em obras psicografadas por Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, além de outros de nacionalidades diversas.
No filme que estamos abordando, o umbral nos é mostrado de uma maneira bem interessante. “Nosso Lar”, ditado pelo espírito André Luiz; “Memórias de um Suicida”, de Ivone Amaral Pereira, etc. estão retratados razoavelmente nesse filme.
É evidente que os leitores ficarão curiosos, razão pela qual vamos transcrever a sinopse do filme: “Após a morte de seus dois filhos, Chris e Annie passam por várias dificuldades emocionais. Anos depois, Chris também morre e vai para o Paraíso. Annie acaba se suicidando. Diferente de Chris, ela vai para uma espécie de purgatório onde ficam as almas perturbadas. Quando descobre o destino da mulher, Chris embarca numa jornada em busca da salvação de sua alma, provando que o amor, desafia qualquer infortúnio.” Em nenhum momento se toca o nome de qualquer religião. Fala-se de ir e vir do mundo espiritual e material de uma forma bem natural.
O espírito perturbado do desencarnado assedia a esposa constantemente. A tristeza e o estado de prostração da mulher lamentando a morte do marido fazem com que ele tente consolá-la. Em determinado momento ele diz: “estou aqui amor, continue pensando em mim, eu ainda existo”. Essa frase é repetida várias vezes. A personagem fica desesperada, pois, apesar de sentir a presença do esposo, não acredita no que “está ouvindo” surdamente em seu cérebro. O esposo desesperado, inconscientemente toma a mão da amada e faz com que ela escreva a frase “eu ainda existo” de uma forma forçada. Os olhos reviram-se como se mostrasse uma pessoa em momentos de transe mediúnico. Lentamente, duas mãos percorrem o papel. As letras, deformadas, juntam-se para formar a frase. É uma cena impressionante. A psicografia mecânica ocasionada por um obsessor (no caso, o marido) nos mostra que o autor e o diretor do filme conhecem a ciência espírita. O desespero da mulher faz com que o espírito se afaste em busca de seu destino, pois descobrira que sua presença prejudicava a mulher amada. Outras cenas se seguirão mostrando vários fundamentos da doutrina espírita
Apenas cento e cinqüenta anos são decorridos desde a Codificação. O Espírito de Verdade, prometido por Jesus dezoito séculos antes, se manifestara. O início do movimento no Brasil foi promissor. Figuras de projeção na sociedade se declararam adeptos do Espiritismo. Entre eles, Dr. Bezerra de Menezes (l831/1900), um dos fundadores da FEB (Federação Espírita Brasileira), cognominado “Médico dos Pobres”. Diante de uma platéia de mais de duas mil pessoas, revelou-se espírita. Seu despertar foi o “Livro dos Espíritos” que começou a ler em uma pequena viagem de bonde entre o centro do Rio de Janeiro e o bairro da Tijuca. Destruição de livros na Espanha, perseguições policialescas no Brasil e inúmeras outras dificuldades não impediram a proliferação da Doutrina dos Espíritos.
O Brasil é hoje o centro irradiador da doutrina em seu tríplice aspecto: ciência, filosofia e religião. Nos rincões mais longínquos da Terra o Espiritismo começa a ser conhecido. E é com as revelações do Espírito de Verdade que os seres humanos começam a entender que eles jamais deixarão de existir.
O item 23 do Capítulo IV do Evangelho Segundo o Espiritismo (edição IDE/84) nos diz: “Em resumo, quatro alternativas se apresentam ao homem para seu futuro de além-túmulo; primeira, o nada, de acordo com a doutrina materialista; segunda, a absorção no todo universal, de acordo com a doutrina panteísta; terceira, a individualidade com a fixação definitiva da sua sorte, segundo a doutrina da igreja; e, quarta, a individualidade com progresso indefinido, segundo a Doutrina Espírita. De acordo com as duas primeiras, os laços de família se rompem depois da morte e não há nenhuma esperança de reencontro; com a terceira, há a chance de se rever, contanto que se esteja no mesmo meio, e esse meio pode ser tanto o inferno como o paraíso; com a pluralidade das existências, que é inseparável da progressão gradual, há a certeza na continuidade das relações entre aqueles que se amaram, e está aí o que constituí verdadeira família”.
Meus amigos, um dia a humanidade deixará de olhar para o umbigo e começará a reparar o que existe a sua volta. Verá as árvores mudarem de roupagem todos os anos. A influência das estações em nossas vidas. O sol nascer todos os dias, as fases da lua e sua importância na Natureza. As chuvas, as secas prolongadas... Notará a imensidão do Céu com suas estrelas e começará a imaginar o Universo que já ouviu falar. Descobrirá que se jogar uma pequena bola contra uma parede ela fatalmente voltará. Então... Começando a raciocinar, verá que a vida é muito mais do que pensava ser e descobrirá que como parte da Natureza e sendo um ser pensante e com individualidade própria, ele sempre existirá.
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*J. Morgado é jornalista, pintor de quadros e pescador de verdade. Atualmente esconde-se nas belas praias de Mongaguá, onde curte o pôr-do-sol e a brisa marítima. Morgado escreve quinzenalmente neste blog, sempre às sextas-feiras. E-mails sobre esse artigo podem ser postados no blog ou enviados para o autor, nesse endereço eletrônico: jgacelan@uol.com.br
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quinta-feira, 25 de junho de 2009

CASSARAM O DIPLOMA DOS JORNALISTAS

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APRENDENDO A DIFICIL ARTE
DE FAZER SOPA COM LETRINHAS
Foi um golpe na imprensa brasileira a decisão do STF que torna opcional o diploma de jornalismo para o exercício da profissão. Num momento em que a imprensa se vê invadida por segmentos totalmente estranhos à categoria, essa liberação além de danosa é perigosa e preconceituosa. O ministro Gilmar Mendes fez graça e por cima comparou a função de jornalista com a de cozinheiro. Nada contra, toda profissão deve ser respeitada, desde que seja exercida com dignidade. Eu jamais me atreveria a entrar na alçada de um mestre da cozinha, nem ele na minha, a não ser dentro de casa onde, acredito, ele escreva lá os conceitos dele assim como eu, escondidinho, faço minhas acanhadas incursões pelo fascinante mundo da culinária. De modo que, se o ministro da mais alta Corte quis ofender um ou outro lado, quebrou a cara, deu com os burros n´água. Ainda é cedo para sabermos que efeito terá a decisão do STF contra a exigência do diploma para o exercício do jornalismo. Somente o tempo nos permitirá conferir o resultado, mas certamente essa decisão vai concorrer para o aviltamento salarial e a invasão do mercado por qualquer um que seja alfabetizado. Não que o jornalismo seja algo tão mágico, mas, como toda profissão, exige técnica e treinamento que só uma universidade pode oferecer. Vamos estender essa baderna à medicina, engenharia, advocacia e outros setores? Acompanhem o texto de Nivia Andres sobre esse assunto. Com direito a uma deliciosa receita, afinal, jornalistas e cozinheiros estão juntos numa mesma panela.
(Edward de Souza)
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Vou virar chef de cuisine
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NIVIA ANDRES
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Como todo mundo já sabe, o diploma de jornalista foi desclassificado pelo STF. Ninguém precisa mais de diploma para exercer essa profissão. Os preclaros juízes togados da corte superior decidiram, por goleada (9x1) que, a partir de agora, todo mundo pode ser jornalista. Não, não pensem que sou radical! Há excelentes profissionais sem diploma que têm texto apuradíssimo, abordagens preciosas e conhecimento vasto, tanto que dispensaram os bancos acadêmicos e nem por isso são menos admirados. Inclusive eu lhes rendo todas as loas pelo brilhantismo, argúcia, engenhosidade, perspicácia e sutileza, além, é óbvio, da integridade e do comportamento ético com que se movem quando se trata, especificamente, do texto jornalístico. Notem bem, não estou sendo irônica nem sarcástica. É o que penso.
Além do mais, acredito piamente que quem não tem competência não se estabelece e talento é fundamental, abre portas e janelas. Mas no caso da nossa profissão, só talento não basta, há que ter conhecimento - saber técnico. E não venham me dizer que jornalismo não é ciência. É, sim, faz parte da ciência da comunicação. Para dominá-la, é preciso muito estudo, muita vontade e bastante talento, além de uma porção avantajada de força de vontade e capacidade de superar obstáculos, principalmente os advindos das dificuldades econômicas, porque raramente os profissionais do jornalismo são bem remunerados - muitas vezes têm que desdobrar-se em vários empregos para garantir vida digna.
Pois bem, o próprio ministro presidente do STF, em sua justificativa de voto, argumentou que o exercício de muitas profissões não carece de diploma e citou, entre outras, a de chef de cuisine, maneira charmosa de denominar a função de cozinheiro. Sabem que gostei da idéia? E como possuo todos os requisitos para habilitar-me, acho que vou virar chef de cuisine... Adoro cozinhar e já aviso que piloto um fogão como poucas mulheres, além do que esta profissão está na moda. Meu nome também serve - Nivia Andres - parece simpático e se precisar, vou galicizá-lo, adotando, também, o meu segundo nome, Maria, escrevendo-o em francês, Marie, comme il faut. Ah! Um detalhe importante, como escrevo e falo francês fluentemente, vou adotar o sotaque e misturar algumas palavras do idioma de Napoleão, como o faz, très bien, o famoso Claude Troisgros, em que pese esteja radicado no Brasil há muitos anos... Já aviso que a minha preferida é a cozinha mediterrânea, sabidamente a mais saudável! Ah! Também entendo de vinhos e de decoração, embora não esteja nos meus planos, em princípio, o de abrir um restaurante. Mas não vou abrir mão de vestir um uniforme elegantíssimo, com a minha marca bordada, em letras góticas, maravilhosa! E desenhado e costurado por mim, porque também entendo de design e sei costurar com perfeição. E bordar, também...
Também não vai ser difícil abrir e gerenciar uma empresa, já que entendo bastante de gestão, mercê dos anos em que atuei, como assessora de comunicação, em uma entidade empresarial, na qual aproveitei para fazer muitos cursos específicos na área de administração e controle.
Para arrematar, vou deixar-lhes uma pequena prova, em primeira mão, de um dos pratos do menu que vou disponibilizar aos clientes. É uma receita de família, muito admirada por quem já provou - prática, simples e refinada: Um pacote de massa fresca, tipo talharim (500g); uma bandeja (250g) de cogumelos de Paris (frescos); duas cebolas médias, finamente picadas; dois dentes de alho, muito bem picados; duas colheres de sopa de azeite; duas caixas de creme de leite light (17% de gordura); 50g de manteiga sem sal; uma colher de chá rasa de orégano; uma colher de chá de salsa seca; 50ml de molho shoyu; pimenta calabresa a gosto; queijo parmesão ralado a gosto e sal a gosto, conforme o seu paladar. Prefira o sal marinho, que é mais saudável, em quantidade moderada, porque o shoyu já é salgado.
Modo de fazer: Em uma panela grande, coloque água (para cozinhar a massa), com um fio de óleo e sal a gosto. Para o molho: tire a pele dos cogumelos e corte-os em fatias bem finas, no sentido do comprimento; coloque o azeite na panela e misture com a manteiga; acrescente a cebola e o alho e cozinhe até que estejam transparentes, sem dourar. Acrescente a pimenta, o orégano, a salsa e os cogumelos; mexa para misturar com a cebola e o alho e deixe cozinhar por dez minutos, até que os cogumelos estejam macios e quase seque a água que produzem. Em seguida, acrescente o creme de leite, o shoyu e o queijo, incorporando-os bem. Cozinhe a massa conforme as instruções da embalagem e após, escorra e incorpore o molho. A porção é suficiente para cinco pessoas. Se quiser dobrar a quantidade de massa, aumente o molho, acrescentando um pouco de leite. Costumo servir este prato acompanhado de uma carne assada - prefiro um tatu recheado e uma boa salada de folhas - alface americana, rúcula e radicchio .
Brincadeiras a parte, nessa era pós-inutilidade do diploma, se é que posso sugerir algo àqueles que desejam seguir a carreira de jornalista, aconselho que sigam estudando muito, lendo muito, escrevendo muito e procurando especialização, cada vez mais. Saber, aliado a talento e criatividade abrem muitas portas e janelas, para qualquer profissional. Com diploma, ou não.
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*Nivia Andres, jornalista, graduada em Comunicação Social e Letras pela UFSM, especialista em Educação Política. Atuou, por muitos anos, na gestão de empresa familiar, na área de comércio. De 1993 a 1996 foi chefe de gabinete do Prefeito de Santiago, Rio Grande do Sul. Especificamente, na área de comunicação, como Assessora de Comunicação na Prefeitura Municipal, na Associação Comercial, Industrial e de Serviços (ACIS), no Centro Empresarial de Santiago (CES) e na Felice Automóveis. Na área de jornalismo impresso atuou no jornal Folha Regional (2001-06) e, mais recentemente, na Folha de Santiago, até março de 2008. Blog da jornalista: http://niviaandres.blogspot.com/
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terça-feira, 23 de junho de 2009

DATA MARCADA COM A MORTE
MILTON SALDANHA
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Capítulo do livro inédito “Periferia da História”, especialmente
adaptado para o blog do Edward de Souza.
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O episódio que vou contar aqui aconteceu alguns meses depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, iniciando o período da ditadura. O Uruguai ainda tinha regime democrático e lá se formou uma colônia de exilados brasileiros, com civis e militares. Os personagens mais importantes e famosos dessa colônia eram o ex-presidente João Goulart, o Jango, e o ex-governador gaúcho Leonel Brizola, que na época do golpe era deputado federal.
Até onde ia o delírio e a fantasia das pessoas não sei, mas o fato é que de uma hora para outra me vi envolvido numa grande enrascada, para a qual, aos 18 anos, não estava preparado: fui convocado para uma conspiração que pretendia desalojar os militares recém instalados no poder, restabelecendo a democracia ou, talvez, substituindo uma ditadura por outra, com a volta de Jango e Brizola do exílio.
Eu não tinha vínculos formais com nenhum partido político ou com qualquer outro tipo de organização. Fazia política estudantil, integrando um grupo de lideranças de esquerda, tão numeroso que lotaria uma Kombi, mas dotado de brilho intelectual, proporcional à nossa idade, e capacidade incrível de agitar. Entre os garotos havia ótimos oradores. Um deles era Tarso Genro, atual ministro da Justiça, como já contei aqui no blog do Edward. Eu escrevia num dos dois jornais de Santa Maria, RS, “A Cidade”, de propriedade do jornalista Clarimundo Flores, meu primeiro grande e inesquecível mestre na profissão. Foi Clarimundo, muito ligando ao Brizola, homem da sua confiança, que me meteu nessa confusão. Ele recebia seguidamente emissários em seu apartamento, os chamados “pombos correio”, que eram os contatos dos exilados com os políticos e militantes no Brasil. Aires era um deles. Sujeito todo metido a machão, fanfarrão, que adorava curtir o status de bandido, contar suas façanhas, e de ouvir relatos sobre outros bandidos. Era alto, claro, com olhos de raposa e um bigode que formava duas pontas afinadas que lhe conferiam expressão agressiva. Andava sempre bem barbeado e penteado, unhas feitas por manicure, ternos bem cortados, escondendo sob o paletó duas pistolas. A caricatura perfeita do capanga vaidoso. O cara me impressionava, ou melhor, assustava. O Aires passava um medo físico às pessoas e parecia gostar disso. Ele foi o “pombo correio” responsável pela enrascada em que me meti.
O contragolpe, com o suposto apoio de um coronel com o comando de poderosa tropa de blindados, informação de que sempre duvidei, mais sargentos e contingentes da Brigada Militar (a PM gaúcha), consistiria em tomar os quartéis na madrugada, com golpes de mão, como se diz no jargão militar. Contavam que estavam sendo até confeccionadas fardas para os civis que participariam da ação, onde o elemento surpresa seria essencial. Como se os militares fossem imbecis e não estivessem preparados para essa possibilidade. A confusão era tão mal planejada, que eu, um garoto, sabia tudo isso. Imaginem se poderia dar certo.
Minha missão seria participar da tomada de uma rádio, simultaneamente ao ataque aos quartéis, de onde ficaríamos emitindo proclamações ao povo, chamando-o também à luta. É indispensável explicar aqui que Santa Maria, localizada no coração do Rio Grande do Sul, bem no centro, é um poderoso centro militar terrestre e aéreo, montado ali como estratégia para eventual confronto com a Argentina, possibilidade sempre presente na articulação da defesa nacional. Não é por mero acaso que o III Exército, com jurisdição até o Paraná, foi sempre o maior dos quatro, embora o mais bem equipado tecnologicamente seja sempre o primeiro.
Sem talento e vocação para herói, eu não estava achando a menor graça nessa brincadeira e comecei a vislumbrar o risco da morte se aproximando. Imaginava até a cena, eu lá atrás do vidro da cabine de locução, falando ao microfone, e os inimigos invadindo a rádio à bala, atirando, o que não era nada inverossímil, pois eles é que tinham as armas e no golpe já tinham demonstrado disposição de luta. E as nossas armas, como e de onde viriam? E o nosso treinamento? Nunca soube.
Passei muitos dias preocupado, tinha insônia. Cumprindo orientações, não comentava nada com ninguém, muito menos em casa, onde isso causaria imprevisível impacto. Ao mesmo tempo, ao contrário do que faria hoje, eu não tinha coragem de dizer “isso é uma aventura muito louca, tô fora”, como seria o correto. Quando você é muito jovem, e está envolvido com compromissos políticos muito fortes, vai deixando de ser dono da própria vontade. Por maior que seja a insanidade, como era esse plano, você tem compromissos com seus companheiros e quer preservar sua integridade moral até o fim, a qualquer preço. Apesar do medo, aceitei minha tarefa e fui aguardando instruções. A experiência me ensinou que coragem não é desconhecer o medo e sim conseguir suportá-lo com responsabilidade. Bandidos são péssimos soldados, porque são covardes, entram fácil em pânico. Os melhores soldados foram sempre os homens do bem, que não abandonam seus postos porque pensam na vida também dos seus companheiros. É o senso de responsabilidade falando mais alto.
A ação deveria eclodir no prazo máximo de um a dois meses, dizia-me Clarimundo Flores, enquanto a cada duas semanas o macabro Aires aparecia por lá. Eu fazia contagem regressiva. E o pior é que não acreditava na possibilidade da nossa vitória. Ou seja, tudo de ruim para um confronto, que é o moral baixo. Era burrice demais. Os militares tinham acabado de dar um golpe com tremenda demonstração de força. Fui me preparando para o pior. Até que numa tarde Clarimundo me chamou e informou que o plano tinha vazado, os militares já sabiam de tudo. Por essa razão, “o Uruguai” (referindo-se aos exilados), tinha decidido abortar.
Ufa! Saí do apartamento e entrei no primeiro bar. Precisava de uma cerveja.
Algum tempo depois eclodiu aquela aventura maluca do coronel Jefferson Cardin, que tomou as armas de um destacamento de fronteira da Brigada Militar, lançou um manifesto anunciando o início da guerra civil, e saiu com seus revolucionários em cima de um caminhão, sem saber o que fazer e para onde ir. O Exército mobilizou todos os seus efetivos gaúchos e catarinenses para pegá-los. Tiveram o choque, numa estrada, e quase todos os rebeldes morreram em combate. Na lista dos mortos, divulgada em todos os jornais, um eu conhecia e me chamou a atenção: era o Aires.
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*Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho da fronteira, é jornalista profissional, com mais de 40 anos de atividades. Começou em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1963. Foi repórter e exerceu cargos de chefia em alguns dos principais veículos do Brasil, como Rede Globo, jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, Diário do Grande ABC, revista Motor 3, Folha da Manhã (RS) e outros. Foi repórter em Última Hora, trabalhando com Samuel Wainer. Já assinou artigos e reportagens em mais de uma centena de publicações de todo o Brasil. Trabalhou também em assessoria de imprensa, para empresas e entidades públicas, como Ford Brasil, Conselho Regional de Economia e IPT- Instituto de Pesquisas Tecnológicas. É autor do livro “As 3 Vidas de Jaime Arôxa”, pela Editora Senac Rio, e participou como cronista da antologia “Porto Alegre, Ontem e Hoje”, pela Editora Movimento, do Rio Grande do Sul. Assinou também orelhas de diversos livros sobre dança e música, de autores brasileiros. Um ano antes de se aposentar, quando era editor-chefe do Jornal do Economista, em São Paulo, fundou o jornal Dance, que em julho completa 15 anos. Tem novo livro pronto, ainda inédito. É “Periferia da História”, onde conta de memória 45 anos da recente história brasileira. Trabalha em novos projetos editoriais, como jornalista e escritor. Na área de dança, organiza uma coletânea com os melhores editoriais publicados no Dance. Atualmente prepara um livro sobre Maria Antonietta, grande mestra da dança de salão carioca, que morreu recentemente. Apaixonado por viagens conhece quase todo o Brasil e já visitou cerca de 40 países. Por hobby e paixão é dançarino de tango.
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segunda-feira, 22 de junho de 2009

VIAJANDO COM PORCOS, GALINHAS E CABRAS PARA TRANSMITIR UM JOGO

ALAGOINHAS, INTERIOR DA
BAHIA DE TODOS OS SANTOS
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OSWALDO LAVRADO
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Começava o ano de 1984. O Santo André havia acabado de entrar na Primeira Divisão do Brasileirão e toda a região do ABC estava eufórica com a façanha do Ramalhão (apelido do clube). O primeiro jogo de uma maratona que só acabaria em julho, aconteceu no dia 29 de janeiro daquele ano. Foi na cidade de Alagoinhas (Bahia), cerca 100 quilômetros de Salvador.
A Rádio Diário passava por momentos conturbados em virtude de uma virada no comando interno da emissora. Essa mudança, ocorrida no final de dezembro de 83, provocou a demissão de companheiros (uns 30), que integravam vários departamentos (produção, programação, repórteres, locutores e operadores). O setor de esportes, com 20 profissionais, foi reduzido para 8, exatamente quando assumi o comando do setor.
A rádio tinha tradição em acompanhar os times do ABC e, com ou sem crise, iria transmitir os jogos do Santo André no Brasileirão. Até o dia 10 de janeiro, 19 dias antes da estréia do time na Bahia, o esporte não contava sequer com um patrocinador para "cacifar" a empreitada. Situação que impediria o deslocamento da equipe e, consequentemente, o cancelamento da primeira transmissão externa da emissora. Mas, a luz no final do túnel clareou e dois iluminados patrocinadores surgiram quase no apagar das luzes. Casas Bahia (sim, a sempre presente Casas Bahia, do solidário Samuel Klein), e as Lojas A Esportiva (da família Silvio Duarte, tradicional na região) patrocinaram a transmissão. De acordo com os recursos e condições da época escalamos a equipe que iria até Alagoinhas acompanhar o jogo do Santo André: Rolando Marques (narrador), o gaúcho Jurandir Martins (repórter) e o comentarista Oswaldo Lavrado - que não por acaso sou eu - estava de bom tamanho.
Embarcamos num vôo da Varig das 2h da madrugada (que à época ainda saia de Congonhas). Os bilhetes para viagens noturnas ofereciam um desconto de 20% e, como éramos um trio, a economia foi considerável. A viagem, com uma escala de quase 2h, no Galeão, no Rio de Janeiro, durou 3h30. Desembarcamos em Salvador por volta das 7h30 da manhã. No aeroporto 2 de Julho (atual Carlos Eduardo Magalhães), nos aguardava o gerente de esportes do Santo André, Roberto Nasser Bartoli, o Turcão, que hoje ocupa o cargo de diretor do Departamento de Lazer da Prefeitura de Santo André. Ao grupo, juntou-se o jornalista Divanei Guazzeli, enviado especial do Jornal Diário do Grande ABC, que faria a cobertura do jogo. Aboletados num táxi reservado pelo Turcão percorremos, num calor de quase 40 graus, a interminável avenida beira-mar de Salvador até a Praça Castro Alves, onde desembarcamos em uma garagem de ônibus da empresa Catuense, de propriedade do empresário Antônio Pena, magnata do transporte coletivo na Bahia e presidente da Catuense, time que o Santo André enfrentou em Alagoinhas.
Num ônibus meia-boca embarcamos eu, o Rolando e o Divanei. O Turcão e o Jurandir Martins, mais espertos enfrentaram de carro os 100 quilômetros da precária estrada que liga Salvador a Alagoinhas. Pior que a rodovia foi a via sacra no ônibus. Como era um sábado, tipo 12h, o coletivo parava onde havia alguém para embarcar (uma árvore ou um raro poste faziam a vez de uma parada convencional de ônibus). Crianças, adolescentes, adultos, sacos de farinha, um cão, um porco, algumas galinhas e uma cabra completavam a, para nós, inusitada carga do coletivo. Um calor infernal. A capacidade de 60/80 pessoas do ônibus pulou para 100 ou mais. No percurso, apenas as cidades de Camaçari (pólo petroquímico baiano) e a pequena Catu, que não possuía estádio, dai a Catuense jogar no município vizinho.
Após quase 3h de viagem, ufa!, chegamos a Alagoinhas. O motorista estacionou o veículo numa casa cercada por árvores para todos dos lados (também pertencia ao Antônio Pena), mas não ficamos lá. Saímos com a bagagem a procura de hotel. Só havia um na cidade e estava reservado à delegação do Santo André. Nestas alturas os relógios marcavam 21h. Com um jeitinho e após a aprovação do presidente do Santo André (Lourival Passarelli) e do técnico (Jair Picerni), o gerente do hotel arranjou um quarto onde nos instalamos - Eu, Rolando, Jurandir e Divanei. O "cicerone" Turcão sumiu. No domingo pela manhã, depois do café (café? deixa pra lá), topo com Miguel de Oliveira, massagista do Santo André, hoje no Palmeiras, que convida: "Lavrado, vem comigo que preciso encontrar gelo e o hotel não tem". Juntos percorremos, a pé, quase toda Alagoinhas e nada de achar o bendito gelo para o Miguel e seus jogadores. Os termômetros marcavam 41 graus na cidade. Pavio curto e com cara de poucos amigos o massagista do Santo André blasfemava: “que diabo de lugar é este que nem gelo tem?". Eu fiquei na minha uma vez que, como o Miguel, eu estava ressabiado com Alagoinhas. Salvo pelo gongo, Miguel de Oliveira conseguiu duas panelas com gelo, fornecidas pelo dono de um boteco (tirou da sua geladeira), que se apiedou com a angústia de meu amigo. Antes de chegar ao hotel passamos por uma feirinha, sem nenhuma banca, com toalhas e lençóis esparramados pelo paralelepípedo de uma rua imunda e calorenta. Sobre esses panos estavam espalhados sacos com farinha, rapadura, carne de todo tipo, frutas, verduras e outros alimentos. Ao lado, porcos, cabras, patos e galinhas (vivos) expostos para venda. Com o sol a pino, o mau cheiro era insuportável.
Bem, tipo 12h30 nossa equipe, já na companhia do pessoal da Rádio ABC de Santo André, rumou para o estádio. Para as duas e únicas rádios que estavam naquela praça de esportes havia linha de transmissão, instalada pela TeleBahia, mas não tinha terminal para o repórter de campo, que na Bahia e no Rio de Janeiro são chamados de repórter de pista. Após algum entrevero com a inexperiente turma da telefônica baiana, o problema foi resolvido e a Diário e a ABC conseguiram cumprir com seu dever "cívico" de transmitir a partida, que terminou com a vitória do Santo André sobre a Catuense por 1 a 0, gol do meia Rotta.
Dois ônibus apanharam a delegação do Santo André e também nós, das duas rádios. Sem ninguém consultar se a gente queria ou não, rumaram para a mesma casa, tipo mansão, com piscina interna e cercada por muitas árvores. Ali residia o glorioso Antônio Pena, já conhecido neste relato. O magnata havia convidado (ou obrigado), a turma de São Paulo, jogadores, comissão técnica, dirigentes do Santo André e nós, da Imprensa, para um jantar em sua casa. E que jantar... Numa sala enorme foram dispostas três grandes mesas com toalhas impecavelmente brancas e sobre as quais aportavam os mais variados tipos de comida baiana. O anfitrião não economizou nos detalhes. Mulheres vestidas de baianas (sic) pajeavam os convidados. Pratos de porcelana legítima, copos de cristal para cada tipo de bebida, que variava na qualidade e sabor. Tudo perfeito, não fosse um pequeno detalhe, fatal para nós paulistas: não havia nenhum tipo de talher, nem cadeiras. Os convivas se serviam, acreditem, com as mãos e comiam em pé.

Já passava da meia noite quando o empresário Antonio Pena colocou todos novamente nos dois ônibus, determinando aos motoristas que nos deixassem no aeroporto em Salvador, onde de madrugada retornamos, com escalas em Belo Horizonte e no Rio, a São Paulo, sem nenhum problema. Em Congonhas, claro, lá estava o nosso Lampião, motorista da rádio, sempre sorridente nos aguardando com a clássica pergunta: "e aí, tudo bem na viagem?" E a resposta de sempre, para encurtar conversa: "tudo Lampião, tudo."
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Oswaldo Lavrado - jornalista/radialista - trabalhou no Diário do Grande ABC, (rádio e jornal), e comandou a equipe de esportes da Rádio Diário por 10 anos. Atualmente é editor do semanário Folha do ABC.
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sábado, 20 de junho de 2009

PREFEITURA DE FRANCA VAI HOMENAGEAR
HISTORIADOR WANDERLEY DOS SANTOS
Edward de Souza

O Prefeito Sidnei Franco da Rocha, de Franca, atendendo nosso pedido, vai homenagear o historiador Wanderley dos Santos. Leiam parte de minha coluna publicada na última quinta-feira no Jornal Comércio da Franca: “Sempre se apela para a memória quando se quer buscar alguma coisa que se perdeu no tempo, distante de nossa visão. Mas há que se distinguir duas formas de memória. A recordação é o ato de trazer ao presente o que ficou no passado, no baú dos guardados. Mas memória também é a capacidade, a disposição, a faculdade que leva a transformar sonhos em realidade.
Segundo William James, podemos ter memória só de certos estados de ânimo que duram algum tempo. Importante é que a memória, em sua maior abrangência, deve se referir ao passado, de estar acompanhada de um processo emotivo. A memória, principalmente a histórica, não deve se perder precisa ser resgatada, perpetuada, de forma que as gerações que se sucedem se ilustrem com exemplos que devem ser seguidos.
Há cerca de um mês, em contato com o amigo Ademir Medici, jornalista que assina há mais de 30 anos a coluna “Memória”, no Jornal Diário do Grande ABC, soube de sua amizade antiga com o historiador Wanderley dos Santos, que morreu no dia 16 de janeiro de 1996 na Santa Casa de Franca, aos 44 anos de idade. Durante anos o jornalista trocou correspondência com o historiador e têm em seus guardados dezenas de cartas enviadas por ele, além de folhetos de encontros de historiadores da região de Franca, promovidos pela Prefeitura, Secretaria de Educação e Cultura e Fundação Municipal Mário de Andrade no Edifício Champagnat, todos enviados pelo Wanderley. Fiquei surpreso quando Ademir Medici me contou que Wanderley dos Santos, em agosto de 1989 fundou o Arquivo Histórico Municipal Capitão Hipólito Antonio Pinheiro, de Franca. Mais surpreso ainda fiquei ao descobrir que Wanderley dos Santos estava esquecido. Nada constava no arquivo que lembrasse seu fundador. Enviei um e-mail ao prefeito Sidnei Franco da Rocha notificando-o da injustiça que estava sendo cometida. Nesta segunda-feira, Marcelo Facuri, Assessor Especial de Comunicação da Prefeitura de Franca nos respondeu, informando que, em nome do prefeito Sidnei Franco da Rocha, a direção do Arquivo Histórico já está providenciando a identificação da Sala Wanderley dos Santos, incluindo fotografia e biografia do homenageado. Enfim, o reconhecimento que se fazia necessário”.
Na íntegra, o e-mail enviado pela Assessoria Especial de Comunicação da Prefeitura de Franca confirmando as homenagens a Wanderley dos Santos:

Caro Edward,
Em nome do prefeito Sidnei Franco da Rocha, registro o recebimento de seu email (enviado em 09 de junho de 2009, às 16h39). Agrademos a sugestão, ao mesmo tempo em que aproveito para informar que a direção do Arquivo Histórico já está providenciando a identificação da Sala Wanderley dos Santos, incluindo fotografia e biografia do homenageado.
Com saudações,

Marcelo Facuri

Assessor Especial de Comunicação

Prefeitura de Franca


NR:
Bom que se faça justiça. O Arquivo Histórico Municipal Capitão Hipólito Antonio Pinheiro foi criado na gestão do Prefeito Maurício Sandoval Ribeiro, em 1989, que assinou o decreto.
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O EXEMPLO QUE VEM DE FRANCA
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Ademir Medici

A notícia que chega de Franca aqui no Grande ABC é alvissareira. O prefeito Sidnei Franco da Rocha homenageará o historiador Wanderley dos Santos, criador do Arquivo Histórico Municipal Capitão Hipólito Antonio Pinheiro.
Criar a Sala Wanderley dos Santos, com fotos suas e a biografia em destaque, é a prova maior de que: 1) a Imprensa – no caso o Blog de Edward de Souza e sua coluna no Jornal Comércio da Franca – ainda consegue sensibilizar; 2) a Prefeitura de Franca mostra que é sensível à causa da Memória; 3) a homenagem que se prestará a Wanderley dos Santos demonstra que ele é merecedor disso, pois temos certeza que antes de responder ao jornalista Edward de Souza o prefeito Sidnei Franco da Rocha determinou à sua assessoria que pesquisasse a presença de Wanderley na cidade e observasse que o seu trabalho, plantado em agosto de 1989, frutificou e deixou seguidores.
Foi assim no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Wanderley deu vida ao acervo da Igreja de São Paulo. E formou seguidores. Hoje quem toca o Arquivo da Cúria é gente competente que conheceu e trabalhou com Wanderley. Muito provavelmente, em Franca, independente das questões partidárias, quem está à frente do Arquivo Histórico local trabalhou com Wanderley ou soube do seu trabalho e pôde aquilatar toda a sua competência e seriedade.
Solicitamos a Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Franca nos envie, com regularidade, as notícias ligadas ao projeto de reconstrução da História de Franca, a começar pelas homenagens a serem prestadas a Wanderley dos Santos. Publicaremos com alegria tais notícias na coluna “Memória”, que é diária e pode ser acompanhada no site do Diário do Grande ABC. Será o nosso jeito de também homenagear Wanderley e um exemplo para que as autoridades das sete cidades do Grande ABC também dele se lembrem.
Infelizmente, a exemplo do que vinha ocorrendo em Franca, também no Grande ABC Wanderley dos Santos não recebeu, até aqui, o reconhecimento que lhe é devido. Gente boa de Franca, parabéns. Vocês são 10.
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FRANCA E SUAS LINDAS MULHERES
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Édison Motta

Nascido na capital paulista e radicado desde a infância no ABC tive a oportunidade, uma única vez, no início dos anos 80, de conhecer rapidamente, a trabalho, a próspera cidade de Franca. E fiquei francamente encantado com o que vi: cá entre nós, deparei-me com a comunidade que reunia as adolescentes mais lindas por metro quadrado que já houvera descoberto. Lembro-me perfeitamente: quando chegávamos à cidade, num final de tarde, fazia parte de nosso trajeto passar defronte duas ou três escolas exatamente no momento em que terminavam as aulas. E as colegiais se dirigiam em grupos para suas casas. Como observador atento e discreto, contentei-me em apreciar a saúde, alegria e disposição daquelas jovens interioranas.
Hoje, bem sei através de meu amigo e irmão Edward Souza que Franca evoluiu, cresceu, mas preserva o pulsar vigoroso de seus melhores momentos do passado embora tenha se transformado numa cosmopolita cabeça de região. Não conheço pessoalmente o prefeito Sidnei Franco da Rocha. Mas sei que ele é amigo do Edward e, por tabela, meu amigo também. Aceite, portanto, caro prefeito, meus solenes e sinceros cumprimentos pelo singelo gesto de reconhecer Wanderley dos Santos como personalidade francana. Terei o prazer, assim que for possível, de visitar o espaço nobre ao qual será destinado seu nome e um resumo de sua importante biografia. Aquelas adolescentes de outrora ainda vivem no imaginário de beleza do meu passado. Fiz uma tênue descoberta sobre os valores de Franca. Nada que se compare ao intenso trabalho de Wanderley dos Santos que soube garimpar grandes preciosidades desta cidade que agora, aos poucos, estão sendo valorizadas.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

JOÃO GOULART, ÚNICO PRESIDENTE BRASILEIRO
QUE MORREU NO EXÍLIO
Quarenta e cinco anos depois de derrubado, João Goulart – o presidente que morreu no exílio – continua sendo um personagem esquecido pelos brasileiros. Ele dobrou o salário mínimo, recebeu o legado do mito Getúlio Vargas, aproximou o Brasil da China, governou no parlamentarismo e no presidencialismo, impôs à agenda nacional a reforma agrária e o limite de remessa de lucro das multinacionais e, derrubado pela última das ditaduras, foi o único presidente a morrer no exílio. Só os detalhes explosivos da biografia do gaúcho João Belchior Marques Goulart já seriam suficientes para alçá-lo à galeria das grandes figuras do País, batizar praças e ocupar espaços nobres nos livros de história. Trinta e três anos depois de sua morte e quatro décadas e meia após o golpe que derrubou o fazendeiro-sindicalista do poder, observadores da política ainda se debruçam sobre um dos enigmas da República: por que a figura de João Goulart é tão esmaecida? Por que Jango foi esquecido? Acompanhem agora o último capítulo dessa série assinada pelo jornalista Milton Saldanha.
(Blog Edward de Souza)
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Milton Saldanha
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Do livro inédito “Periferia da História”, adaptado para nosso blog.
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A LEGALIDADE
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EPÍLOGO
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A campanha da Legalidade acabou com uma conciliação, aceita por Jango, para evitar o confronto militar: seria implantado o regime parlamentarista. O presidente indicava o primeiro ministro, que por sua vez tinha que ser aprovado por dois terços do Congresso Nacional. No parlamentarismo o Congresso pode também retirar a confiança no primeiro ministro, derrubando-o.
A viagem de Jango de Porto Alegre para Brasília foi uma operação complicada, planejada pelo general Amaury Kruel, que tinha ido para o RS para lutar ao lado das forças legalistas. Depois, em 1964, comandando o II Exército, em São Paulo, esse general ajudou a derrubar Jango.
Vazou a informação de que oficiais da Força Aérea, inconformados, planejavam abater no ar o Boeing da Varig, especialmente cedido, que levaria o presidente. O próprio presidente da empresa, comandante Rubem Berta, pilotou o avião. Esse plano dos militares ficou conhecido como “Operação Mosquito”. Jango só deixou Porto Alegre quando recebeu garantias dos sargentos de Brasília, informalmente, nos bastidores, e formalmente do general Ernesto Geisel, então comandante da guarnição do Distrito Federal e chefe da Casa Militar do presidente interino Raniere Mazzili. No livro com as memórias de Geisel ele confirma esse episódio e conta como neutralizou os militares radicais. A atitude de Geisel não foi ideológica, ele tinha sido inclusive contra a posse de Jango e chegou a sugerir um plano de resistência à Legalidade a partir da tomada de Curitiba. Foi apenas uma questão de caráter pessoal, de honra, para cumprir a qualquer preço a palavra empenhada. Essa atitude engrandeceu a biografia do general, que muito depois, na ditadura, chegaria à presidência.
Tancredo Neves abriu a lista de primeiros-ministros. O tal parlamentarismo era ridículo e tornou o país ingovernável. Nenhum primeiro ministro durava no cargo e cada vez que mudavam era uma crise danada. O Exército vivia de prontidão. Para resolver o problema foi convocado um plebiscito. O povo decidiria Sim (ao parlamentarismo) ou Não. A campanha pelo Não ganhou as ruas. Brizola, Jango, Juscelino e muitos outros líderes faziam campanha pelo Não. O carro da minha família tinha um adesivo enorme, em vermelho e preto (as cores do PTB), com uma única palavra: Não! Esse adesivo estava por toda parte. O resultado do plebiscito foi esmagador, coisa assim de 90% em favor do Não. Com a irrefutável decisão popular ficava restabelecido o presidencialismo. Jango, finalmente, começava a governar, depois de vários meses de crises.
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*Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho da fronteira, é jornalista profissional, com mais de 40 anos de atividades. Começou em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1963. Foi repórter e exerceu cargos de chefia em alguns dos principais veículos do Brasil, como Rede Globo, jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, Diário do Grande ABC, revista Motor 3, Folha da Manhã (RS) e outros. Foi repórter em Última Hora, trabalhando com Samuel Wainer. Já assinou artigos e reportagens em mais de uma centena de publicações de todo o Brasil. Trabalhou também em assessoria de imprensa, para empresas e entidades públicas, como Ford Brasil, Conselho Regional de Economia e IPT- Instituto de Pesquisas Tecnológicas. É autor do livro “As 3 Vidas de Jaime Arôxa”, pela Editora Senac Rio, e participou como cronista da antologia “Porto Alegre, Ontem e Hoje”, pela Editora Movimento, do Rio Grande do Sul. Assinou também orelhas de diversos livros sobre dança e música, de autores brasileiros. Um ano antes de se aposentar, quando era editor-chefe do Jornal do Economista, em São Paulo, fundou o jornal Dance, que em julho completa 15 anos. Tem novo livro pronto, ainda inédito. É “Periferia da História”, onde conta de memória 45 anos da recente história brasileira. Trabalha em novos projetos editoriais, como jornalista e escritor. Na área de dança, organiza uma coletânea com os melhores editoriais publicados no Dance. Atualmente prepara um livro sobre Maria Antonietta, grande mestra da dança de salão carioca, que morreu recentemente. Apaixonado por viagens conhece quase todo o Brasil e já visitou cerca de 40 países. Por hobby e paixão é dançarino de tango.
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quinta-feira, 18 de junho de 2009

O RIO GRANDE EM PÉ, PELA LEGALIDADE
TERCEIRA PARTE
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Capítulo inédito do livro “Periferia da História”.

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Milton Saldanha
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No dia seguinte à renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, começou a crise político-militar. Vou resumir e simplificar ao máximo o que ocorreu: os ministros militares, liderados pelo general Odilo Denys, ministro da Guerra, achavam que Jango (João Goulart), o vice de Jânio, não poderia assumir o poder. Motivos: era comunista (nunca foi), ou simpático ao comunismo; defendia interesses populares; dizia-se herdeiro político de Getúlio Vargas; tinha pacto com sindicatos, etc. Os ministros tentaram o golpe, aproveitando que Jango estava em visita oficial à China, do outro lado do mundo. Tinha ido por delegação de Jânio, como parte da sua estratégia no frustrado golpe da renúncia.
Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, colocou a Brigada Militar protegendo o Palácio Piratini, desceu para o porão já armado de metralhadora, e requisitou com força policial a rádio Guaíba, do grupo Caldas Júnior , uma das mais potentes do Estado. Antes tomou o cuidado de colocar um batalhão inteiro da Brigada protegendo os transmissores e antena. Diretamente do porão do Piratini, microfone na mão, Brizola anunciou ao país que não aceitaria a ditadura militar, defendeu a posse do vice-presidente constitucional, e anunciou que não recuaria, nem que isso lhe custasse a vida. A partir daquele momento o Rio Grande do Sul começava a parar e se engajava maciçamente na resistência, movimento que ficou conhecido como Legalidade.
A Legalidade começou num dia bonito em Santa Maria, a 307 km de Porto Alegre, com céu muito azul, temperatura agradável. Ligamos o rádio por volta das 10 horas da manhã, acho que era um sábado ou domingo, porque a família estava toda em casa. As quatro rádios da cidade (Imembui, Santamariense, Medianeira e Guarantã) já estavam em rede com as rádios de Porto Alegre. Com profunda emoção, cheio de ênfase, mas ao mesmo tempo mantendo uma serenidade admirável, o escritor regionalista Manoelito de Ornellas, um grande prosador, locutor número 1 da Cadeia da Legalidade, diretamente do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, convocava o povo para a luta de resistência armada:
- O Rio Grande está em pé pela Legalidade!
- Querem rasgar a Constituição brasileira, mas o III Exército não aceita a ditadura!
- Salve o III Exército, salve o glorioso exército de Caxias!
E assim prosseguiu horas, com palavras de ordens. Em todas as rádios, mais de cem em cadeia, cobrindo todo o Estado, de ponta a ponta, só se ouvia aquilo. Nada de programação normal, nem de comerciais.
A voz de Manoelito de Ornellas, uma dicção privilegiada, mestre do improviso e de transformar qualquer fato numa história saborosa, tinha como fundo marchas militares, que subiam de volume e ocupavam os intervalos entre cada proclamação à nação. De vez em quando o próprio Brizola voltava ao microfone, com discursos contundentes da sacada do palácio, sob aplausos da multidão que já se formara ali na frente, na Praça da Matriz. A Rede da Legalidade se propagou cada vez mais, incorporando inclusive os rádio-amadores, com seus equipamentos domésticos, para que seu som chegasse nos mais remotos rincões dos pampas. Tinha também emissoras de Santa Catarina e Paraná.
Brizola passou todo o tempo entrincheirado no palácio, sob proteção do Batalhão Bento Gonçalves, da Brigada Militar. Porto Alegre vivia a maior ebulição de sua vida, com uma multidão cada vez maior se aglomerando na praça, onde já estavam instalados alto-falantes. Até se confirmar a notícia da adesão do general Machado Lopes, comandante do III Exército, a tensão foi enorme. Na preparação para a luta cinco mil revolveres e caixas de balas foram distribuídos a civis. Esse contingente armado ficou conhecido como Patrulha Taurus, a marca da arma. Foram distribuídos também lenços de pescoço para identificar os membros da patrulha. Quando a crise acabou poucas armas foram devolvidas.
O general Machado Lopes havia recebido ordens de Brasília para prender o governador e calar a Rede da Legalidade, a qualquer custo. Consta que Lopes num primeiro momento ficou indeciso, mas acabou aderindo à resistência por pressão de alguns oficiais e principalmente sargentos, dispostos inclusive a tomar o quartel. Meu tio, Paulo Drozinski, era sargento, servia justamente no QG, e foi um dos que se ocultou numa espécie de sótão, com armas, inclusive metralhadoras ponto 50, as maiores, aguardando pela definição do comando. Foram momentos de extrema tensão naquele quartel. Numa situação parecida a V Zona Aérea, da Força Aérea Brasileira, seguiu o Exército. Lá a situação também não foi fácil, ou bem pior. Os golpistas expediram uma ordem de bombardeio aéreo do palácio. Sargentos legalistas sabotaram aviões e colocaram tonéis na pista. Em discurso dramático, Brizola anunciou que resistiria até a morte, se preciso fosse. Teve a adesão e solidariedade de D. Vicente Scherer, arcebispo metropolitano. A Igreja Matriz fica ao lado do Piratini.
Quando a notícia da adesão do III Exército foi divulgada o povo entrou em delírio na praça. O general Machado Lopes se dirigiu do seu QG para o palácio, não muito longe dali. Lá formalizou a aliança e a subordinação da Brigada Militar ao seu comando.
Nós, lá de casa, em Santa Maria, acompanhando tudo pelo rádio (ainda não existia TV), chorávamos de emoção. Meu pai, oficial do exercito já na reserva, e que serviu muitos anos no Rio Grande do Sul, tinha um nó na garganta. “Este é o meu Exército, sinto orgulho do meu Exército”, dizia. Logo depois do almoço, sempre com o rádio ligado, fui com ele para o centro da cidade, onde já tinham colocado postos de alistamentos. Por toda parte, nas ruas centrais, tinham instalado equipamentos de som que reproduziam a Rede da Legalidade. Meu velho, em terno de linho branco e chapéu, todo orgulhoso, entrou na fila e assinou a lista, antecedendo seu nome com o título de tenente-coronel. Os encarregados do posto gostaram, fortalecia o movimento. Depois dele eu me alistei. Aquele alistamento, na verdade, era simbólico, mais uma forma de mobilização e comprometimento moral das pessoas. Não se pedia documento, não importavam sexo e idade. Se tivessem que recrutar combatentes civis para valer, com certeza a coisa seria bem diferente. Mesmo assim, quando chegamos em casa e contei, excitado, com pose de herói, que estava alistado, minha mãe ficou assustada, como se a gente fosse no dia seguinte para o front. Imaginem, eu não sabia atirar nem com espingarda de rolha. Muito menos tinha idade para isso. A mobilização do Estado para a luta foi total. Ninguém, nem um político sequer, ousava dizer uma única palavra contra aquele movimento. Os mais ferrenhos inimigos do PTB simplesmente ficaram quietos em suas casas, entre eles o famoso e conceituado advogado Walter Jobim, nosso vizinho, filho de um ex-governador e pai do atual ministro da Defesa, Nelson Jobim. Detalhe: brinquei na rua algumas vezes com Nelson Jobim e seus irmãos. Mas nunca existiu uma amizade forte entre a gente, como tive com Tarso Genro.
O movimento da Legalidade aglutinou totalmente o povo gaúcho. Foi inclusive mais forte do que a união paulista na Revolução Constitucionalista de 1932, porque em São Paulo havia federalistas declarados e claras divisões no meio militar, logo neutralizadas. Já o RS se levantou em bloco, inclusive com a imediata adesão do general Pery Bevilacqua, que comandava a 4ª Divisão de Infantaria, em Santa Maria, a mais poderosa do Estado. O mesmo aconteceu com as tropas da fronteira, sob o comando do notável general Oromar Osório, sediado em Santiago, que, aliás, já havia aderido antes mesmo de Machado Lopes.
Porto Alegre era o foco de todas as atenções. No centro da cidade havia um pavilhão grande, dos serviços de turismo, conhecido como Mata Borrão. Gaúchos tradicionalistas, com todo aquele aparato de desfiles, lanças e bandeiras, enfiados nas suas botas, bombachas, lenços no pescoço e chapéus de abas largas, acamparam no Mata Borrão. Ficavam lá tomando chimarrão e enchendo o tempo com fanfarronices de machões, tudo muito divertido. A guerra parecia também uma grande festa. O trabalho e as aulas estavam suspensos. Os bancos fechados e os postos de gasolina com restrições severas de consumo, para que não viesse a faltar combustível para as viaturas militares.
Ali aprendemos com nosso pai, ex-oficial de estado maior, duas medidas indispensáveis numa ameaça de guerra civil: 1) Tirar rápido todo o dinheiro do banco. 2) Encher o tanque do carro e não rodar, se possível guardando um galão extra de combustível, como ele fez. Numa guerra isso é um bem precioso.
Em Santa Maria as emoções eram também muito intensas, por todas as características da cidade, então centro ferroviário e estudantil, e principalmente porque tem até hoje uma das principais guarnições militares do Brasil. O general Pery Bevilacqua depois se tornou muito famoso e influente no meio militar. Conforme ele próprio contou, e disso fui testemunha ao ouvir seu pronunciamento na Semana da Pátria, na Praça Saldanha Marinho, no auge da crise Brizola ligou do palácio querendo saber sua posição. Pery respondeu prontamente: “Governador, como soldado não sei o nome do presidente da República. A Constituição tem que ser respeitada”. Isso, decisivamente, seleva a unidade do Rio Grande, em pé, em armas, em defesa da democracia.
Santa Maria, com suas bandas marciais, adorava desfiles. A Legalidade também teve o seu. Marcharam pela avenida Rio Branco, central, milhares de alistados, inclusive enfermeiras e médicos, com seus uniformes brancos, e representações dos militares. Como eu era escoteiro, fui fardado, por minha conta, porque o grupo ainda não estava oficialmente inserido no movimento. Só no dia seguinte o comissário distrital, uma espécie de chefe geral dos escoteiros da cidade, reuniu todos os grupos, com seus chefes, e informou que seríamos acionados no momento oportuno, em tarefas urbanas de apoio ao Exército e à Brigada Militar. Isso incluía, por exemplo, dirigir o trânsito, já que todos os PMs seriam mobilizados para ações armadas. Poderíamos também ser estafetas, com bicicletas, levando mensagens, medicamentos, o que precisassem. Essa perspectiva de convocação mexia com nosso imaginário, nos excitava, gerava muita vontade de entrar em ação. A gente se inseria mais ainda no clima geral, pois a população toda estava ouriçada.
O dia de maior emoção foi o do embarque de tropas, na estação de trens, deslocadas para a divisa com o Paraná. Os soldados, com mochilas e fuzis pendurados ao ombro, ganharam alguns minutos para as despedidas pessoais, na plataforma abarrotada de gente. A banda tocou o Hino Nacional e a Valsa do Adeus. O trem, “maria fumaça preta”, soltando vapores para os lados, apitou três vezes, patinou ruidosamente nos trilhos e arrancou, com a soldadesca debruçada nas janelas, abanando e deixando para trás um vale de lágrimas de mães, esposas, namoradas, amantes, crianças, autoridades e curiosos. Tínhamos, ao vivo e reais, aquelas cenas clichês tão conhecidas dos filmes de guerras.
Numa tarde, quando menos se esperava, apareceu sobre Santa Maria um avião T-6, aqueles caças barulhentos, remanescentes da Segunda Guerra Mundial. Despejava panfletos sobre a cidade, inclusive sobre os quartéis. Lembro-me do avião em rasante, ainda bem que em vez de tiros e bombas despejando só papéis. Vinha tão baixo que dava para ver que era pilotado por um homem só. O panfleto defendia o golpe, acusando Jango. Mal feito, uma bobagem. Numa guerra de verdade o caça teria sido abatido, mas voou livremente e fugiu. Não resta dúvida que o piloto foi ousado, ou talvez se tratasse de um belo porra louca. Foi o único incidente de maior repercussão em termos de oposição à Legalidade.
Outro pequeno episódio foi pitoresco. Um avião trouxe dois oficiais, em nome do ministro golpista, que foram tentar aliciar o comando local. Os oficiais foram detidos tão logo definiram sua missão no QG. Aí os legalistas mandaram uma patrulha num caminhão para tomar o avião e prender o piloto, na base aérea de Camobi. Só que havia um código qualquer combinado entre o piloto e os dois oficiais. Quando o caminhão verde-oliva apareceu na estrada e não parou, não piscou faróis, não sinalizou nada, o piloto sacou que o esquema tinha furão, ligou às pressas os motores e decolou. Ainda teve tempo, olhando pela janela aberta, de fazer uma banana com o braço para o caminhão que já se aproximava da pista. O avião fez uma curva no ar, antes de se mandar, sob os olhares de bobos dos milicos, em pé ao lado do caminhão, com suas armas na mão.
No rio Guaíba, em Porto Alegre, estava ancorada uma canhoneira da Marinha de Guerra, em visita ao Estado. Zarpou, solidária aos golpistas. Outro barco de guerra, chegando no porto de Rio Grande, teve um motim a bordo, liderado por um tenente telegrafista, e aderiu à Legalidade. Ficou lá até o fim do movimento. Correu também um grande boato de que o porta-aviões Minas Gerais estava descendo o Atlântico para atacar o Rio Grande do Sul.
Ex-recrutas que participaram das tropas legalistas deslocadas de Santa Maria para o Paraná contavam depois, em mesas de bares, que tinham ficado separados das tropas “inimigas” apenas por uma ponte, num rio qualquer de divisa estadual. Sargentos e oficiais, dos dois lados, costumavam atravessar a ponte para bater papo e até mesmo compartilhar, na mais autêntica confraternização sulista, de uma roda de mate, com a cuia passando de mão em mão enquanto a prosa rolava solta. Dá para acreditar que iriam trocar tiros depois?
A guerrinha foi assim, pacífica, tolerante, folclórica, ainda que muito bonita. Na Faculdade de Medicina de Santa Maria estudavam alguns bolivianos, nossos amigos. Eles acompanhavam tudo aquilo incrédulos. “Se fosse no meu país já teriam matado uns duzentos”, comentou um deles. (Amanhã o último capítulo da série, aguardem)
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*Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho da fronteira, é jornalista profissional, com mais de 40 anos de atividades. Começou em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1963. Foi repórter e exerceu cargos de chefia em alguns dos principais veículos do Brasil, como Rede Globo, jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, Diário do Grande ABC, revista Motor 3, Folha da Manhã (RS) e outros. Foi repórter em Última Hora, trabalhando com Samuel Wainer. Já assinou artigos e reportagens em mais de uma centena de publicações de todo o Brasil. Trabalhou também em assessoria de imprensa, para empresas e entidades públicas, como Ford Brasil, Conselho Regional de Economia e IPT- Instituto de Pesquisas Tecnológicas. É autor do livro “As 3 Vidas de Jaime Arôxa”, pela Editora Senac Rio, e participou como cronista da antologia “Porto Alegre, Ontem e Hoje”, pela Editora Movimento, do Rio Grande do Sul. Assinou também orelhas de diversos livros sobre dança e música, de autores brasileiros. Um ano antes de se aposentar, quando era editor-chefe do Jornal do Economista, em São Paulo, fundou o jornal Dance, que em julho completa 15 anos. Tem novo livro pronto, ainda inédito. É “Periferia da História”, onde conta de memória 45 anos da recente história brasileira. Trabalha em novos projetos editoriais, como jornalista e escritor. Na área de dança, organiza uma coletânea com os melhores editoriais publicados no Dance. Atualmente prepara um livro sobre Maria Antonietta, grande mestra da dança de salão carioca, que morreu recentemente. Apaixonado por viagens conhece quase todo o Brasil e já visitou cerca de 40 países. Por hobby e paixão é dançarino de tango.
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quarta-feira, 17 de junho de 2009

BRIZOLA SOBE, JÂNIO QUADROS RENUNCIA

SEGUNDA PARTE
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Do livro inédito “Periferia da História”, adaptado para nosso blog.
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Milton Saldanha

Naquela encarniçada disputa pelo governo gaúcho chegou a vez do comício do Brizola em Santa Maria. O palanque era enorme, construído na Praça Saldanha Marinho para os festejos do centenário da cidade, ao longo do ano, em 1958, e acabou virando uma grande tribuna livre, usada para todo tipo de evento, de Carnaval à festa de igreja. O PTB conseguiu reunir de 50 a 60 mil pessoas, até ali, com certeza, a maior concentração política que a cidade já conhecera. Era uma grande festa, com luzes, rojões, bandeiras e alto-falantes instalados por toda a praça e esquinas mais próximas. Consegui subir no palanque, tinha só 13 anos. A segurança nem ligou. Levava uma bandeira na mão e fui me enfiando por entre a multidão de políticos. De repente estava lá na frente, ao lado do próprio Leonel Brizola, a grande estrela da noite, e ali fiquei durante todo o comício, agitando a bandeira, gritando, aplaudindo, com o entusiasmo de um militante. Um deputado estadual, Croacy de Oliveira, raposa velha, ficou observando tanta vibração e me falou, naquele tom dos sábios mais velhos e de quem está acostumado a fazer demagogia com todo mundo: “você vai ser um grande político!” Enganou-se o deputado. Na verdade não me tornei grande em coisa nenhuma, exceto em caráter.
Brizola era muito jovem, usava um bigodinho estilo Clark Gable, cabelo bem preto e crespo, puxado para trás, com brilho de algum fixador, como era moda. Estava com paletó xadrez, mas sem gravata, sorria e abanava para a multidão o tempo todo. Ao seu lado, muito simpática, sorridente, dona Neusa, sua mulher, irmã do presidente Jango. Lá do alto a gente via aquele mar de cabeças, faixas, cartazes, bandeiras, mãos erguidas aplaudindo, punhos fechados esmurrando o ar. Rostos, só de quem estava mais perto do palanque. O resto era uma massa sem face, que gritava de tudo e ao mesmo tempo, ninguém sem entender ninguém, só muito barulho.
Brizola ganha a eleição, foi um passeio. Até ali, contudo, pouco se sabe sobre ele, exceto que fora um bom prefeito de Porto Alegre. Seu primeiro ano de governo do Estado transcorre opaco, até que vira líder de massas populares da noite para o dia, em poucas horas, algo realmente impressionante. Logo você saberá como isso aconteceu.
No centro da Praça Saldanha Marinho, a principal de Santa Maria, havia um potente som, instalado sobre a cobertura de um coreto. Pertencia a rádio Santamariense e ligavam todos os dias às 6 da tarde, quando era transmitida a Hora da Ave Maria, um momento bonito da cidade, com a prece e a música. Mas sempre que havia alguma notícia em edição extraordinária eles também ligavam o som da praça, momento em que os transeuntes paravam qualquer coisa que estivessem fazendo para ouvir. Eu estava passando na frente da praça na tarde daquele 25 de agosto de 1961 quando o som entrou de repente: “E atenção, Brasília, urgente! O presidente Jânio Quadro acaba de renunciar. Deixou uma carta e já saiu do Palácio do Planalto, tomando rumo ignorado. Repetimos: o presidente Jânio Quadros acaba de renunciar!
Todas as pessoas por ali ficaram mudas e inertes por alguns segundos. O choque foi brutal, principalmente porque quase todo mundo já estava começando a gostar do Jânio, em seu sétimo mês de governo, inclusive eu, que ainda não votava, mas tinha sido um incisivo defensor do seu principal adversário, o marechal Teixeira Lott, candidato do PTB, o “Homem da Espada”, contra o “Homem da Vassoura”. Aquelas loucuras populistas do Jânio eram gostosas para o povão. E, para nós da esquerda estudantil, a condecoração a Che Guevara, então ministro da Fazenda de Cuba, tinha sido um gesto tão surpreendente quanto simpático. Qualquer coisa que pudesse irritar os norte-americanos nos alegrava. Jânio, eleito pela UDN – União Democrática Nacional, semente daquilo que virou PFL e atual DEM, só que pior ainda, como se sabe tentou um golpe e caiu do cavalo. Tinha sido eleito com mais de 5 milhões de votos, recorde absoluto até ali na história republicana. Tinha apoio e simpatia nas Forças Armadas. Seu marketing populista era eficiente, ainda que barato, envolvendo coisas minúsculas como proibição de briga de galos e biquínis nas praias. Tinha acariciado a esquerda com Guevara e deixado desconfiada a direita. Quebrava protocolos e inventava modas, como seu famoso jaleco, sem gravata, com mangas curtas. Estava intensamente presente na mídia, todos os dias, pelos mais variados e até banais motivos. Dava a impressão que estava começando a endireitar o país. Pena que era só impressão. Por tudo isso, superestimou suas chances de se tornar ditador, com o plano de fechar o Congresso. Voltaria da renúncia nos braços do povo, como se dizia, só que o povo ficou em casa ouvindo a crise pelo rádio. Ninguém, absolutamente ninguém, de norte a sul, saiu sequer na calçada da própria casa para chamar Jânio de volta. Ele ficou várias horas na base aérea de Cumbica (não existia o atual aeroporto internacional), em Guarulhos, com a faixa presidencial na mala. Esperando, evidentemente, para usar no triunfal retorno. Depois embarcou num navio cargueiro, iniciando seu exílio voluntário, numa solidão deprimente.
E assim o louco, insensato, jogou o país numa crise institucional gravíssima, que nos custou muito caro, ou mais do que isso, danos irreparáveis, sobretudo a partir da ditadura militar implantada em 1964.

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AMANHÃ, O CAPÍTULO FINAL AQUI NO BLOG: O RIO GRANDE DO SUL SE LEVANTA EM ARMAS E DIZ NÃO À DITADURA. COMEÇA A CAMPANHA DA LEGALIDADE. É 1961.
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*Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho da fronteira, é jornalista profissional, com mais de 40 anos de atividades. Começou em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1963. Foi repórter e exerceu cargos de chefia em alguns dos principais veículos do Brasil, como Rede Globo, jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, Diário do Grande ABC, revista Motor 3, Folha da Manhã (RS) e outros. Foi repórter em Última Hora, trabalhando com Samuel Wainer. Já assinou artigos e reportagens em mais de uma centena de publicações de todo o Brasil. Trabalhou também em assessoria de imprensa, para empresas e entidades públicas, como Ford Brasil, Conselho Regional de Economia e IPT- Instituto de Pesquisas Tecnológicas. É autor do livro “As 3 Vidas de Jaime Arôxa”, pela Editora Senac Rio, e participou como cronista da antologia “Porto Alegre, Ontem e Hoje”, pela Editora Movimento, do Rio Grande do Sul. Assinou também orelhas de diversos livros sobre dança e música, de autores brasileiros. Um ano antes de se aposentar, quando era editor-chefe do Jornal do Economista, em São Paulo, fundou o jornal Dance, que em julho completa 15 anos. Tem novo livro pronto, ainda inédito. É “Periferia da História”, onde conta de memória 45 anos da recente história brasileira. Trabalha em novos projetos editoriais, como jornalista e escritor. Na área de dança, organiza uma coletânea com os melhores editoriais publicados no Dance. Atualmente prepara um livro sobre Maria Antonietta, grande mestra da dança de salão carioca, que morreu recentemente. Apaixonado por viagens conhece quase todo o Brasil e já visitou cerca de 40 países. Por hobby e paixão é dançarino de tango.
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