terça-feira, 14 de julho de 2009

BILLINGS AINDA SOFRE COM A POLUIÇÃO

ÉDISON MOTTA
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O VÔO CEGO DAS METRÓPOLES

Mergulhar no futuro desconhecido pode ser uma encantadora utopia. Podem-se construir os castelos que a imaginação alcança, adorná-los com grandes tesouros e edificar um mundo de confortáveis fantasias. Porém, com um pé na realidade do presente e um pouco de conhecimento do passado é preciso ser muito otimista para não imaginar a evolução e o agravamento do caos em que nos encontramos. Porque não há nenhum indicador, no momento, que permita sonhar com um Grande ABC livre de seus principais problemas nas próximas décadas. Pelo simples fato de que não existe esforço coletivo e tampouco mecanismos institucionais que permitam, ao menos, instituir um planejamento sobre a estrada que vamos percorrer logo mais à frente.
No início dos anos 70, a pequena redação do Diário do Grande ABC estava instalada na Rua Catequese, numa casa de quatro cômodos que já não existe mais. A poucos metros do terreno que abrigava as oficinas e escritórios do News Seller e onde seria construído o imponente edifício do jornal.
Numa tarde quente de verão lá apareceram dois leitores indignados. Eram Fernando Vitor de Araújo Alves e Jorge Ubirajara Cardoso Proença, moradores do bairro Eldorado, em Diadema. Eles acabavam de criar a Comissão de Defesa da Billings, uma entidade civil rara naqueles tempos de regime militar. A indignação de ambos era a transformação da represa, outrora um aprazível local de lazer, onde empresários da Capital construíram casas de veraneio às suas margens. Ali se praticavam esportes náuticos nos anos 50 e até mesmo uma incipiente indústria de construção e reparos de embarcações florescia. Porém, o crescimento vertiginoso da produção industrial da Grande São Paulo e a decisão de tecnocratas, abraçada pelo governo, de reverter o curso do Rio Pinheiros para jogar suas águas na Billings e, com isso, garantir o volume necessário para fazer girar as turbinas da Usina Henry Borden, de Cubatão, para produção de energia elétrica, destruira os melhores sonhos dos desencantados moradores do Eldorado. O paraíso agora estava sendo um verdadeiro inferno malcheiroso e impregnado de ratos, insetos com suas águas putrefatas do esgoto da região metropolitana.
Naqueles tempos não se falava em defesa do meio ambiente. O “milagre brasileiro” pulsava com intensidade nas chaminés das fábricas do Grande ABC com seus equipamentos obsoletos e poluentes, grande parte deles importados como sucata do primeiro mundo. O “eldorado”, para muitos, era transferir-se das zonas rurais e da seca inclemente dos Estados do Nordeste, de Minas, do Paraná e do interior para um local onde existiam muitos empregos.
Fernando Vitor e Jorge Ubirajara estavam na contramão da tendência generalizada daquele momento. Sentiam na própria pele que o “desenvolvimento” tão apregoado pelos defensores das chaminés acabaria por alcançar, mais tempo menos tempo, toda a sociedade. Eles eram as primeiras vítimas, porém muitas outras viriam.
Foi o que aconteceu. A poluição da Billings tornou-se de tal forma avassaladora e insuportável que, duas décadas depois, foi efetivamente enfrentada. E a Constituição Estadual de 1988 proibiu a reversão do Rio Pinheiros e o bombeamento dos esgotos para a represa. Porque se descobriu que o manancial tinha uma importância maior do que servir à produção de energia elétrica. As pessoas do Grande ABC e de parte da Grande São Paulo precisavam da represa como reservatório de água.
Na verdade, o bombeamento diminuiu, mas não cessou de vez. Ainda é utilizado nos dias atuais conforme decisões técnicas – ou tecnocratas – às quais a sociedade pouca informação recebe.
Ao mesmo tempo, ainda vai demorar para que as águas da Billings sejam consideradas livres da poluição. O adensamento populacional e a expansão irrefreada sobre as áreas de mananciais, no entorno da Billings, trouxeram outro problema, tão grave como o primeiro: agora, é o esgoto das precárias habitações construídas naquelas áreas de invasão quem compromete a represa, de vital importância para o suprimento de água para os mais de 2,5 milhões de habitantes da região.
A história da Billings ilustra o que acontece em praticamente todos os setores do Grande ABC e também nas periferias das regiões metropolitanas do País. Decisões de vida ou morte são tomadas em escalões onde a sociedade e a cidadania não têm acesso. Não que existam barreiras legais ou força militar que as impeçam. O que existe é uma apática distância entre os mecanismos institucionais de nosso regime democrático do cotidiano das pessoas.
Anel (in) Viário
O Grande ABC – como de resto toda a Grande São Paulo e as demais regiões metropolitanas - navega um vôo cego sem qualquer rumo planejado para o futuro. Existe um conflito natural entre a autonomia municipal e as questões regionais. Porque a água, a coleta e destinação dos esgotos, do lixo, o trânsito, a saúde, educação, habitação, o meio ambiente e até mesmo o lazer estão interconectados na região. Não há como tratar dessas questões de forma isolada, no âmbito municipal.
A represa Billings foi poluída sem que qualquer vereador ou prefeito pudesse opinar sobre seu destino. Assim está acontecendo com a construção do elo Sul do Anel Viário que vai despejar em Mauá o tráfego pesado de carretas e caminhões que atravessam o País de Norte a Sul, Leste a Oeste. Incompleto nesta primeira fase, ainda longe da Via Dutra e da Rodovia Ayrton Senna, fará com que a região importe um grave problema que hoje congestiona as marginais do Tietê e Pinheiros e também a Avenida Bandeirantes, na Capital.
Ainda nos anos 70 foi iniciada a obra de coletores de esgotos ao longo do Rio Tamanduateí e do Ribeirão dos Meninos. O projeto é retirar os despejos até agora jogados in-natura nesses afluentes do Tietê para tratá-los na Estação de São Caetano. Ocorre que ainda falta interligar a grande maioria das tubulações que neles deságuam para conectá-las aos emissários. Quando isso ira acontecer? Não há autoridade, em qualquer dos escalões administrativos capaz de responder à pergunta. Significa que a população da região ainda terá que conviver com seus principais rios poluídos durante muito tempo.
As Prefeituras não têm jurisdição sobre as águas e, conforme a Lei Orgânica dos Municípios estão impedidas de aplicar um único centavo na recuperação de seus rios. Soluções paliativas, aqui e ali, são adotadas como a canalização de córregos, algo como varrer o problema para debaixo do tapete.
Situações assemelhadas acontecem com a destinação final do lixo. Cada qual procura resolver à sua maneira. Ocorre que São Caetano já não dispõe, a muito tempo, de espaço para tratar seus próprios resíduos. Por enquanto, se socorre de Mauá, mas até quando? Na divisa da Zona Leste da Capital com Mauá a construção de um novo aterro sanitário está tirando o sono dos moradores das imediações.
Nos tempos antigos, um “slogan” era muito conhecido dos paulistas. O de que “São Paulo não pode parar”. Até que o engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz, um competente urbanista transformado em interventor da Prefeitura paulistana pelo governo militar teve a lucidez de contrariar a corrente ufanista e declarar que São Paulo precisava sim, parar. Para pensar e para planejar seu futuro. Não é diferente com o Grande ABC e com as outras regiões do país que se industrializam. O Consórcio Intermunicipal e a Agência do Grande ABC jamais conseguiram ordenar nem mesmo uma pauta de prioridades para o futuro regional. Não se pode, a bem da Justiça, penalizar os prefeitos e técnicos que formaram os quadros dessas duas instituições. Porém a raiz do problema é que elas não dispõem de autonomia legal, institucional e nem mesmo de recursos para enfrentar aquela que seria sua verdadeira missão.
Nosso “eldorado” tupiniquim ufana-se de ser o terceiro maior mercado consumidor do País. Recuperou seu pulsar desenvolvimentista após o susto e a desconstrução da década de 90. Vivemos o céu e o inferno nos últimos 30 anos. E ainda não paramos para pensar como serão os próximos 30. No momento, preocupa a população os problemas da saúde, da violência e o congestionado trânsito de nossas ruas e avenidas além da falta de transporte coletivo com dignidade.
Mas alguém já parou para pensar que esses problemas – sentidos no dia-a-dia das pessoas – são apenas a ponta de um gigantesco iceberg? Que não se resolvem com medidas isoladas deste ou daquele Município?
É razoável pensar que nada vai mudar enquanto a sociedade, cada cidadão, não se preocupar em formar uma massa crítica e se organizar politicamente para exigir mudanças. E são mudanças profundas que devem começar com uma revisão da Constituição Federal. As regiões metropolitanas e suas subdivisões (no caso, o Grande ABC é formalmente a Região Sudeste da Grande São Paulo) precisam deixar o papel e passar a existir de fato e de direito. No regime militar, ainda nos anos 70, foram criadas no âmbito do Governo do Estado a Secretaria de Negócios Metropolitanos, a Emplasa – empresa pública destinada ao planejamento - o Consulti - Conselho Consultivo da Grande São Paulo e o Codegran, Conselho de Desenvolvimento. Formulações teóricas e tecnocratas que serviram, tão somente, para acomodar apadrinhados políticos.
Há um conceito generalizado de que a classe política é o espelho da sociedade. E será melhor ou pior conforme a cidadania tiver ou não interesse em assumir as rédeas de seu próprio destino. Para que o Grande ABC possa evitar a repetição de erros como o da represa Billings – que, infelizmente, ainda ocorrem em todos os rincões do País – e construir seu futuro será necessário um novo despertar de seus habitantes. Que os seres humanos acordem, deixem de ser autômatos e escravos da noção de que progresso é apenas e tão somente dinheiro. Afinal de que vale um bom emprego se o acesso a ele, desde o momento em que se deixa a residência com destino ao trabalho é uma perigosa aventura? Uma partida onde não se têm certeza da volta? Uma verdadeira maratona diante do caos do trânsito, da epidemia egocêntrica do individualismo, sob o terror da criminalidade cada vez mais violenta? Estamos todos embarcados numa grande nave espacial que faz vôo cego. Os que podem, andam escondidos atrás de vidros escuros, recolhidos no interior de carros blindados. Ofuscados pela reluzente ilusão dos shopping-centers cada vez mais sofisticados. Uma precária e fútil sensação de segurança que faz lembrar, para quem tem alguma consciência, a precariedade social da decadente qualidade de vida em que, apáticos, estamos inseridos.
Os pivetes colocados à margem da ilusória opulência de uma sociedade apartada do coletivo e, portanto, sem compromissos com a cidadania, estão à espreita, destilando fel em seus corações, nas esquinas e nos cruzamentos de nossos caminhos. Desprezamos os erros do passado e não temos nenhuma noção para onde estamos indo como coletividade. Porque, ao abrir mão da cidadania, não valorizamos a democracia – tão arduamente conquistada através de muitas lutas e até mesmo através do sangue dos resistentes – e não nos damos ao luxo de ir perguntar e aprender, nos países desenvolvidos, o que podemos fazer para construir o cenário que vamos deixar para as futuras gerações. Oxalá por elas sejamos perdoados.
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*Édison Motta, jornalista e publicitário é formado pela primeira turma de comunicação da Universidade Metodista. Foi repórter e redator da Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil; editor-assistente do Estadão; repórter, chefe de reportagem, editor de geral (Sete Cidades) e editor-chefe do Diário do Grande ABC. Conquistou, com Ademir Médici o Prêmio Esso Regional de Jornalismo de 1976 com a série “Grande ABC, a metamorfose da industrialização”. Conquistou também o Prêmio Lions Nacional de Jornalismo e dois prêmios São Bernardo de Jornalismo, esses últimos com a parceria de Ademir Médici, Iara Heger e Alzira Rodrigues. Foi também assessor de comunicação social de dois ministérios: Ciência e Tecnologia e da Cultura. Atualmente dirige sua empresa Thomas Édison Comunicação.
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