terça-feira, 17 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Edward de Souza
PARTE III

O TROMBONE

O fotógrafo João Colovatti continua sendo personagem principal dessas histórias de redações da época em que os dinossauros habitavam a terra, de acordo com a definição do amigo escritor e jornalista Guido Fidelis, que promete escrever para esse blog outro caso desse controvertido profissional de imprensa que marcou época no jornalismo brasileiro.
Marcelo Vitorino, que escreveu recentemente um livro sobre Colovatti, intitulado “Revelações de um anti-herói”, assim define o fotógrafo: “ele tinha um olhar voltado para as pessoas simples, uma visão muito humanista. Mas sem qualquer posição política. O Colovatti não era engajado em questão nenhuma que não fosse a cachaça”. Eu acrescentaria que João Colovatti era uma criança que se esqueceu de crescer. Sempre sorridente e aprontando pra cima dos “focas” do jornal, no fundo era um homem sentimental ao extremo. Várias vezes surpreendi Colovatti chorando, mas ele despistava, enxugava os olhos e virava as costas, fugindo do flagrante que comprometia sua fama de durão.
Num belo domingo dos anos 70 eu estava de plantão na redação do Diário do Grande ABC, escalado pelo Édison Motta, na época o chamado “Editor Chefe” do jornal. No laboratório estava apenas o João Colovatti, à espera de um chamado de urgência. Mas nada acontecia de importante naquele dia. Quase hora do almoço e o telefone tocou. Fui informado que estava acontecendo a Festa do Pilar, um dos principais eventos religiosos da Estância Turística de Ribeirão Pires, com uma série de atividades, entre elas missa campal, atrações artísticas e a presença de políticos importantes. Nada a ver comigo, repórter policial de plantão, mas um bom motivo para mostrar serviço. Difícil, pensava eu, seria convencer o Colovatti que deveríamos cobrir essa festa. Fui procurá-lo e quase caí de costas. O João havia lotado o laboratório com gaiolas de passarinhos. Certamente trouxe de casa e eu não tinha visto quando chegou com todo aquele aparato. Assim que entrei começou a dar nomes aos canarinhos. Esperei que terminasse e o chamei para o trabalho. Para meu espanto, ele vibrou com a possibilidade de sair. Rapidamente pegou seu material fotográfico e correu para o carro do jornal. O velho “Chuba”, que gostava de tomar umas e outras, dormia. Colovatti não perdeu a oportunidade. Com uma tapa forte no capô do carro, e aos gritos de “incêndio, incêndio”, acordou o pobre motorista. Depois de ter se recobrado do susto, “Chuba”, ainda trêmulo, pegou o rumo de Ribeirão Pires. Assim que chegamos percebi que entre as autoridades presentes estavam deputados e o vice-governador do Estado. Um bom prato para rechear a matéria, certamente com muitas fotos. Aproximei-me das autoridades, julgando que o Colovatti me acompanharia. Ledo engano. Quando virei percebi que ele estava com o motorista numa barraca armada nas proximidades da igreja do Pilar, onde ocorria a festa, ao lado de diversos pratos de comidas típicas e de garrafas de cachaças artesanais de todas as qualidades. Esperei que ele tomasse uma, dei-lhe uma bronca e ele me acompanhou de mansinho, cabeça baixa, parecia aborrecido.
Enquanto eu entrevistava alguns políticos, percebi que em momento algum Colovatti mirava sua máquina fotográfica na minha direção, ou mesmo na dos entrevistados. Parecia encantado com um enorme trombone. E fazia uma foto atrás da outra. O clima já havia esquentado na barraca, por isso achei melhor deixar pra lá. Como profissional, Colovatti sabia que seria cobrado no dia seguinte, caso não tivesse feito fotos dos presentes àquela festa. Não seria problema meu, pensei. Minha missão de registrar a festa, escrevendo a matéria, seria cumprida. Passava das 14 horas e não havíamos comido nada. Terminei minha obrigação, não disse uma palavra ao Colovatti e ainda o acompanhei numa das barracas, onde comemos alguma coisa. Na volta só brincadeiras, bem ao estilo do João e nenhum outro comentário sobre as fotos. Fiquei em casa, porque o jornal nessa época não saia às segundas-feiras. No dia seguinte escreveria a matéria e a entregaria ao editor do jornal. O Colovatti que se explicasse. Na segunda-feira eu estava na redação quando entrou o Colovatti com um monte de fotos nas mãos, entregando-as ao editor do jornal. Eu nem quis olhar, afinal, que fotos poderia ter tirado? E deveriam vir para minhas mãos, para que fizesse as legendas. Não iria aprová-las. Terminei o texto, entreguei ao editor e perguntei sobre as fotos. Estão excelentes, respondeu ele. Em seguida me pediu que corresse a um distrito policial porque um latrocínio havia ocorrido no centro de Santo André. Antes me tranquilizou, dizendo que não me preocupasse com as legendas das fotos, porque ele mesmo faria isso. E uma delas seria publicada na primeira página. Sai sem entender nada. Alguém estava louco no jornal. Será que a foto de uma barraca com cachaça ou de um trombone seria mesmo publicada na primeira página, logo numa festa onde estava o vice-governador do Estado? Fui cumprir minha obrigação. Eles que se danem, pensei. No dia seguinte peguei o jornal e lá estava, na primeira página, uma foto enorme de um trombone. Refletido nele, todas as autoridades presentes nessa festa. Uma das fotos mais lindas e nítidas que já vi em toda minha vida. Verdadeira obra de arte, com a assinatura desse mestre que aprendi a respeitar: João Colovatti.