domingo, 14 de junho de 2009

MEMÓRIAS DE BRASÍLIA, A CAPITAL DA ESPERANÇA, NA ÉPOCA DA DITADURA

Oswaldo Lavrado
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Viajando com um defunto
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Meados da década de 80 e a ditadura militar que comandava este país estava nos estertores, porém ainda vigorava, mandava e comandava com força total. Um belo sábado de maio embarcamos, eu e o Edward, num vôo da Varig, de Cumbica, rumo a Brasília. Nosso destino era Anápolis, em Goiás, para a transmissão do jogo Anapolina x Santo André, pela Série B do Brasileirão. Viagem tranquila e sossegada e até a Capital da República. Mas, a partir daí começava a saga. Um táxi nos conduziu até a estação rodoviária de Brasília, onde deveríamos embarcar num ônibus até Anápolis. A rodoviária imunda, poeirenta e desconfortável estava apinhada de gente e, claro, muitos militares. Eu me acomodei, com nossas malas e os apetrechos da rádio, em um banco sujo e cheio de pó, enquanto o Edward foi comprar os bilhetes do ônibus que nos conduziria a Anápolis. Em determinado momento ouvi uma gritaria e um barulho no guichê onde ele estava. Cheguei perto e em tempo de evitar o pior: “que houve cara, porque está tão bravo", disse eu. Nervoso, ele respondeu: "essa besta (a menina que vendia os bilhetes) me disse que só tem ônibus para o meio dia. Falei pra ela se não poderia arrumar dois lugares em horário mais cedo, tipo 9 ou 10 horas. Que nada! Parecia que eu era um monte de m... Ela nem olhou em minha direção. Ai dei um murro no balcão (por pouco quebra o vidro) e disse que ela precisava ter um pouco de educação, afinal, não estava lidando com gado. No mínimo sua obrigação seria olhar no rosto do passageiro e responder o que lhe foi perguntado". A menina estava pálida, coitada. Tirei o Edward correndo de lá, peguei os bilhetes para o meio dia mesmo, pedi desculpas à moça e saímos dali. Ficamos aguardando no mesmo banco imundo e cercado por soldados do exército (nunca vi tantos). Deu o horário, o ônibus chegou, lotou e rodamos 155 quilômetros por uma estrada de uma pista só, porém asfaltada e em boas condições. Desembarcamos em outro lixão: a rodoviária de Anápolis, tão imunda e empoeirada, ou pior, que a de Brasília. Ali mesmo notamos uma placa, do outro lado da rua, "hotel" e pra lá nos dirigimos. Na recepção uma garota ruiva nos atendeu, pegou a grana da hospedagem e deu a chave. Disse que o aposento ficava no andar de cima (o único que havia). Subimos por uma rangente escada de madeira (tipo velho oeste) e entramos no quarto. Barbaridade. Uma pocilga; roupa de cama que parecia nunca ter sido lavada e um banheiro que não via água há alguns meses. Como as diárias estavam pagas, deixamos lá as malas e as tranqueiras da rádio e fomos para o centro da cidade. Na praça central de Anápolis deparamos com o hotel Palace (não sei se ainda existe, tenho fotos). Entramos e uma moça muito gentil nos mostrou os quartos: limpos, higienizados e confortáveis. O Edward (sempre ele) foi até a espelunca do hotel da rodoviária, inventou uma história qualquer, deu uma caixinha para a moça da portaria, pegou nossa bagagem, a grana e nos hospedamos no Palace. Ufa...
À noite fomos para um boteco, tipo lanchonete, na praça principal de Anápolis, embaixo do hotel onde eu e o Edward estávamos. Lá encontramos o pessoal da Rádio ABC (Ivanor e Giba), o massagista do Santo André, Miguel de Oliveira (hoje trabalhando no Palmeiras) e Germano Schmidt, gerente de futebol do Santo André e meses depois, presidente do clube. Aqui vai a publicidade de uma cerveja, mas faz parte do relato. Ninguém de nossa turma tomava outra cerveja, a não ser Antarctica e nesse boteco ela não estava gelada ainda. O calor era forte. Miguel de Oliveira, também fanático por Antarctica, não teve dúvidas. Pediu permissão ao dono do bar, arrumou cascos com ele e saiu para buscar, em outro botequim, uma dúzia delas, bem geladas. Papo vai, cerveja vem, até que resolvemos ir a um restaurante próximo. Mais cerveja antes, durante e depois do jantar. Já de madrugada, o Germano resolveu ir embora. Saímos juntos. O gerente de futebol do Santo André atravessou a rua, viu uma porta de vidro iluminada e bateu, julgando ser o hotel onde estava alojada a delegação do Santo André. Mas, nada do porteiro abrir. Meio sapecado pelo excesso de cerveja, o cartola deu um murro na porta e por pouco não estoura o vidro. Desistiu quando o Giba gritou: "Germano, seu hotel fica um pouco mais acima. Aí é uma porta de banco".
Nenhuma outra novidade em Anápolis. No domingo fomos ao simpático estádio do Anapolina e cumprimos nossa missão. O Santo André venceu por 1 a 0. Normal. Ainda no domingo retornamos a Brasília, certos de que voltaríamos a São Paulo numa boa, puro engano. Ficamos num hotel da Asa Norte onde dormimos o sono dos justos pelo dever cumprido e pela manhã da segunda-feira fechamos a conta no hotel e rumamos ao aeroporto. Nosso vôo estava marcado para as 14h, chegamos às 9h e ficamos numa lanchonete da praça de alimentação, instalada no segundo piso do aeroporto. Um café da manhã, dois lanches, refrigerantes e salgadinhos. Depois, deu 13h. Desci sozinho para o indefectível check-in e o Edward ficou na lanchonete. No balcão da Varig, a linda recepcionista (em empresa aérea não trabalha gente feia), viu nossos bilhetes e deu a má notícia: “os senhores só podem embarcar no vôo das 4 horas da madrugada". Calmo, respondi: “mas eu transferi o horário sábado, assim que chegamos aqui". A garota, sem dar muita atenção foi incisiva: "houve algum engano e não posso liberar para outro vôo, desculpe senhor". Esqueci da bendita ditadura militar e armei um pequeno circo. Foi meu primeiro erro. Um milico do exército pegou no meu braço e me conduziu para uma salinha estreita e meio escura. Lá havia mais outros três. Um deles, com a gentileza de um hipopótamo, esbravejou: "seus documentos". Mostrei a credencial de Imprensa. Foi o segundo erro. "Tem mesmo que ser esses metidos pra criar problema", vociferou um cara com algumas divisas no braço que eu não sabia o que significavam, continuo não sabendo e nem interessa. Um outro, não menos arrogante, sentenciou: "olha, cai fora daqui sem chiar que será melhor pra você". Lembrei então que: manda quem pode, obedece quem tem juízo, juntei os bilhetes, meus documentos que tinham ficado com os milicos e me mandei.
Já eram 5 horas da tarde quando cheguei a lanchonete onde o Edward me esperava. Estampava no rosto as três cores do seu São Paulo: branco, preto e vermelho. Com um caminhão de pedras nas mãos, fulo da vida, por pouco não me enche de porradas. Afinal havia ficado "refém" na lanchonete, já que não podia sair (a grana estava comigo), a conta estava alta, pois enquanto me esperava foi consumindo e do patamar onde se encontrava viu vários aviões chegarem e saírem de Brasília, inclusive o nosso, das 14h. Imaginou duas coisas: eu havia embarcado sem ele ou estava preso. Quase acerta a segunda, já que à época qualquer birra era motivo pros milicos enquadrarem a gente, principalmente da Imprensa. Enfim, paguei a lanchonete e nos despedimos do garçom que, ressabiado, não perdia o Edward de vista um segundo, desconfiado que fosse tomar um “cano”. E agora, o que fazer? Sem alternativa e com pouco dinheiro nos bolsos, tomamos um táxi e arriscamos voltar ao hotel e tentar um pernoite de bonificação. Conseguimos. Outro ufa... O motorista que nos conduziu do aeroporto até o hotel, num carro antigo caindo pelas tabelas, foi com a nossa cara. A minha nem tanto, mas com a do Edward que, agora calmo, fez amizade com o taxista. O "chofer" disse chamar-se Marujo, contou algumas histórias quando era marinheiro (certamente não foi em Brasília, que não tem mar) e nos pegou na madrugada para o nosso vôo das 4h. Marujo gostou mesmo do Edward, tanto que fez as duas viagens pelos trocados que ainda nos restavam. Despedimos-nos com um grande abraço e até com troca de cartões. Embarcamos no vôo Varig das quatro horas. O avião, procedente de Manaus, trazia alguns passageiros. E para completar uma viagem inesquecível, no lugar das poltronas, pouco atrás de nós, havia uma maca e um corpo coberto por um véu. Exatamente o que imaginaram. Era um defunto, certamente uma companhia não muito agradável num vôo. Porém, isso foi apenas mais um detalhe de uma viagem de trabalho. Desembarcamos em São Paulo, dever cumprido e ainda ouvimos do nosso famoso motorista Lampião, que foi nos apanhar com o carro da rádio no aeroporto de Cumbica a pergunta: "Foi tudo bem na viagem?” Olhamos um para o outro e respondemos: “foi Lampião, claro que foi”. Nada mais foi dito nem perguntado.
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*Oswaldo Lavrado - jornalista/radialista - trabalhou no Diário do Grande ABC (rádio e jornal). Comandou a equipe de esportes da Rádio Diário por 10 anos. Atualmente é editor do semanário Folha do ABC.

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