quarta-feira, 28 de julho de 2010




Cheguei em casa aliviado após o término da segunda fase da quimioterapia que, desta vez, incluiu nistatina, uma potente medicação capaz de derrubar um garanhão. Nessa semana em que fiquei no hospital, recebi a visita dos amigos de sempre: Paulo Pereira e Severino Ferreira da Silva, o Jacaré. E é conhecido por esse apelido de tal maneira que, um dia, ligaram para a sua residência, e pediram para falar com o “seu” Severino. Sua esposa, casada com ele há quase 40 anos, chegou a dizer: Olhe, aqui não mora nenhum “seu” Severino. Aqui, é a casa do “seu” Jacaré.
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Meu estado físico, durante essas visitas, deveria se encontrar em estado de penúria. Percebi tristeza em seus olhos e, o Paulo, como das vezes anteriores, saiu quase sem se despedir, cabeça baixa, talvez para ocultar os olhos molhados por lágrimas. Paulo é emotivo e, acredito, imaginava o amigo em seus últimos dias de vida. Em casa, pensei em como aproveitar os vinte e um dias que teria de folga, até iniciar a terceira semana. Essas perspectivas foram eliminadas já no segundo dia de descanso. Comecei a sentir fortes dores de cabeça, ânsias de vômito, diarreia e tonturas.

Cheguei a pedir para morrer a continuar sofrendo. Minha mulher tentava me acalmar. Nesse dia, cheguei a escrever um extenso recado para o Paulo Pereira. Só me lembrava de uma frase do personagem de Victor Hugo, em Os Miseráveis, Jean Valjean que, no leito da morte, dizia a Fantine, salvo engano, que “morrer é nada, não viver que é medonho”. Acredito que esta foi a primeira vez que senti o verdadeiro e mais profundo sentido dessa frase de uma pessoa consciente da aproximação da morte. A dor é muito mais forte, é uma dor que demonstra a fragilidade do ser humano e o quanto ele é vulnerável à doença.

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Três dias após chegar em casa, num sábado à tarde, percebendo a piora da situação, minha mulher decidiu me levar urgentemente para a ala de emergência do hospital. Fui, protegido por um fraldão, estirado no banco traseiro do carro. Em São Paulo, defronte ao hospital, não consegui andar e precisei ser conduzido em uma cadeira de rodas. Fomos atendidos de imediato e, o médico, logo de início diagnosticou febre alta e a necessidade de internação. Constatou-se, mais tarde, que eu estava com infecção hospitalar e, caso não fosse socorrido a tempo, teria perecido. Ainda meio alucinado, pedia para minha mulher não deixar que me internasse. Desejava voltar para casa. O médico, ouvindo minha súplica, foi direto: não poderia, em obediência aos seus princípios, liberar um paciente necessitado de cuidados médicos urgentes.

Lembro-me de ter sido levado para um quarto no terceiro andar do hospital, onde já se encontrava um paciente descendente de japoneses. Sei, ainda, que, deitado, acordei três vezes com um líquido amarelado sobre meu peito. Minha mulher e a enfermeira disseram tratar-se da abertura da sonda. Não era verdade. Eu vomitava, não conseguia segurar a medicação. Dormi e, dessa noite, não me lembro de mais nada. Pensava em ter alta no dia seguinte, mas acabei por ficar sob observação médica durante nove dias. Período em que o meu estado reuniu oncologista, cardiologista, infectologista e os especialistas da Central da Dor. Minha mulher me revelou mais tarde que, desta vez, ela pensou que eu não iria suportar. “Se fosse em outro hospital, você teria morrido”, disse. Quando o médico oncologista Ulisses Nicolau me deu alta, não sei se por brincadeira, me agradeceu minha contribuição pela descoberta de uma nova espécie de vacina.

Regressei na semana seguinte e os médicos, reunidos, concluíram que eu não suportaria continuar com o tratamento tradicional da quimioterapia. Optaram pela aplicação do Erbitux, um medicamento fabricado na Alemanha. Para conseguir autorização do plano de saúde para realizar o tratamento com esse novo remédio foi preciso contar com a ajuda da advogada Lívia Faé Vallejo, que entrou com processo judicial e obteve a liminar assegurando o cumprimento das determinações médicas. A essa advogada, sem dúvida, devo e continuarei devendo um pouco do que resta de minha vida. Esse novo tratamento consistiu em trinta sessões de radioterapia e sete de quimioterapia, este, uma vez por semana. Indagado se agora eu conseguiria ficar bem, um dos médicos, o otorrinolaringologista Ricardo Teste, me olhou fixamente e disse apenas: Mais ou menos.
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A pessoa possuidora de um tumor maligno começa a demonstrar interesse por tudo que se relacione com a cura dessa doença que, em tempos considerados antigos, mais exatamente na década 50 do século passado, era chamada de coisa ruim e praticamente sinônimo de morte. Por isso é que procurei ler de imediato uma matéria da revista Veja, de 20 de junho de 2007 (foto a esquerda), com a chamada no alto da capa, a direita: "Câncer - A esperança das terapias - alvo", que incluía uma das terapias que eu acabara de experimentar. Havia mais uma razão para justificar o meu interesse: depois do violento baque sofrido nas duas sessões de quimioterapia, o doutor Ulisses Nicolau percebeu que eu não suportaria continuar com esse tratamento e decidiu por um mais avançado, cuja ação se limitava a combater o tumor, as células malignas, sem matar as benignas. Adiantava: os planos de saúde não estavam autorizando esse tipo de tratamento e eu, nem minha mulher, tínhamos recursos suficientes para cobrir essas despesas. A advogada Lídia Faé Vallejo se ofereceu para entrar com uma ação contra a seguradora de saúde, que realmente indeferiu o tratamento na base do medicamento denominado Erbitux, fabricado na Alemanha. Conseguiu a liminar e comecei, então, o tratamento.
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E é por isso que a reportagem da revista me despertou a atenção. È de autoria de Anna Paula Buchalla. Essa jornalista cobriu o encontro anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, realizada em Chicago, nos EUA, e , em certo trecho, afirma: em relação a dez anos atrás, a medicina avançou sobremaneira na compreensão de mecanismo envolvidos no desenvolvimento e no comportamento das células cancerosas. Agora, é possível traçar o perfil genético de diversos tumores, como os de mama e de pulmão. Essas informações, aliadas a análise genética do próprio paciente, levaram à criação de tratamentos individualizados – a atual meta na guerra contra o câncer. Ou seja, identificar que remédio funciona melhor para um determinado grupo de pacientes com características semelhantes. Algumas dessas armas estão disponíveis. E cita: esses medicamentos também são conhecidos como biológicos, agem de forma inteligente, impedindo a proliferação das células tumorais sem afetar as células saudáveis. Seus representantes mais difundidos são: Erbitux (cabeça e pescoço), Mabthera (linfoma), Herceptin (mama), Nexavar (rim), Glivec (leucemia), Sutent (rim) e Avastin (intestino). Em outro trecho, citava David Cameron, professor de oncologia da Universidade de Leeds, na Inglaterra, que dizia: o objetivo final é associar apenas medicamentos biológicos, eliminando a quimioterapia do rol de tratamento contra o câncer.
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Eu havia feito o tratamento com o medicamento Erbitux e, três semanas depois, sentia que não havia melhorado. Estava fraco, sem forças e quase sem esperanças de voltar a ter uma vida normal. O exame mais moderno de imagem que havia feito anunciava o diagnóstico: processo expansivo com epicentro na fosseta de Rosemüller e espaço retrofaríngeo esquerdos, e que se estende cranialmente por aproximadamente 4,2 cm, até a fossa média da base do crânio, onde promove destruição óssea da asa maior esquerda do esfenoide, do ápice do rochedo e côndilo occipital esquerdo. De todo esse diagnóstico, eu só entendi que o processo era expansivo e isso era o que mais me preocupava.
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Na próxima quarta-feira, o décimo sexto capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50. (Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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Os leitores (as) que participarem com seus comentários no capítulo desta quarta-feira, irão concorrer ao sorteio de dois livros, um para cada premiado, escrito pelo jornalista José Marqueiz, intitulado "Villas Boas e os Índios", edição raríssima que não pode mais ser encontrada em livrarias, brinde oferecido pela Ilca, esposa do jornalista. "Villas Boas e os Índios" é um livro constituído de reportagens e entrevistas com os irmãos Cláudio e Orlando Villas Boas, resultado do trabalho jornalístico de José Marqueiz na selva brasileira, que lhe valeu o Esso Nacional de Jornalismo. Participem e concorram. ( Edward de Souza).
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