quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

QUARTA-FEIRA, 16 DE FEVEREIRO DE 2011
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O sol começava a se esconder, tingindo o céu em tons alaranjados, num belo espetáculo de cores. Era uma quinta-feira qualquer de janeiro. Estávamos sentados em um pedaço de tronco de árvore que ficava na frente da casa do meu avô, escutando seus casos. Era de costume, nos dias quentes de verão, eu, meu pai, meu irmão, tios e primos sentarmos na frente da casa do meu avô proseando até tarde.

Na condição de moleques, meu primo, eu e o mano só ouvíamos, pois éramos educados e orientados a não nos intrometer nas conversas dos mais velhos. Foi então que apareceu um amigo do meu avô, conhecido como Juca, homem velho, tinha uns setenta anos, mas aparentava ter mais. Era magro, alto, muito enrugado, fumava cigarros de palha um atrás do outro, fedia pra caramba, usava uma camisa de mangas compridas, encardida, e tinha um bafo de onça terrível, mas era um bom contador de “causos” e de uma esperteza incrível na hora de interpretar as cenas dos seus contos. Era isso que nos prendia ouvindo suas histórias. Boca aberta, olhos fixos e arregalados escutávamos naquele dia o relato da luta que ele travou com o diabo.

Dizia ele que na fazenda em que morava tinha uma porteira mal assombrada, bem na subida, perto de um morro, próximo de uma curva, e que o capeta ficava de guarda lá, não deixando ninguém passar. Certo dia ele resolveu ver de perto se isso era verídico. Juca levantou a sobrancelha esquerda e exclamou com uma voz rouca e estridente, para a atenta platéia:
- Eu passei lá!
Meu avô, também um excelente contador de “causos” ficou curioso, como todos nós, para saber o que acontecera naquela travessia infernal e perguntou pro Juca:
- O que você fez Juca, negociou com o capeta?
- Não, seu Valentim, foi pior, respondeu ele, o fedorento é muito ruim de negócio, arriei o meu cavalo, montei no pobre coitado, coloquei a minha capa, peguei o meu chicote e disse aos meus amigos: “vamos ver se o “demo” pode me enfrentar”.
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Assustado, ainda criança, neste momento do relato agarrei no braço do meu pai, que me acolheu, dando-me confiança, na certeza que eu poderia ouvir aquela história até o fim. Meu irmão, dois anos mais velho, também apavorado abraçou meu pai. De olhos bem arregalados, nós, os meninos, ficamos na expectativa para saber como Juca enfrentaria o diabo. E ele continuou a contar:
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- Chegando perto da porteira meu cavalo empacou, peguei o chicote e dei uma estalada no ar. O pobre coitado empinou, jogando-me ao chão. Em seguida disparou rumo à sede da fazenda, deixando meus amigos preocupados. Mas ninguém teve coragem de ir onde eu estava. Levei a mão no trinco da porteira, escutei o som de um chicote no ar e, assustado, olhei para todos os lados. Não via nada, fiquei todo arrepiado, mas não podia mostrar fraqueza. Abri a porteira, dei um passo a frente e uma voz forte, em um tom gutural, invisível, falava assim: “aqui se num passa”.
Respondi: “passo sim senhor”.
- Num passa!
- Passo.
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Quando Juca nos contava isso estava sentado de cócoras, e com uma esperteza incrível para a sua idade, pulava e repetia várias vezes com a voz ainda mais estridente:
- Vamos ver coisa ruim, se você é bom mesmo. Dei mais um passo a frente. Minha capa foi arrancada por uma força descomunal, mas segui firme. O chicote começou a estalar nas minhas costas, com a voz infernal do chifrudo ameaçando: “num passa... Não vai passar”!
Nesse momento Juca levantou a camisa mostrando as cicatrizes que tinha nas costas, que segundo ele teriam sido feitas pelo diabo.
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- Peguei meu chicote, continuava ele, e comecei a dar chibatadas também, para todo que é lado, pois o chifrudo levava vantagem sobre mim, ele era invisível, e eu gritava: “aparece covarde, aparece”! Quanto mais chicotada eu levava mais aumentava a minha raiva e vontade de mandá-lo de volta para as profundezas dos infernos. Assim foi uma hora e meia de berros e chicotadas, tanto eu gritava, como o diabo também. Acho que ele apanhou mais, por causa dos gritos fortes que dava.
E assim, ouvindo o velho Juca, as horas passavam sem que percebêssemos. O homem era um verdadeiro ator. Nossa imaginação ia longe ouvindo sua história. Um mortal lutando contra o demônio.
O velho contador de casos prosseguia:
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- Eu já estava quase sem forças e as chicotadas do diabo eram cada vez mais fracas, acreditava que ele também estava cansado. Avancei mais alguns passos gritando bem alto: “passei! Passei”! Fiz uma poeira com os pés. Foi o suficiente para deixar em parafusos o coisa ruim, ele estava realmente exausto. Encontrei forças não sei de onde e dei-lhe uma chicotada bem certeira no meio da fuça. Gemendo, ele saiu correndo, entrou em um buraco no meio da terra, sumindo para sempre e nunca mais proibiu ninguém de passar naquela porteira, que era um atalho para chegar a cidade. Fiquei conhecido na região como “Juca Diabo”, e todos passaram a me respeitar.
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Afastei um pouco do meu pai, eu estava com um calor tremendo e suando frio. Comentei com meu primo: “nossa, que luta hein? Se fosse meu pai ou o meu avô, não errariam nenhuma das chicotadas e mandariam o diabo para o inferno mais cedo”! Meu pai levantou-se. Depois de despedir-se da turma, pegou-me no colo. Abracei seu pescoço e com carinho papai virou meus pés para trás, de forma que eu não sujasse sua roupa. Levou-me para casa, esperou que eu adormecesse em seu colo, para depois colocar-me na cama.
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Eu me sentia seguro em seus braços e a história do Juca não me incomodou, dormi a noite toda. Tinha ainda um trunfo. Debaixo da minha cama eu guardava um chicote que o meu avô deu-me de presente. Como havia prestado bem atenção na história do Juca, se o capeta aparecesse de madrugada, saberia lidar com ele, dando-lhe boas e caprichadas chicotadas.
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*Padre Euvideo é aprendiz de contista
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