quinta-feira, 26 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Exclusivo
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Certa vez, no Diário...
Parte IX
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Milton Saldanha
Memórias
Capítulo I

No final dos anos 50 comecei no "jornalismo" no grupo escolar, como “repórter” da minha classe, num jornal mural que a diretora instalou num corredor. Ninguém lia, mas lá estavam minhas redações, que me deixavam orgulhoso. Eu me sentia escrevendo no Correio do Povo, de Porto Alegre, então o mais poderoso jornal gaúcho, que chegava a nossa cidade, Santa Maria (RS), com um ou até dois dias de atraso, pela empresa de ônibus Planalto, que ainda existe e prosperou. Aos 17 anos, em 1963, já trabalhava no semanário A Cidade, de um lendário panfletário, Clarimundo Flores, ex-PCB, e homem de confiança, mesmo sem cargo público, do então governador gaúcho Leonel Brizola. Clarimundo era uma pena brilhante, como todos se referiam na época aos grandes redatores. Escrevia com paixão desenfreada, sabia argumentar e, de vez em quando, perdia a noção dos limites, pegava pesado mesmo. Santa Maria tinha o diário A Razão, dos Diários Associados (ainda existe, com outros donos), de horrenda qualidade naqueles anos, e de direita, claro. A Razão fora criada pelo Clarimundo, que faliu e vendeu o jornal para os Associados. Aí fundou o Diário do Estado, que também faliu. Então, aproveitando que era dono de gráfica, criou A Cidade, tablóide com logotipo em vermelho, que chegava às ruas nas sextas à noite.
Com o golpe de 64, uma patrulha do Exército invadiu a gráfica e fechou o jornal, por sorte sem empastelar. Fiquei trabalhando com Clarimundo, ele em prisão domiciliar, com soldado (desarmado) na porta do apartamento onde morava, na frente da praça principal e a poucos metros da gráfica. Só havia uma máquina de escrever, que eventualmente eu usava, mas Clarimundo fazia tudo de punho, em garranchos só decifráveis por seus empregados acostumados, com vários anos de casa.
Santa Maria, bem no centro do Rio Grande do Sul, super estratégica, é uma poderosa cidade militar, com mais de dez unidades do Exército, dois regimentos da Brigada Militar e uma moderna base da Aeronáutica. Naquele tempo era também o mais importante entroncamento ferroviário da Região Sul. Com o golpe, o jornal ficou fechado durante um mês e depois voltou a circular. Clarimundo passou a reproduzir na íntegra os artigos que o Carlos Heitor Cony publicava no Correio da Manhã, do Rio, mais tarde reunidos no livro “O Ato e o Fato”. Foi isso que deu fama nacional a Cony, que como esperado acabou preso. Ele descia o cacete no golpe militar. E o nosso jornalzinho, lá do interior gaúcho, no meio de todo aquele poder militar, e onde jamais chegava o Correio da Manhã, reproduzindo o Cony. Um amigo e colaborador de A Cidade, Ernani Vanacor, que morava no Rio, mandava o jornal pelo Correio. Era a mais pura, e mais arriscada, tesoura press. Como eu já assinava matérias sobre política antes do golpe, mesmo sendo um garoto, era o que se chamava de “nome queimado”, com ficha no Dops. No dia seguinte ao golpe fugi para Porto Alegre, onde fiquei escondido por cerca de um mês na casa de um tio, que era sargento do Exército. Ele não concordava com o golpe, mas estava de bico calado, até porque não era besta. Lembro-me que ia para o quartel em trajes civis, levando a farda numa sacola, para não ser hostilizado pelo povo na rua.
A barra pesou e Clarimundo deixou Santa Maria. Foi se esconder em Santo Ângelo e depois numa cidade de fronteira, no Uruguai. Mas A Cidade continuou circulando, só que aí baixamos a bola. O jornal ficou aos cuidados de Renan Kurtz, um líder universitário, que se tornaria deputado estadual. Passei a escrever artigos sobre cultura e uma coluna de notas intitulada Desfile, agora sempre pegando leve. Eu fazia também jornais de estudantes, no curso secundário. Integrava uma turma de esquerda, não mais do que dez estudantes, pessoal super politizado e atuante, intelectuais em formação, da qual fazia parte o Tarso Genro, que tinha 16 anos. Um detalhe curioso: no dia 1º de abril, pela manhã, quando a guarnição local ainda não havia aderido aos rebeldes, fui com o Tarso e mais um amigo fazer pronunciamentos ao vivo na Rádio Santamariense, uma das quatro emissoras locais, e que estava integrada à Rede da Legalidade, que Brizola tentava, como fizera em 1961, remontar. Repudiamos o golpe, chamamos o povo à resistência, essas coisas, com aquela emoção do calor dos acontecimentos, mas sem perder o controle, a calma e o senso de responsabilidade. Foi uma coisa impressionante, por nossa idade. Nem sei como confiaram o microfone. Uma hora depois as tropas começaram a ocupar a cidade, sob garoa, num dia cinzento em todos os sentidos. Foram dissolvendo as reuniões, mandando sem violência todo mundo para casa, com a tropa de arma embalada no meio da rua. Eram recrutas inexperientes, a maioria não entendia o que estava acontecendo, alguns até tremiam de nervosos. Um perigo, pois tinham o dedo no gatilho do fuzil. O povo, com medo, obedecia sem protestar. Mas nós estudantes éramos peixes pequenos, lambaris. Eles só estavam prendendo as altas lideranças sindicais dos ferroviários. Prenderam também o prefeito Paulo Lauda e o vice, este último o professor Adelmo, pai do Tarso Genro.
Em 1965 minha família se mudou para Porto Alegre. Tentei emprego na Caldas Júnior, que editava três jornais, mas não tive chance. Fiquei então de correspondente, não remunerado, da revista cultural Vanguarda, da nossa turma de estudantes de Santa Maria, e que durou só três edições. Fiz um concurso público e fiquei dois anos como burocrata da CEEE, companhia estatal de energia elétrica. Meu irmão, o Rubem Mauro Machado, tinha vindo para São Paulo. Trabalhou na Folha, onde cobriu a prisão dos estudantes do Congresso de Ibiúna e a greve da Cobrasma, em Osasco. De lá foi para o Diário Popular e após um mês de casa virou chefe de reportagem. Foi demitido numa crise com a diretoria e aproveitou para escrever um livro de contos, durante sete meses, vivendo só das economias. Grana acabando, certo dia soube da existência do Diário do Grande ABC. A gente morava em São Paulo, na mal afamada Baixada do Glicério. Procurou Fausto Polesi e na hora mesmo foi contratado como secretário de redação, o nome que se dava ao que hoje corresponde a editor-chefe.
*Não percam amanhã a sequência desta série escrita pelo jornalista Milton Saldanha para “AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS”. Final dos anos 60. Jornalistas sem registro em carteira. “Sêo” Abílio, o “médico” da redação e muito mais. Não deixem de acompanhar aqui, nesse blog, todas essas histórias narradas por esse extraordinário profissional que passou sua vida em redações de jornais.
Edward de Souza.