domingo, 5 de setembro de 2010

AS BELAS HISTÓRIAS DO RÁDIO ESPORTIVO

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O MENINO DO RETRATO
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Provavelmente, no jornalismo, o pessoal inserido em uma equipe de esportes (rádio, jornal ou TV) é o que mais bate pernas pelos mais distantes rincões. Vivência diferente nos costumes e jeito das pessoas nativas e, em muitas incursões, depara-se com fatos simples, que marcam a passagem, nada corriqueira, porém inesquecível.
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Uma quarta-feira de maio de 1988, a equipe de esportes da Rádio Diário foi até a bela Piracicaba, cerca de 230 quilômetros do ABC, para a transmissão de um jogo entre XV de Novembro x Santo André, então válido pelo Paulistão daquele ano. Um trabalho rotineiro em uma cidade por demais conhecida. Apenas o Edward de Souza (narrador) e eu (comentarista). Chegamos por volta das 18h e, claro, fomos fazer a refeição do começo de noite no Mirante, reduto obrigatório de quem vai a Piracicaba. Quem visita Roma tem que ver o Papa, quem chega a Ribeirão Preto tem que tomar o chope no Pinguim, portanto em Piracicaba é quase obrigatório degustar um pintado na brasa no Mirante. Faz sentido.
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Por volta das 19h rumamos para o Estádio Barão da Serra Negra, na Rua Silva Jardim, 849, Bairro Alto, ao lado do cemitério, onde o XV manda seus jogos. Naquele tempo havia, das 19h às 20h, o programa governamental de rádio A Voz do Brasil e o Projeto Minerva (também do governo federal), das 20h às 20,30h e, por isso, as transmissões eram iniciadas na sequência. Algumas vezes até com atraso, porque a maioria dos jogos naquela época começava 20,30h. Equipamento instalado e testado, eu e o Edward nos acomodamos aguardando o início dos trabalhos, quando um garoto que estava nas arquibancadas, no degrau próximo as cabines, começou puxar papo (deveria ter uns 12/13 anos). Perguntou ao Edward de onde a gente era, qual o nome da rádio, se a gente torcia para o Santo André, se conhecia o Pelé, etc., etc.? Roupa humilde, porém limpa, chinelo de dedos, boné surrado, cabelos longos em desalinho e dentes claros. Disse que entrou no estádio "de favor" já que não possuía sequer uma moeda para comprar pipoca, muito menos para o bilhete de entrada.
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Vendo a máquina fotográfica que o Edward sempre levava em nossas viagens (perdeu umas duas ou três, é verdade, esquecida nos botecos da vida), o menino pediu se a gente poderia tirar uma foto dele. Rapidamente, já que faltavam poucos minutos para o início do nosso trabalho, o Edward empunhou a máquina e pipocaram três ou quatro flash em direção ao garoto. Olhos brilhando, demonstrando felicidade, Marcelo - descobrimos seu nome depois - sorria exibindo os dentes alvos. Em seguida, como a nossa transmissão já estava no ar, o menino sumiu no meio da pequena torcida que estava no Barão de Serra Negra para o desinteressante jogo de campeonato que pouco ou nada alterava a posição mediana do XV ou do Santo André na tabela.
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No intervalo, o garoto reapareceu e, um tanto tristonho, disse: "Não valeu nada o senhor - encarando o Edward - tirar as fotos. Vocês vão embora e não poderão me entregar os retratos". O Edward não disse nada, mas eu notei (estava comentando o primeiro tempo do jogo) que algo não estava bem. No final de minha participação intermediária, no momento dos comerciais, meu colega de trabalho contou-me que o garoto estava triste porque não receberia as fotos: "Quem disse que não receberá?”, retruquei. Pedi ao menino seu endereço para enviar as fotos pelo correio. Argumentou que não tinha o CEP (acho que ele nem sabia do que se tratava). Anotei a rua, o número e o bairro, porém senti que ele não estava acreditando que as fotos lhes fossem remetidas. Acabou o jogo e, missão cumprida, retornamos ao ABC sem mais ter visto o adolescente.
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Dois ou três dias depois, o Edward me entregou as fotos, reveladas e nítidas (a máquina do cara era boa, pena que também tenha dormitado em um balcão de boteco e sumido). Em um envelope escrevi o endereço que o rapazinho havia fornecido (descobri o CEP em livro próprio) e mandei as fotos. Coloquei no verso nosso nome e o endereço da rádio, desejando felicidades ao garoto. Encerrei o assunto. Algum tempo depois (não consigo dimensionar) recebi, na rádio, uma correspondência oriunda de Piracicaba: era o Marcelo que, com letras bem legíveis, quase desenhadas, agradecia o senhor de bigodes (o Edward já os usava) e o outro mais baixinho que tiraram e lhes enviaram as fotos. Dizia estar muito feliz, porque havia contado à mãe e aos amigos de escola que tinha tirado fotos com um pessoal de rádio, mas não acreditava que seriam enviadas. Mostrei a missiva do menino ao Edward e ficamos emocionados, já que um simples gesto, de ambas as partes, proporcionou tripla felicidade.
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Nada nessa vida é tão de graça, mas se “darmos” sem pensar em “receber” em troca, seremos muito mais felizes, mais alegres e mais humanos, porque essa é a essência do ser humano, amar ao próximo sempre com um sorriso no rosto. Nunca mais tivemos notícia do Marcelo, mesmo retornando outras vezes a Piracicaba, mas não importa. São passados 22 anos, mas jamais esqueci o episódio, simples, banal, porém com reflexos eternos e, creio, o Edward e o Marcelo também jamais esquecerão. Outras histórias inusitadas, marcantes, alegres, tristes e corriqueiras aconteceram nessas longas e gratificantes esticadas por este mundão e que deverão ser contadas mais adiante neste espaço.
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Oswaldo Lavrado é jornalista/radialista radicado no Grande ABC.
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