quarta-feira, 25 de agosto de 2010

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Encontrava-me ainda empregado no grupo contábil do Nelson Pinheiro, quando me apresentaram o advogado João Leopoldo Maciel, responsável por editar um semanário em São Bernardo. Marcamos um encontro em uma padaria próximo da casa onde morava, em Santo André. Ele apareceu, de terno e gravata, e após rápida conversa, me ofereceu um salário, um pouco mais elevado do que recebia sem nada fazer no escritório, para ser o editor do seu jornal. Aceitei de pronto, tal a vontade de voltar a exercer a minha real profissão. Em poucos meses, cumpri a rotina de fazer reportagens, preparar matérias baseadas em releases enviados por Prefeituras e corrigir material enviado por colaboradores. Na sexta-feira, ia para São Paulo fazer a revisão final e acompanhar a impressão do jornal, que era distribuído gratuitamente aos sábados.
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O seu objetivo mais era político, direcionado e a maior parte das páginas continha ataques aos representantes do Partido dos Trabalhadores, a sigla partidária, que conquistaria o apoio de outras, responsável pela eleição e reeleição do ex-metalúrgico Luis Inácio Lula da Silva, com quem cheguei a beber muitas doses de cachaça em bares próximos ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, instalado em São Bernardo.
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Ainda no primeiro ano em que estava nesse semanário, Maciel, como gostava de ser chamado, me convidou para fazer um jornal quinzenal em Iguape, no Litoral Paulista. Concordei, mesmo sem ter a garantia de nenhum adicional sobre o meu salário. Certo que teria hotel e refeições pagas e aproveitaria para me divertir na Ilha Comprida, que já promovia um movimento emancipacionista – queria se tornar autônoma, deixar de pertencer a Iguape. Tanto Iguape como a Ilha me encantaram. Durante dois anos seguidos ia quinzenalmente às duas localidades, entrevistava políticos, comerciantes, moradores e escrevia as reportagens em casa. Iguape é uma cidade tranquila, próxima de Registro e Cananéia. Seu território engloba a reserva ecológica de Jureia e a praia com o mesmo nome – uma das mais lindas praias brasileiras.
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A Ilha Comprida atrai pela extensão de sua orla e pela facilidade de acesso, melhorada com a construção de uma ponte sobre o rio que separa as duas cidades. Cidades, sim, porque a Ilha conseguiu a sua emancipação e tem o seu próprio prefeito, seus vereadores, com seus assessores e funcionários burocráticos. Tanto eu gostei dessas duas localidades que recentemente, num dia, diante da gravidade da minha situação, conversei com a Ilca sobre a minha morte que, eu pressentia, me rondava persuasiva. Ela, com seu otimismo de sempre, passou a mão pela minha cabeça lisa, de cabelos raspados, e com ternura na voz, disse que iríamos ainda viver muitos anos juntos em uma casa tranquila em Iguape, com quintal com árvores e área suficiente para abrigar quantos cachorros e gatos eu quisesse. E mais, todas às tardes, nós pegaríamos o carro e rumaríamos para a Ilha Comprida, onde poderíamos passear, descalços, pelas areias da praia. Essa visão futura da minha velhice me deu um certo alento, me confortava e me devolvia as forças para enfrentar a doença e alimentar a esperança de uma vida longa e com saúde, ao lado da Ilca.
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Desentendimentos com o Maciel provocaram a minha saída dos jornais por ele editados. Voltei a ficar desempregado, mas, desta vez, por pouco tempo. Indicado por Ademir Medici, uma missionária me procurou e propôs escrever um livro sobre o problema dos índios Macuxis, que viviam em uma ampla reserva em Roraima, extremo norte do país, em constantes conflitos com os fazendeiros, garimpeiros e os seus respectivos jagunços. Ofereceu-me um bom dinheiro, caso eu aceitasse ir até a região, de avião, e entrevistar os indígenas, em sua aldeia, e relatar tudo em um livro. O pedido tinha o aval de dom Aldo Mongiano, arcebispo daquele estado nortista. Aceitei e foi uma das experiências mais dolorosas de minha vida.
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Tinha decidido parar de fumar havia poucas semanas e planejava, também, deixar o vício do álcool. Diziam que era mais fácil se livrar do fumo do que do álcool. Eu, no entanto, não sentia muito a falta do tabaco, embora minha mulher tenha relatado, tempos depois, que eu virara uma “pilha de nervos”, me irritava com qualquer coisa e não cessava com reclamações, uma mais esdrúxula que a outra.
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Só tinha estado uma vez em Roraima, a serviço do Jornal do Brasil. Achava que Manaus era uma cidade quente, mas Boa Vista parecia superar capital amazonense em alta temperatura. No aeroporto, fui recebido por emissários da diocese, que me conduziram para um enorme casarão situado na zona central de Boa Vista. Não demorou muito, após um banho frio e troca de roupa, recebi a visita da missionária responsável pela minha vinda para essa nova missão relacionada com índios. Ela me informou que o arcebispo me esperava para uma reunião. Conversamos durante mais de uma hora e, como já estávamos no mês de abril, quando oficialmente há um dia dedicado ao índio, aproveitei para fazer uma entrevista sobre a situação dessa raça no Brasil e, em especial, em Roraima, com a tribo dos macuxis.
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Sobre esse tema, dom Aldo Mongiano me entregou artigo, escrito por ele, publicado no Jornal do Brasil, onde questionava, em certo trecho: "em Roraima, se diz que, sem as terras indígenas, o Estado se torna inviável. Essa afirmação não tem fundamento. Deverão os índios ser sacrificados para salvar a sociedade roraimense? Se pensarmos no atual sistema sócio-econômico do Brasil, mesmo ocupando as terras dos índios com muitas ou poucas riquezas naturais, não serão resolvidos os problemas da sociedade branca, nem em nível nacional nem regional, pois os bens produzidos serão sempre encaminhados para a minoria rica".
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Finalizava: "uma máquina foi montada de forma engenhosa para aliciar e fazer ver que entre índios e brancos há harmonia. São churrascadas, festas, corridas de cavalos para atrair o índio desprevenido e tentar mudar, artificialmente perante ele, a imagem da sociedade envolvente e invasora. Paralelamente, diz-se aos índios que se não aceitaram a demarcação recortada, como a sociedade envolvente quer, o governo deixará de auxiliar as comunidades indígenas nos setor de saúde, educação, agricultura. Como se vê, o método de sempre: aliciamento e ameaça. Também é um só o objetivo: ocupar terras indígenas".
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No dia seguinte ao encontro com o arcebispo, viajei em uma caminhonete até a aldeia dos Macuxis, denominada Maloca Santa Cruz, localizada no pé de uma montanha. Essa maloca se destaca como o principal núcleo da reserva indígena Raposa-Serra do Sol, onde viviam na década de 90 do século passado mais de 25 mil índios. Eles ocupavam quase 54 mil hectares, área geograficamente localizada no município de Normandia, na fronteira do Brasil com a República Cooperativa da Guiana, ex-possessão do governo britânico.
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Minha missão era gravar o relato dos indígenas mais expressivos da tribo e repercutir a situação por eles vivida, destacando o assassinato de dois índios: Damião Mendes e Mário, por jagunços a mando do fazendeiro Newton Tavares. Mas, sob o sol ardente e um calor de quase 40 graus, sem apetite e, portanto, sem me alimentar, tomava doses de cachaça, que havia trazido escondido. Era o vício a me perseguir nos rincões mais distantes. Esse abuso me levou a enfrentar violenta diarréia, resultando em uma infecção intestinal e, em seguida, sinais evidentes de hemorróida. Vou morrer aqui neste fim de mundo, longe das pessoas que mais quero, pensei, olhando para a imensidão da floresta a me rodear...
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.
(Edward de Souza/ Nivia Andres).
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