quarta-feira, 26 de maio de 2010


"Numa manhã, de sol, passeava ao lado do jornalista Edward de Souza por uma das praças de Santo André, quando um contínuo do Correio Metropolitano, jornal onde exercia a chefia de reportagem, veio correndo e me avisou: telefonaram do Rio de Janeiro dizendo que você ganhou o Prêmio Esso".
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Meu casamento, pelas circunstâncias, jamais iria dar certo. No ano em que me casei, começava a me projetar como jornalista e como amante. Além de manter o meu trabalho no Diário do Grande ABC, era repórter da sucursal de O Estado de S. Paulo no ABC, e, ainda assessor de comunicação social da Prefeitura de Santo André. Três empregos, três salários e... três mulheres.

Como jornalista, e considerando a minha idade, estava me revelando um bom profissional. Com o apoio do economista José Paschoal Rossetti e responsável pela sucursal - que estava na parte final do seu livro Introdução à Economia -, assimilei rapidamente os segredos da redação jornalística. Fora isso, era impetuoso e entusiasmado. Um ano antes de me casar, já havia ganho dois prêmios, importantes para mim: o Troféu João Ramalho, por vencer um concurso sobre o aniversário de Santo André, e outro troféu por ter sido escolhido como o melhor jornalista da região industrial do ABC. Para um jovem iniciante, com apenas 21 anos de idade, era a glória.

Junto com o sucesso nos meios jornalísticos, não resistia à tentação de conquistar novas mulheres. Com dois meses apenas de casado, passei a sair com a secretária do diretor de uma autarquia municipal. Era uma jovem de cabelos negros e compridos, corpo esguio e bastante sensual. Devido aos compromissos assumidos com ela, passei a me ausentar nos finais de semana e, justificava minha ausência para a Eva dizendo estar a trabalho, como enviado especial do jornal. Era tudo uma armação.

A situação se agravou - para o meu lado - quando, além dessa, passei a namorar outra. Esta, trabalhava como repórter no Diário do Grande ABC e era pouco mais de quatro anos mais velha que eu. Era descendente de italianos e muito simpática. Mais uma que exigia minha presença, principalmente nos finais de semana quando havia folga no jornal. Para as duas eu revelei ser um homem casado. Mas já era uma época em que a revolução cultural, explodida na França em 1968, espalhara como um rastilho de pólvora pelo resto do mundo. E essa revolução incluía, principalmente, o amor livre, com firme base na descoberta e liberação da pílula anticoncepcional.

Era um grito de liberdade para as mulheres e um alento para os homens. Ambos, agora, homem e mulher, não tinham mais que se preocupar com a gravidez. Era só a mulher não se esquecer de tomar a pílula e pronto... Estava tudo resolvido. A pílula anticoncepcional foi, sem dúvida, o estopim para ambos os sexos se sentirem livres das amarras que tinham a gravidez como âncora. Diante dessa facilidade, tornei-me um homem promíscuo, sexualmente falando. Com o vigor da minha juventude, e sem querer contar vantagens, cheguei a manter relações com as três mulheres em um só dia – manhã, tarde e noite. Hoje, ao pensar nessa proeza, só me resta rir e perceber que não havia sentido praticar o sexo simplesmente pelo prazer, por machismo.

Quem mais sofria com esses meus encontros amorosos era a Eva, que permanecia sozinha em casa. Ela, que sempre gostara de dançar, passear, ter um homem ao seu lado, que lhe fizesse companhia, que lhe desse carinho, amor, vivia isolada, enquanto seu marido, sempre com a desculpa de trabalho, ausentava-se. Essas constantes ausências foram deixando a Eva irritada e nervosa, o que gerava brigas e discussões.

Assim, mês após mês, o nosso casamento ruía. Ainda hoje não consigo entender qual o motivo que me levava a desprezá-la em troca de outra mulher. Era uma esposa ideal, caseira, carinhosa, dedicada, que ansiava apenas pela minha presença, pelo calor de minha presença. Não. Casada, mais parecia uma órfã. Não. Uma viúva. O seu marido, tão carinhoso na fase do namoro, agora se tornara indiferente e grosseiro, até. É que, como não tinha razão quando indagado pela ausência, usava da intolerância na tentativa de evitar maiores discussões.

Ainda nesses primeiros anos, foi que conheci pela primeira vez o Parque Nacional do Xingu. Era também a primeira oportunidade que tinha para conhecer os irmãos sertanistas Cláudio e Orlando Villas Boas. Só que, desta vez, a viagem era uma promoção da Força Aérea Brasileira, em comemoração ao aniversário do Correio Aéreo Nacional, o famoso C-47, e agora era aproveitado para rasgar as florestas brasileiras, levando mantimentos e remédios para as tribos que habitam essa imensidão ainda desconhecida por muitos. Essa primeira viagem foi a abertura de portas para uma grande reportagem que iria fazer um ano mais tarde na selva brasileira.

Coincidência ou não, ao me recordar dessa grande reportagem na selva, assistia ao noticiário de um canal de televisão quando apareceram no vídeo os destroços de um avião, que havia caído na Floresta Amazônica após o choque com um jatinho pilotado por norte-americanos. Esse, considerado um dos maiores desastres aéreos ocorridos no Brasil, causou a morte de 154 pessoas e ninguém foi considerado culpado e punido. Mas, o que despertou a minha atenção foi o local de onde o jornalista transmitia diretamente as imagens: a cidade chamada Peixoto de Azevedo. Quase nem acreditei. Isso porque, há mais de três décadas, às margens esquerdas do rio Peixoto de Azevedo - local onde se ergueu a cidade - abrigara os sertanistas, jornalistas e indígenas que integravam a expedição formada para contatar os Kranhacãrore, mais conhecidos como índios gigantes. Como havia evoluído!

Passei então a lembrar. Encontrava-me ainda na sucursal de O Estado, em Santo André, quando o Raul Martins Bastos, então editor nacional do jornal, enviou uma mensagem, via telex - na época o meio mais rápido de comunicação escrita - pedindo minha dispensa para viajar até o rio Peixoto de Azevedo, no extremo norte de Mato Grosso, quase na divisa com o Pará. Fui liberado e, na mesma semana, estava embarcando ao encontro da expedição, em um avião Cessna, fretado pelo jornal. Junto, seguiu o sertanista Orlando Villas Boas, que se encontrava em São Paulo.

Após uma rápida escala em Aragarças, em Goiás, seguimos rumo ao rio Peixoto. Lá, apenas um conhecido, que havia trabalhado comigo no Diário do Grande ABC: o fotógrafo Pedro Martinelli, na época prestando serviços para “O Globo”. Os demais, eu não conhecia, mas me informaram que eram todos jornalistas experientes. Afinal, indagaram, qual o jornal que iria fretar avião, ter enormes despesas, se não tivesse certeza do retorno de grandes reportagens?
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Essa pergunta bastou para me deixar intrigado. Estava há pouco mais de três anos no jornal, tinha pouca experiência. De índios, só ouvira falar na escola e, mais recentemente, na visita feita ao Posto Leonardo Villas Boas. Voltando um pouco no tempo, havia feito também reportagem com os índios que habitavam as matas de Barra do Uma, no litoral norte paulista. Agora, estava ali, praticamente sozinho, com papel, caneta, e duas máquinas: uma de escrever, portátil, e outra Nikon, com teleobjetiva, para registrar o encontro dos índios com os membros da expedição.
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Os dias passavam e nada de os índios aparecerem. Sobrava o silêncio da selva, o passear pela pista improvisada para o pouso de pequenos aviões. Para a gente, acostumada com as comodidades da vida moderna nas grandes cidades, é difícil adaptar-se a viver isolado, rodeado de homens, sem ter o que fazer, a não ser esperar, esperar, esperar...
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No entanto, essa solidão serviu para me aproximar do sertanista Claudio Villas Boas. Ele despertou minha atenção por ficar horas e horas sentado, um caderno apoiado nas coxas, fazendo anotações. Curioso, quis saber do que se tratava e ele me revelou: aquele era o diário da expedição, desde o seu início, desde o primeiro dia em que os índios representantes de todas as tribos do Parque Nacional do Xingu se reuniram no Posto Leonardo Villas Boas e partiram em direção ao rio Peixoto de Azevedo, vencendo florestas fechadas e rios desconhecidos e alimentando-se basicamente de peixes e pequenos animais abatidos durante a longa caminhada.
Sem nenhuma pretensão, perguntei-lhe se podia ler o seu relato e Cláudio, não só deixou, como quis saber se havia interesse em publicar algo daquele diário. Senti, na hora, a grande chance de obter o material necessário para uma grande reportagem, uma reportagem que jamais seria escrita pelos demais repórteres, porque nenhum deles havia participado da expedição desde o seu começo.
No diário, Cláudio narrava as dificuldades em atravessar a mata, o ataque dos mosquitos, a dificuldade em se obter água em caminhadas distantes dos rios, a maioria desconhecida, a solidão, a vontade dos índios em regressar para a tribo, os ataques feitos por desconhecidos -provavelmente os gigantes - e tudo o que ocorrera durante a expedição em meio a uma floresta densa e misteriosa.

Como os índios Kranhacãrore não apareciam, decidi regressar para São Paulo. O Raul poderia até me censurar, mas eu possuía um trunfo na mão: o diário de Cláudio Villas Boas. Por meio de rádio, foi solicitado um pequeno avião de Cuiabá. Daí, segui em vôo comercial para a capital paulista. Depois de supervisionado por Oliveiros S. Ferreira, então secretário de redação, “O Estado” começou a publicação do diário, que eu transformei em uma série de reportagens, a qual recebeu o nome de “No encalço dos gigantes”.

Meses depois, em fevereiro do ano seguinte, fui novamente enviado ao rio Peixoto de Azevedo. Desta vez, em menos de uma semana, os índios gigantes apareceram na margem esquerda e realizou-se o contato, que os sertanistas classificaram como “definitivo”. Essa reportagem encerrava a série que havia se iniciado com o diário de Cláudio. Apesar do sucesso, acabei sendo demitido do jornal, como uma das alternativas para liberar minha indenização e pagar algumas dívidas. Ao mesmo tempo, recolhia todas as reportagens sobre os índios e as enviava para o concurso promovido pela Esso, sem nenhuma ilusão, honestamente. A série era denominada “Expedição de Contactação dos Índios Kranhacãrore”.

Passaram-se os meses e, numa manhã, de sol, passeava ao lado do jornalista Edward de Souza por uma das praças de Santo André, quando um contínuo do Correio Metropolitano, jornal onde exercia a chefia de reportagem, veio correndo e me avisou: telefonaram do Rio de Janeiro dizendo que você ganhou o Prêmio Esso. Sorri, com desdém. Deprimido, não acreditava em nada. E, se por acaso tivesse sido premiado, seria uma menção honrosa ou coisa parecida. Não. Mais tarde confirmou-se: eu, realmente, havia ganho o Prêmio Esso de Jornalismo, de abrangência nacional. Não é preciso dizer que, para comemorar, eu bebi. E bastante. Bastante mesmo.
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Na próxima quarta-feira, o sétimo capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. (Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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