domingo, 18 de abril de 2010

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

17 comentários:

  1. Prezada Marina Colasanti: parabéns por sua crônica e senso crítico repleto de sensibilidade. Sua inquietação é edificante.
    Abraços a todos e bom domingo!
    Milton Saldanha

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  2. Marina Colasanti!

    Levantar no meio de um belo amanhecer de domingo, no seio de umas das melhores cidades do planeta, acessar o melhor blog da internet, e depois ser abençoado com uma crônica tão espetacular como essa, só pode ser uma dádiva que nos conduz a reflexões do tipo que, “a paciência é a maior virtude do homem”.

    Padre Euvideo. Franca S.P.

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  3. Olá Amigos

    Linda crônica.
    Paz. Muita Paz.
    J. Morgado
    “Titãs - Rotina
    Acorda cedo para ir trabalhar
    E o relógio de ponto a lhe observar
    No lar esposa e filhos a lhe esperar
    Sua cabeça dói, um dia vai estourar
    Com essa rotina, rotina
    Rotina, rotina
    Sua cabeçã dói, não consegue pensar
    E as quatro paredes a lhe massacrar
    Daria tudo pra ver o que acontece lá fora
    Mesmo sabendo que não iria suportar
    Essa rotina, rotina
    Até quando ele vai aguentar?
    Até quando ele vai aguentar?
    No lar a sua esposa lhe serve o jantar
    E os filhos brincam na sala de estar
    Levanta da poltrona e liga a TV
    Chegou a hora do programa começar
    Rotina, rotina
    O homem da TV lhe diz o que fazer
    Lhe diz do que gostar, lhe diz como viver
    Está chegando a hora de se desligar
    A sua esposa lhe convida para o prazer
    Rotina, rotina”.

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  4. Bom dia amigos (as)deste blog...

    Marina Colasanti, é uma escritora e jornalista ítalo-brasileira nascida na então colônia italiana da Eritréia. Ainda criança sua família voltou para a Itália de onde emigram para o Brasil com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. No Brasil estudou Belas-Artes e trabalhou como jornalista, tendo ainda traduzido importantes textos da literatura italiana. Como escritora, publicou 33 livros, entre contos, poesia, prosa, literatura infantil e infanto-juvenil. (texto que extraí da Wikipédia).

    Uma idéia toda azul é um livro seu de contos que ganhou o prêmio O Melhor para o Jovem, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Entre 1952 e 1956 estudou pintura com Catarina Baratelle; em 1958 já participava de vários salões de artes plásticas, como o III Salão de Arte Moderna. Nos anos seguintes, atuou como colaboradora de periódicos, apresentadora de televisão e roteirista. Em 1968, foi lançado seu primeiro livro, Eu Sozinha; de lá para cá, publicaria mais de 30 obras, entre literatura infantil e adulta.

    Seu primeiro livro de poesia, Cada Bicho seu Capricho, saiu em 1992. Em 1994 ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, por Rota de Colisão (1993), e o Prêmio Jabuti Infantil ou Juvenil, por Ana Z Aonde Vai Você?. Suas crônicas estão reunidas em vários livros, dentre os quais Eu Sei, mas não Devia (1992). Nelas, a autora reflete, a partir de fatos cotidianos, sobre a situação feminina, o amor, a arte, os problemas sociais brasileiros, sempre com aguçada sensibilidade.

    Marina Colasanti deixa nosso domingo mais colorido!

    Um forte abraço a todos...

    Edward de Souza

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  5. Oi Edward, eu adoro ler a Marina Colasanti e você e a Nivia foram felizes postando-a hoje no blog com essa bela crônica que eu não havia lido ainda. Tem um poema dela, Marina, que adoro, permita-me postá-lo, chama-se "Seis da Tarde". Gostaria que todos acompanhassem a leitura:

    Ás seis da tarde
    as mulheres choravam
    no banheiro.
    Não choravam por isso
    ou por aquilo
    choravam porque o pranto subia
    garganta acima
    mesmo se os filhos cresciam
    com boa saúde
    se havia comida no fogo
    e se o marido lhes dava
    do bom
    e do melhor
    choravam porque no céu
    além do basculante
    o dia se punha
    porque uma ânsia
    uma dor
    uma gastura
    era só o que sobrava
    dos seus sonhos.
    Agora
    às seis da tarde
    as mulheres regressam do trabalho
    o dia se põe
    os filhos crescem
    o fogo espera
    e elas não podem
    não querem
    chorar na condução

    Beijos a todos, um maravilhoso domingo!

    Carol - Metodista - SBC

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Verdade, Cris, como escreve Marina Colasanti, "eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia". Pelo menos se acomodar diante de coisas que nos fazem mal e nos magoam. Existem tantas coisas boas para se acostumar, só saber fazer essas escolhas. Nada nelhor do que esse lindo domigo para que possamos refletir sobre isso.

    Beijos a vcs!

    Um lindo domingo a todos, eu vou saborear a macarronada da mama, uma boa escolha que fiz agora.

    Gabriela - Cásper Líbero - SP.

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  8. Boa tarde a todos.
    Ler o que escreve Marina Colasanti,é como se estivéssemos ouvindo o canto de um pássaro,faz bem aos nossos ouvidos e ao coração.
    Eu sei que a gente se acostuma,mas que pena,não deveríamos nos acostumar em ver crianças abandonadas,animais jogados pelas ruas,adolescentes se drogando,políticos saqueando o Brasil,e o descaso total com a saúde pública e nossos idosos.
    Mas,podemos sim nos acostumar a ler algo interessante e muito bem escrito pelos mestres que ocupam esse espaço de ouro,opinar,discordar,rir um pouco com o Professor João Paulo,enfim acostumar com coisas que nos de prazer.
    O Edward,a Cris e a Nívia estão de Parabéns,este espaço está cada dia melhor,mais belo e mais cultural,é impossível "não se acostumar"com esse espaço de ouro,que só conta com grandes mestres e suas peculiaridades.
    Beijos a todos.
    ANA CÉLIA DE FREITAS.

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  9. Sem dúvida. Marina Colasanti sabe escrever como ninguém e sua crônica postada hoje foi um grito de alerta ao comodismo que toma conta de todos nós. Eu, por exemplo, me acostumei a torcer pelo Santos e lhes pergunto: estou certo ou errado? Certo, claro, afinal, torcer para um time campeão é uma das melhores coisas da vida. E já vou preparar meu salaminho para assistir ao jogo de daqui a pouquinho, quando vamos triturar os bambis na Vila. Alguém duvida?

    Abçs

    Juninho - São Paulo - SP.

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  10. Adorei o texto da escritora Marina Colasanti. Tudo isso é uma verdade que devemos refletir e ter principalmente ação, que é o mais difícil por conta do comodismo. É incrível como o ser humano se acomoda com as situações... Como a mudança causa mal estar, mesmo quando vem para melhorar. A resistência em adquirir novos hábitos é algo que permeia nosso universo humano. Será medo do novo? Do que encontraremos? Ou será mera preguiça ou comodismo mesmo? Nosso cérebro se acostuma a fazer as coisas do mesmo jeito e então aquilo se torna automático. Mudar significa “reestruturar” uma função mental, e mudar padrões mentais é algo que exige uma energia a ser despendida. Percebo que muitas pessoas não estão felizes com seu trabalho, relacionamento, enfim com sua vida e, no entanto, não pensam no que podem fazer para mudar, dar um novo rumo. Acham que estão fadadas a ficarem desse jeito. Não é bem assim. Temos que lutar contra o comodismo, dar a volta por cima para encontrarmos a felicidade plena.

    Um bom final de domingo!

    Bruna - UFJF - Juiz de Fora/MG

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  11. Eu nunca acostumei-me com nada! Vivo de mudanças em mudanças. Adoro o novo, o desconhecido. Se pudesse, mudaria de casa toda semana, de Pais todos os anos. Amo conhecer gente nova, do passado só carrego quem me acompanha. Meus filhos são meus amigos, meus netos meus companheiros.Não acredito que tenho minha idade. Eu sei do que sou capaz!
    Boa Noite
    João

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  12. Eu só não entendi quem escreveu essa postagem acima. É o João, ou o Yuri? Se for o João, eu conheço, se for o Yuri, prazer em conhecê-lo.
    E nem precisa dizer que estou feliz da vida com meu "Peixe". Agora a próxima vítima, a final, é o Santo André, coitado!

    Abçs

    Juninho - São Paulo - SP.

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  13. Marina Colassanti.
    Pelo que li nos comentários aqui registrados, todos concordam que o blog do EDWARD no tripé que inclui Nivia e Cris,reune valores intelectuais apreciáveis. Você com garbo provou o que estou dizendo com seu texto de hoje, Leitura gostosa revelando a rotina na vida das pessoas.
    Pessoalmente, não aceito muito bem o acomodamento do acostumar-se, no entanto, como viver contestando tantas coisas e pessoas? Avalie você, como seria difícil acostumar-se com o Sarney ou mesmo com o Lula que prega respeito a biografia do senador!
    O fato é que seu texto foi aprovado por merecimento o que me faz desejar sua presença permanente aqui. Ja estou me vendo acostumado com seus textos toda semana. Um abraço. Garcia Netto

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  14. Juninho, Quem escreveu foi o João. O Yuri é um de meus netos.Na verdade não sei que confusão eu fiz e o comentário saiu com a conta dele no google. Estava vendo o Orkut de meu neto e em seguida entrei aqui no blog do Edward e acho que ficou gravada a conta do menino.
    Abraços
    João

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  15. A Marina Colsasanti é ótima! Muito sagaz, fez um apanhado geral da Lei do Menor Esforço, aquela que utilizamos o tempo inteiro, para poupar tempo e energia. E, certamente, sofrimento também, já que pensar dói e transformar-se significa percorrer um longo caminho, por trilhas incertas, desconhecidas. Nem sempre acertamos na primeira tentativa...

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  16. Oi gente!
    Gostei muito dos escritos que eu li aqui.
    Abraços a todos.

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