segunda-feira, 30 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Exclusivo
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Jornalistas perseguidos
e presos pelo DOI-CODI
Parte XIII
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Milton Saldanha
Memórias
Capítulo Final

"È a polícia!" Nossa saída do Diário começou com esta frase. Não eram ainda seis horas da manhã quando nosso apartamento, no Edifício Satélite, Baixada do Glicério, em São Paulo, foi invadido por oito agentes do DOI-CODI, armados com pistolas e metralhadoras. Era dezembro de 1970, portanto antes do assassinato de Vladimir Herzog. Eles entraram gritando “É a polícia! É a polícia!” e já foram revirando tudo. Quem atendeu a porta fui eu, ao ver o rosto do zelador no olho mágico. Mal virei a chave e eles invadiram, aos berros. Rubem dormia num quarto do fundo e foi acordado com o cano de uma metralhadora no rosto. As razões da nossa prisão são uma história muito longa, que aqui vou dispensar. Alguns, como o Dirceu Pio, conhecem em vários detalhes. Outros, parcialmente. O fato é que o Brasil vivia um dos momentos mais duros da ditadura militar, governo Médici, com tortura, censura e repressão por toda parte, em resposta à luta armada das organizações de esquerda. Passamos o dia presos, sendo interrogados várias vezes, e pouco antes do escurecer fomos liberados.
Liberados é maneira de dizer. Ali começavam os dois piores dias das nossas vidas. Éramos ostensivamente seguidos por um grupo de agentes, em vários carros. Um aparato absurdamente desproporcional à nossa (in) significância política, pois não éramos militantes de nenhuma organização, nem de partido legal ou clandestino, nunca pegamos em armas, e tínhamos uma vida totalmente na legalidade, dedicada ao trabalho, como contei acima. Nossa sensação, naquelas tenebrosas horas, eram de um jogo de gato e rato, onde o gato se diverte antes do derradeiro salto sobre sua presa. Decidimos então não dar-lhes este gosto, surpreendendo-os, como contarei logo adiante.
Fomos presos e liberados numa sexta-feira. No sábado, já pela manhã, fomos para o Diário. Bem barbeados e, coisa rara, de terno e gravata, uma forma de passar uma imagem austera, menos informal, até de mais respeito, e prontos para qualquer circunstância. Lá dentro, na redação da casinha, fingimos estar trabalhando, algo que na prática era impossível, pela tensão, com nossos nervos em frangalhos. Da janela víamos nossos seguidores lá na rua, literalmente cercando o prédio. Convocamos, como chefes, todo o pessoal ao jornal, e no começo da tarde fizemos uma reunião geral na sala do Fausto, já informado previamente sobre a situação. Não sei como consegui falar, a voz não saia, tal a tensão. Foi um esforço tremendo. Alertei: “Todos devem saber a partir deste momento que Rubem e eu estamos sendo seguidos pelo pessoal da Oban, DOI-CODI, e podemos ser presos a qualquer momento. Se a gente desaparecer, todos já sabem onde deveremos estar”. Era uma medida de segurança informar a categoria, através daquele grupo de colegas. O sigilo não nos interessava. Encerramos a reunião em meio a um silêncio impressionante, todos tomados de surpresa e sem acreditar que aquilo pudesse estar acontecendo justo conosco, que passávamos horas todos os dias no jornal, indo dormir na madrugada. Nem tempo tínhamos para supostas atividades subversivas. Na verdade éramos suspeitos. As acusações pesavam sobre nosso amigo e parceiro de residência, um publicitário, acusado de ligações com a VPR. Ele foi barbaramente torturado.
Naquele mesmo sábado, após a reunião, Fausto pegou seu carro e foi conosco ao Glicério, onde outros agentes revistavam durante horas nosso apartamento. Levou o famoso livro de ponto do Seu Abílio e lá mostrou aos agentes nossas assinaturas e horários diários de entrada e saída do trabalho. Foi uma atitude corajosa e amiga, pela qual serei eternamente grato a Fausto Polesi.
Agora vem a surpresa. Como tínhamos absoluta certeza que seríamos novamente presos, era só questão de horas, ou minutos, tomamos uma decisão, em companhia do nosso pai, coronel da reserva do Exército e advogado, que tinha vindo de Porto Alegre para nos dar alguma assistência, se é que isso era possível, e apoio moral. Pegamos nosso carro, saímos pelas ruas de São Paulo, os agentes atrás, nos seguindo, certamente supondo que tentaríamos alguma fuga (e acho que era isso que desejavam, para agir), e fomos direto para o próprio DOI-CODI, na Rua Tutóia, onde nos apresentamos. “Queremos esclarecer tudo”, foi nosso argumento. Essa atitude nos ajudou e foi mencionada por eles em várias fases dos intermináveis interrogatórios. E tiramos o gostinho dos nossos seguidores, porque sabe-se lá como agiriam, e com certeza não seria nada agradável. Além disso, estar novamente preso era um fato consumado, um alívio quando comparado com o horror de ser seguido daquela forma ameaçadora e acima de tudo incerta. A gente temia até ser metralhado na rua, sem qualquer chance de defesa. Só quem conheceu a ditadura sabe que isso não é exagero. Finalmente libertados, depois de onze dias presos e incomunicáveis, não havia qualquer clima para continuar trabalhando. Nosso trauma era profundo, e durou muito tempo. Fomos em busca de repouso, em lugar seguro e isolado, numa praia de Santa Catarina. Nem nossa família sabia onde estávamos, por segurança. Assim terminou minha primeira fase no Diário. Rubem nunca mais voltou, foi morar no Rio. Voltei para o ABC em 1976 para chefiar a sucursal do Estadão, durante quatro anos. Os melhores, a propósito, da minha carreira. Saí em 80, como conseqüência da desastrosa greve dos jornalistas, em 79. Nos anos 80, convidado pelo Fausto em três longas conversas regados a vinho, no Terraço Itália, voltei ao jornal, como editor-chefe. Agora já era outra empresa, claro, totalmente diferente, em tudo. Foi uma fase interessante, apesar de algumas dificuldades inerentes ao cargo. Depois de uns dois anos, saí por quebra da confiança junto à diretoria, por não ter aceitado uma tentativa de redução de salários. Além de imoral, isso afetaria minha autoridade no comando da redação, que ficaria desmotivada. Fui para a TV Globo e depois para a Ford, em ambos a convite. Mais tarde, nos anos 90, voltei convidado pelo Alexandre Polesi, para montar um caderno de economia. Estava trabalhando, mas acabei topando. Foi um erro. A crise interna da direção do jornal já começava a explodir, com repercussões em todos os setores da empresa e no clima da redação. Uma pena. Que saudade dos primeiros anos, tão precários, e tão românticos.
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A garotada de hoje, mas também muita gente adulta, não sabe o que foi a ditadura militar. Não sabe o que passaram milhões de brasileiros para liquidar com aquele período de falta de liberdade, de opressão, de total ausência de garantias individuais e sociais. A grande maioria, hoje, não sabe o que é viver em um regime em que falta a liberdade, a democracia. Na noite do dia 24 de outubro de 1975, o jornalista Wladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV Cultura, de São Paulo, apresentou-se na sede do DOI-CODI para prestar esclarecimentos sobre a sua atividade política. Herzog era filiado ao Partido Comunista Brasileiro. Ficou apenas uma noite nas mãos da repressão e foi barbaramente torturado. Os militares assassinos simularam seu suicídio, entregando à imprensa fotos do corpo de Herzog pendurado pelo pescoço à grade da cela por uma peça de roupa. Como Wladimir Herzog era judeu, o Shevra Kadish (comitê funerário judaico) recebeu o corpo e, ao prepará-lo para o funeral, o rabino percebeu que havia marcas de tortura no corpo do jornalista. O suicídio tinha sido forjado. Esse foi o sinal, porque Herzog foi enterrado dentro do cemitério judaico, e não do lado de fora dos muros, como a religião determina que seja feita com os suicidas. Será que vinte anos de democracia fizeram a sombra da censura, que tanto aterrorizou as redações, desaparecer? Esta é uma pergunta sem resposta. O jornalista do século XXI é livre para escrever o que quiser e continua levantando cedo e saindo tarde. Porém, a liberdade é somente dentro da linha editorial da empresa. A censura, hoje, vem de dentro da própria casa, sem tortura, mas via ameaça de desemprego. Edward de Souza
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Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho, torcedor do Inter, começou no jornalismo aos 17 anos, em Santa Maria (RS). Trabalhou na grande imprensa de Porto Alegre e de São Paulo. Foi da Folha da Manhã (RS), Diário do Grande ABC, Agência Estado, Estadão e JT, Rede Globo, Rádio Jovem Pan, Última Hora (com Samuel Wainer), entre vários outros veículos. Foi também assessor de imprensa da Ford, do IPT e do Conselho Regional de Economia. Tem um livro publicado, "As 3 Vidas de Jaime Arôxa"; participou de uma antologia de escritores gaúchos; um livro pronto e ainda inédito, "Periferia da História", onde conta de memória 45 anos da recente história do Brasil sob um ângulo totalmente inédito; trabalha num livro sobre Reforma Agrária. Pouco antes de se aposentar fundou o jornal Dance -
www.jornaldance.com.br - que já tem um filhote regional em Campinas, e que neste 2009 completa 15 anos.