quarta-feira, 10 de junho de 2009

" QUANDO CHEGO A ESTA CIDADE..."

Milton Saldanha
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Capítulo inédito do livro “Periferia da História”
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A política sempre esteve presente na minha vida. Curiosamente, nunca me tornei militante de carteirinha de nenhum partido. Mas já fui simpatizante do antigo PTB (favor não confundir com o atual) – Partido Trabalhista Brasileiro, fundado por Getúlio Vargas e que teve líderes como Jango e Brizola. A campanha para o governo, de Brizola contra Perachi de Barcellos, um coronel da Brigada Militar aposentado e que na ditadura se tornaria governador biônico do Estado, foi com certeza a mais acirrada da História do Rio Grande do Sul. Não existia TV e o próprio rádio tinha seu alcance limitado. Para se captar uma rádio de outra cidade era preciso um rádio potente, dos mais caros, e mesmo assim o som chegava com chiados, interferências, quedas de onda. Conforme o dia e horário, como nos domingos à noite, a recepção ficava um pouco melhor. Só Porto Alegre tinha rádios potentes. No interior nenhuma chegava muito longe. Não existia também horário eleitoral gratuito. As campanhas eram na raça. Os candidatos percorriam cidade por cidade, mesmo as menores, apresentando-se num comício a cada noite. Contratavam uma ou duas rádios locais, que transmitiam tudo. Ficavam roucos daquela gritaria diária, às vezes subiam no palanque com a barba de dois dias, paletó surrado, e isso lhes conferia um certo charme de heróis, que se sacrificavam naquelas marchas para libertar o povo. “Chego cansado a esta cidade” – berrou com rouquidão um dos candidatos famosos, na nossa Santa Maria. Era Fernando Ferrari. Como se estivesse fazendo uma grande declaração. “Mas, amanhã de manhã, a primeira coisa que vou fazer será ir à Igreja da Medianeira para humildemente depositar flores aos pés da Virgem Nossa Senhora”. Medianeira é a padroeira da cidade.
Demagogias baratas como esta pontilhavam os discursos, e eles só tinham que tomar cuidado para, no cansaço, não trocar o nome da cidade onde estavam, o que seria uma gafe irreparável. O bairrismo municipal, em qualquer lugar, era forte. Durante muito tempo gostei de gozar dos políticos imitando Ferrari. Sempre começava algum “discurso” com a saborosa frase “chego cansado a esta cidade...”, imprimindo o mesmo tom dramático que ele usara.
A disputa de Brizola com Perachi foi impressionante. Brizola, do PTB, enfrentava uma coligação de partidos conservadores, entre eles o PL – Partido Libertador, que de libertador não tinha nada, e visto de hoje era muito folclórico. Os caras, todos brancos, com predominância dos gringos, usavam lenços vermelhos no pescoço, o símbolo do partido. Eram visceralmente contra tudo que pudesse cheirar a algum tipo de reforma, principalmente agrária. Com aqueles lenços ridículos e botas de cano longo, os membros do PL representavam também o papel de machões. Alguns gostavam que seus revólveres na cintura, bem polidos, fossem percebidos sob o paletó. Tentavam personificar aquelas lendas, adoradas pelos gaúchos mais velhos e tradicionalistas, sobre revolucionários “machos, barbaridade”, que não se intimidavam nunca e saiam peleando onde fosse preciso.
O aeroporto de Santa Maria, na vila de Camobi, ficava a 11 quilômetros do centro. Um bom trecho era estrada, com alguns barrancos altos nas margens. Estou falando de 1959. Quando chegava um candidato o partido organizava isso que hoje chamamos de carreata. Os machões do PL costumavam vir amontoados, em pé, em carrocerias de caminhões. Numa dessas ocasiões nossa turma de garotos resolveu ovacionar a turma do PL. Roubamos todos os ovos possíveis das cozinhas das nossas mães e fomos esperar a comitiva deitados no alto de um barranco. Quando o primeiro caminhão repleto de lenços vermelhos passou rente ao barranco, em curva, lá veio a chuva de ovos. “Quem são os filhos da puta?”, berravam espumando de ódio os caras, enquanto puxavam seus revólveres cromados e retribuíam com balas de verdade aquela ovação toda. Mas a molecada já tinha se mandado e sumido no mato, na maior correria, explodindo de rir.
Ainda sobre o PL ficou uma história engraçada, contada por um amigo, o Moacir Santana, já falecido, que foi intelectual, ex-diplomata, e que se tornara uma espécie de guru da nossa turma de amigos adolescentes. Um dia Moacir estava comprando picolé da carrocinha de um ambulante, negrão. Começaram a conversar e o cara se declarou eleitor do PL. Pode? Moacir não resistiu: “Porra cara, eu sou branco, não empurro carrinho de picolé no sol, ganho bem, e mesmo assim sou PTB e torço para o Colorado. Só falta você, que é negão, pobre e fudido, além de PL ser também gremista”. O cara era.
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Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho da fronteira, é jornalista profissional, com mais de 40 anos de atividades. Começou em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1963. Foi repórter e exerceu cargos de chefia em alguns dos principais veículos do Brasil, como Rede Globo, jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, Diário do Grande ABC, revista Motor 3, Folha da Manhã (RS) e outros. Foi repórter em Última Hora, trabalhando com Samuel Wainer. Já assinou artigos e reportagens em mais de uma centena de publicações de todo o Brasil. Trabalhou também em assessoria de imprensa, para empresas e entidades públicas, como Ford Brasil, Conselho Regional de Economia e IPT- Instituto de Pesquisas Tecnológicas. É autor do livro “As 3 Vidas de Jaime Arôxa”, pela Editora Senac Rio, e participou como cronista da antologia “Porto Alegre, Ontem e Hoje”, pela Editora Movimento, do Rio Grande do Sul. Assinou também orelhas de diversos livros sobre dança e música, de autores brasileiros. Um ano antes de se aposentar, quando era editor-chefe do Jornal do Economista, em São Paulo, fundou o jornal Dance, que em julho completa 15 anos. Tem novo livro pronto, ainda inédito. É “Periferia da História”, onde conta de memória 45 anos da recente história brasileira. Trabalha em novos projetos editoriais, como jornalista e escritor. Na área de dança, organiza uma coletânea com os melhores editoriais publicados no Dance. Atualmente prepara um livro sobre Maria Antonietta, grande mestra da dança de salão carioca, que morreu recentemente. Apaixonado por viagens conhece quase todo o Brasil e já visitou cerca de 40 países. Por hobby e paixão é dançarino de tango.
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