quarta-feira, 18 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Édison Motta
PARTE IV
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Jornalista e escritor
Prêmio Esso de Jornalismo
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O FILHO DO PASTOR

Prezado amigo Edward de Souza,
Como leitor assíduo de seu blog e da sua coluna no Jornal Comércio da Franca, estou encantado com a homenagem póstuma que está fazendo ao nosso grande e estimado João Colovatti. Algo que deveria, um dia, ser feito pelo próprio Diário do Grande ABC, caso recuperasse alguns talentos que perdeu ao longo do tempo. Outros, como é o caso do querido Colovatti, são irrecuperáveis para este mundo porque habitam outra dimensão. O Dgabc conseguiu perder o João, às vésperas da aposentadoria, numa ingratidão inominável que acelerou seu infarto.
Também tive meu batismo de fogo com ele. Desde os 15 anos de idade, quando enfiei na cabeça que queria ser jornalista, fui me preparando para a profissão. Inicialmente li tudo que dizia respeito ao dia-a-dia do repórter, garimpando livros e textos que, à época eram raros e nem se sonhava com internet. As próprias faculdades rareavam porque a profissão, no final daqueles anos 60, nem mesmo era regulamentada, o que ocorreu em 1969. Passei boa parte da infância e adolescência no convívio evangélico. Inicialmente, obrigado pelo meu severo pai, na Assembléia de Deus, onde tocava na banda de música e, depois, numa espécie de acordo com ele, comecei a freqüentar a Igreja Metodista. Com 15 anos era presidente da Federação Metodista de Juvenis e viajava por todo o Estado de S. Paulo realizando congressos, palestras etc. Falar em público e conhecer novas pessoas era minha praia. Um dia, surgiu a oportunidade de ouro de trabalhar no Expositor Cristão, o jornal oficial da Igreja. Comecei como revisor. Em pouco tempo era um tipo de faz-tudo no jornal, desde datilografar cartas quase ilegíveis de “irmãos” que enviavam correspondência até secretaria-gráfica, de madrugada, nas oficinas do sistema “chumbão”. Para quem não sabe, naqueles tempos os textos eram compostos por linotipos que funcionavam à base de chumbo derretido. Aos poucos, de leve, comecei a inserir minhas próprias matérias. Assinei algumas e as guardei, como tesouro, para o passo que pretendia dar mais à frente.
Numa noite fria de junho, pulei o muro do “Américo Brasiliense”, onde cursava o segundo colegial, aos 17 anos, e fui direto ao Fausto Polesi, diretor de redação e um dos fundadores do Diário do Grande ABC. Com suficiente cara de pau, munido de alguns exemplares do “Expositor” com matérias assinadas e um cartão de apresentação assinado pelo pastor Lenildo de Freitas Magdalena – que também era presidente da Câmara de Vereadores de São Bernardo - pedi emprego de repórter. O Fausto não titubeou: disse para eu procurar o Dirceu Pio, no dia seguinte, na mesma “casinha” para fazer um teste. Dito e feito. No outro dia, por volta das 9 horas, apareci na redação e apresentei-me ao Pio que, com cara de poucos amigos, me ofereceu o solene desprezo com os quais os antigos tratavam os focas. Assim mesmo, a contragosto, folheou a edição do dia e recortou, com a ponta de um clips - desses de prender papel - uma pequena nota retirada da seção de editais, nos classificados do jornal. Dizia a nota que tomou posse a nova diretoria da Rede Feminina de Combate ao Câncer, sessão de São Caetano. Não havia nenhum telefone de contato, apenas o endereço. Entregou-me a requisição do carro, fotógrafo e uma recomendação: vire-se. Quando entrei no laboratório, imagine: dei de cara com o Colovatti, o único que, matreiramente, esquivara-se de pautas anteriores. Sabe-se lá como, o João já tinha minha ficha à sua maneira:
- Então você é o filho ilegítimo do pastor?
- Que história é essa, perguntei indignado e p... da vida!
- Hahahahahahaha, gozou o João. Aqui na redação todo mundo já está sabendo que você é filho não reconhecido do Lenildo.
Tive vontade de pular sobre o pescoço do gordo arrogante. Mas estava em jogo um teste e eu havia me preparado. Aguentei o tranco e segui, ao lado de um João visivelmente contrariado, para o carro de quem (?!)... Barbosa, o motorista. Aliás, um dos dois únicos motoristas do jornal naqueles tempos. O outro era o Zé Natal e sua Kombi caindo aos pedaços. De quebra, o Pio recomendou que deixasse o Flávio Soares pelo caminho para fazer outra matéria. No fusca, sentado no banco traseiro (o João apoderou-se do banco da frente... sem discussão) tive que ouvir todo tipo de impropérios pelo caminho. Desde a história de meu “pai ilegítimo” até escaramuças de preconceito religioso impensáveis nesses novos tempos que proíbem, constitucionalmente, as discriminações. Decididamente o João resolvera pegar no meu pé. Aguentei firme até que encontramos o endereço. Saiu de casa uma senhora, já com alguma idade e, bingo! As companheiras da nova diretoria estavam reunidas num chá da tarde comemorativo. Conversei com várias delas com desenvoltura. Afinal, lidar com senhoras também era minha praia nos muitos contatos na Igreja Metodista. Em cada congresso (juvenília) era com elas que eu tratava sobre os lanches e refeições da moçada. O João permaneceu o tempo todo calado, sentado num canto. Fotografias... Nada! Também fiquei na minha: fotografia era problema dele. No final, quando já ia me despedindo, o João fez dois ou três flashes da presidente. E nada mais.
Na volta, outra turbulência. Mais e mais agressões ao “filho do pastor” e à minha religião. “Quer ir pro céu? Pode tirar o cavalinho da chuva, lá não entra jornalista, hehehehehehehehe”. Aguentei firme a gozação sem nenhuma reação em todo o percurso. Cheguei à redação, consegui uma Olivetti a muito custo (era o horário do fechamento e o Daniel Lima babava mais que quiabo monopolizando tudo ao seu redor). Escrevi a matéria num só fôlego. Incomodado com a pressão dos demais para liberar a máquina. Findo o texto, entreguei-o ao Onofre Leite, então secretário de redação e responsável pelo fechamento da edição daquele dia. Gelei enquanto o Onofre lia o texto. Ele não disse nada. Apenas um O.k., está entregue. Não dormi aquela noite. Se a matéria fosse publicada, conseguiria o emprego. Se não, era o próprio aviso de que não passei. A insônia permaneceu até o dia clarear. Mas valeu à pena. Porque, antes mesmo das 6 horas o entregador de jornal deixou o exemplar na porta de casa. Fui correndo e lá estava ela: na integra, sem qualquer alteração ou supressão, na primeira página, com foto. Tomei o café da manhã, devorei o exemplar – li todas as matérias – enquanto aguardava o tempo passar. Sabia que não adiantaria chegar cedo à redação porque não encontraria ninguém. Quando, finalmente, cheguei para saber se estava contratado – e fui! – minha preocupação seguinte era esperar o Colovatti chegar, o que não demorou. Entrei com cara de poucos amigos no laboratório com o exemplar na mão. Não trocamos uma palavra, a não ser olhares ameaçadores de parte a parte. O João não acusou o golpe. Fez que não viu a matéria. Dei de costas e sai para cumprir a nova pauta, com outro fotógrafo. Aquele batismo inicial não saiu da memória, passados todos esses anos. E o melhor: ficamos amigos rapidamente. O Colovatti “esqueceu” aquela história de filho de pastor e se revelou um dos melhores fotógrafos que conheci, não apenas no Diário, mas também em minhas passagens por grandes redações como Folha, Estadão e Jornal do Brasil. Por seus méritos, sempre o escalava, quando chefe, para as principais matérias. Ele foi também um companheiro de muitas e muitas reportagens que entraram para a história do jornal, inclusive as fotos da série que me rendeu o Prêmio Esso.