sexta-feira, 14 de maio de 2010

E.S.P.E.C.I.A.L

O DIA EM QUE MORRI (FINAL)


Dedicado à médica Liliana Diniz

Aviso: não é ficção. Tudo que será contado foi real!


A ALEGRIA DE RENASCER

No hospital você não tem escolha. Ou mantém a calma e luta por sua vida, colaborando ao máximo com os médicos, enfermeiras e terapeutas, ou se entrega ao desespero, enfraquece e torna tudo mais complicado. Minha opção, de cara, foi a primeira, até nas atitudes mais triviais, como fazer a barba todas as manhãs para não ficar com aquela deprimente “cara de hospital”. Comia bem, “para estar forte na hora H”; fazia com tenacidade e boa vontade os exaustivos exercícios respiratórios para fortalecimento do diafragma; dava bronca em quem vinha me tratar como coitadinho e mantinha o moral tão elevado quanto possível.

Do sofrimento físico no pós-operatório é o mais difícil de falar, pois não há como ser descrito, nem comporta divagações. Para quem, durante uma semana, se preparou para morrer, como eu fiz, porque sabia dos altos riscos, inclusive no cateterismo, antes da grande cirurgia, isso tudo representou uma grande mutação.

De certa forma, você sai do plano terrestre e ingressa num estágio que dispensa todas as frivolidades do cotidiano. Nessa hora o que menos importa é quanto dinheiro tem no banco, se não sabe se estará aqui na semana seguinte para usá-lo. O papo furado, então, se torna insuportável. Não há mais tempo, muito menos saco, para isso. Esse estágio é uma experiência rara, senão única, em sua vida. Pena (ou seria melhor?) que passa, em pouco tempo, depois de tudo, você volta ao normal, reassume as pequenas vaidades, seus defeitos humanos, as tolices que todos falamos, as preocupações mundanas. A diferença é que um dia viu o outro lado, a maravilha de estar acima disso tudo. Você viveu um rito de passagem, doloroso, sem dúvida, mas ainda que a tal preço, criador de um novo homem.

Mas percebe também que se os teus códigos morais e de índole são outros, os resultados podem ser opostos: frieza total, indiferença com qualquer valor, falta de compromisso de qualquer espécie. É a cabeça do bandido, que vive no risco e não sabe se estará vivo no dia seguinte. Ele se acostuma com a idéia da morte, num processo inconsciente para não enlouquecer. Ora, se a própria vida dele não vale nada, menos ainda valerá a dos outros.

A verdadeira dádiva é continuar vivo. Acordar da anestesia, na UTI, é um momento mágico, um reencontro com a luz. Esquece a dor, celebra a vida. Ali ela recomeça. “Estou vivo!” – festejei. A enfermeira Marli estava ao meu lado, como um anjo da guarda, real e presente. O paciente acorda amarrado, para não arrancar, instintivamente, o tubo desconfortável que entra pela boca e vai até o estômago. O curioso é que no entorno eu não via a UTI, nem minha própria cama. Ainda sob leve efeito anestésico, parecia que estava dentro de um túnel completamente cor de rosa. E não tinha a menor noção de tempo, se era noite ou dia.

Pedi que Marli soltasse meus braços, ela confiou e fez isso, então coloquei sua mão sobre meu peito para ajudar a proteger o tórax da dor da tosse, e passei a seguir à risca todas as instruções que o Dr. João Galantier me passara, na véspera da cirurgia. Uma atitude genial dele, que me deu segurança, porque agora sabia tudo que iria acontecer e como agir. “Quando acordar procure tossir com o máximo de força e não se preocupe que não vai arrebentar nada”, tinha instruído. E assim agi. Quem entra numa cirurgia em emergência total não tem essa mesma chance de ser preparado, e aí o medo se instala.

Não recebi transfusão de sangue, ainda bem, um grande fator de segurança. Mas o preço a pagar foi uma anemia profunda, a tal ponto que nas refeições não tinha forças para levar o garfo do prato até a boca. Nos dois ou três primeiros dias comi como uma criança, recebendo comida na boca.

A menos de dois meses depois, já em casa, acreditem, eu mesmo me dei alta e voltei a trabalhar, editando meu jornal “Dance”. Alguns dias depois, embarquei com a namorada para a Europa, para comemorar a volta à vida e como prêmio a ela pelos cuidados que me dedicou o tempo todo. Ela nunca tinha ido e sonhava conhecer Paris.

No jornal, retomando o contato com meus leitores queridos, escrevi: “Não há mais tempo a perder. Gradualmente a gente vai retomando a vida normal. Não vejo a hora de poder dançar, mas ela chegará. A ginástica também. Por enquanto, vou curtindo gostosas caminhadas diárias. Nesta segunda vida, a gente vê cada minuto como um bem precioso. Afinal, nunca se sabe quando o destino vai nos aprontar outra. Muito menos quantas chances ele ainda nos reserva, mesmo quando se merece todas”.
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*MILTON SALDANHA É JORNALISTA E ESCRITOR.
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NR: A CRÔNICA DO JORNALISTA J. MORGADO, QUE SERIA POSTADA HOJE, SERÁ PUBLICADA NA PRÓXIMA SEXTA-FEIRA, DIA 21.
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