quarta-feira, 2 de setembro de 2009

DANÇA, UMA PORTA PARA A FELICIDADE

Na foto, o tangueiro amador Milton Saldanha se apresentando no baile de aniversário de 15 anos do jornal “Dance”, no Club Homs, Avenida Paulista, com a bailarina profissional Márcia Mello, do grupo de shows “Tango & Paixão”.
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Observações de um tangueiro

MILTON SALDANHA

Tango. Amigas e amigos, é impossível descrever a magia e prazer que é dançar isso. É meu principal hobby há cinco anos. Mas se o tango é recente, danço os demais ritmos desde os 14 anos. Estou com 64, logo são 50 anos de baile. O hábito começou nos anos 60, em Santa Maria (RS), cidade cercada de morros, encravada no centro da Depressão Central, bem no coração do mapa gaúcho. Era uma das diversões de toda a família, meus pais e os quatro filhos, que não perdiam os bailes dos clubes Caixeral e Comercial, com suas sedes sociais na praça principal, a Saldanha Marinho. Nome sem qualquer parentesco com este autor, sequer sei quem foi a figura. A Nivia Andres, a única mosqueteira aqui do blog do Edward de Souza, conhece bem em esse cenário, viveu lá e formou-se na Universidade Federal de Santa Maria.
Fui também do tempo das reuniões dançantes domésticas, com Hi-Fi, disco de vinil, regadas a cuba libre (Coca-Cola, gelo, rodela de limão e uma dose de run). Naquele tempo a gente ia para esses encontros de terninho escuro e gravata, elas de vestido tubinho e coques altos, onde entrava até bom-bril para ajudar a segurar e dar volume. As mães ficavam tricotando ali por perto, simulando distração, mas de olho ligado na rapaziada, todos loucos por um bom amasso em suas filhas. Dançar de rosto colado era o máximo das ousadias, e as meninas que permitiam isso ficavam logo “faladas”, assunto inevitável de todas as rodinhas das fofoqueiras. As eletrolas, móveis grandes onde rodavam os LPs de vinil, emitiam samba, fox, bolero, tango, valsa e mambo. Com as vozes ou composições de Ângela Maria, Elisete Cardoso, Maysa, Miltinho, Frank Sinatra, Nat King Cole, Caubi Peixoto, Lupicínio, Noel Rosa, Chiquinha Gonzaga. Aí surgiu uma novidade, que a gente também dançava, chamada Bossa Nova. Entraram em cena Vinicius de Moraes e Tom Jobim, precursores da safra que viria só bem depois, com Chico, Nara Leão, Edu Lobo, Vandré, Bethânia, Caetano, Gil e outros. As músicas mais conhecidas desse novo estilo de samba eram “O Barquinho” e “Samba de uma nota só”, até que surgiu a magistral “Garota de Ipanema”.
E assim rolavam nossas longas tardes domingueiras... Com a dança a dois, eu diria até precocemente, passando a fazer parte indissociável da minha vida. Quem não dança e nunca experimentou isso dificilmente entenderá tal prazer. Ele está ligado primeiro ao gosto pela música, seguido da satisfação de associar seu corpo a ela, através do movimento. Você então não apenas ouve a música, mas se integra totalmente a ela, descobrindo habilidades que nunca imaginou possuir. Torna-se senhor do seu corpo, faz dele o que bem entender. Vence bloqueios, solta suas amarras, ganha postura e independência. Aquele corpo que refletia uma mente reprimida, encolhido e tímido, de repente se abre, cresce e parece querer voar. Agrega, finalmente, ou em primeiro lugar, tanto faz, o prazer do abraço com o sexo oposto. Cria-se ali uma cumplicidade, seus corpos precisam estar sintonizados na mesma energia e na mesma emoção. Em alguns casos isso é tão forte que desperta também a química da atração sexual, absolutamente normal, estamos falando de homens e mulheres de carne e osso. O que não significa que os casais vão sair correndo do baile para transar, não é nada disso. O que quero dizer é que a dança, além de ser o mais completo e prazeroso dos exercícios, e de longe a melhor das terapias, é também uma via de acesso a relações que podem transformar vidas. Ali surgem muitos namoros e até casamentos. Contudo, mesmo que não se chegue a tanto, quem dança jamais sentirá solidão. Os bailes e academias, hoje facilmente encontráveis, formam verdadeiras comunidades de amigos. O convite para dançar quebra qualquer gelo. O contato físico abrevia a aproximação e o conhecimento do outro.
Não cansa, enjoa? Perguntará alguém. Taxativamente, não! Quanto mais a gente dança, mais quer dançar. E quanto melhor, mais insatisfeito se tornará com a própria performance, querendo aprimorar dia após dia. Fred Astaire, o fabuloso dançarino que celebrizou a dança a dois no cinema com sua parceira Ginger Rogers e se tornou a eterna referência de todos nós, dançarinos do mundo todo, era um perfeccionista fanático. Consta que chegava a fazer mais de 60 vezes algumas cenas, de poucos segundos, para extrair da série e editar aquela mais próxima da perfeição. E quem vê os dois dançando imagina tudo um mar de rosas. Não era bem assim. Brigavam muito nos ensaios, em busca do melhor resultado. Aliás, como acontece com a maioria dos casais profissionais de hoje. Onde estava o segredo da perfeição? Deixemos que ele, Fred Astaire, nos responda: “Tem que parecer que é fácil”, dizia o mestre. Vendo, parece que qualquer um faz. Vá tentar!
O tango para mim foi o estágio natural da busca da evolução e da novidade. Continuo dançando todos os ritmos, mas foi no tango que encontrei a suprema emoção. Porque sua música, e a interpretação na dança, refletem o amor, desejo, paixão. A sofisticação e beleza das composições atingem no fundo das almas sensíveis. Só alguém muito inculto, frio e grosseiro não fica extasiado ao ouvir um tango como “Adios Nonino”, de Astor Piazzolla. Mas este é apenas um exemplo, há centenas de outras obras primas, de compositores e intérpretes lendários como De Sarli, Darienzo, Pugliese, Troilo, Oswaldo Fresedo, Mariano Mores e muitos outros. E tem uma sofisticação técnica que nenhum outro estilo da dança de salão alcança, sequer chega perto. Além, ainda, de inesgotável repertório de passos e efeitos, muitos deles que você próprio vai criando, com a experiência e a prática. Isso talvez explique porque o tango se espalhou de tal forma que hoje é dançado no mundo inteiro, para sorte dos grandes mestres portenhos (de Buenos Aires), disputados para dar cursos e fazer shows nos mais variados continentes. Diversos já estão ricos, são fluentes em inglês e conhecem dezenas de países.
Com o tango descobri um novo caminho para aprimorar minha dança e enveredar por emoções muito fortes, ainda que eu seja um eterno amador, nunca me passou pela cabeça fazer disso uma forma de ganho adicional. Coleciono DVDs de aulas e shows, faço aulas regularmente, danço pelo menos duas vezes por semana, vou com boa freqüência a Buenos Aires para beber direto na melhor fonte. Vale só o prazer. Uma nova porta para a felicidade plena. Sigam meu exemplo e comecem na dança. Vão descobrir uma nova cabeça e moldar um novo corpo. E acharão uma pena, com certeza, quando descobrirem o que estavam perdendo, não ter começado muitos anos antes.
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Milton Saldanha - Jornalista, fundador e editor do jornal Dance, tangueiro.
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